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Senso Comum dos Direitos e Deveres
SENSO COMUM DOS DIREITOS E DEVERES
No senso comum, dever nos lembra dívida, obrigação, assim como o fazia, na escola clássica, o dever de casa. Por outro lado, direito remete intuitivamente ao que é reto, ao que não é torto, ao que é justo. Sentimo-nos obrigados a cumprir os nossos deveres, mas nos parece injusto que nossos direitos não sejam garantidos. Naturalmente, a justiça entrelaça direitos e deveres: é direito de todos e, em todas as circunstâncias, temos o dever de ser justos.
É importante destacar que há direitos que são inerentes a certos deveres, há certa dualidade entre direitos e deveres, mas não existe simetria entre os elementos de tal par. Se meus direitos não estão sendo garantidos, busco quem tem o dever de me atender, mas não posso me sentir liberado do cumprimento dos meus deveres. Afinal, é dever do Estado garantir os direitos do cidadão, mas é direito do Estado exigir que cada cidadão cumpra seus deveres. A garantia da Educação de qualidade é um exemplo de direito do cidadão e de dever do Estado.
Mil e Uma X32 – A vaca, a mula e os estímulos à vacinação
Em meio a tantos estímulos à vacinação, não há como não ecoar a importância de tal ação, apesar de a etimologia não ajudar… Pois é, “vacina” deriva de vaccinum, em latim, que quer dizer vaca. Como se sabe, ao final do século XVII, a varíola era uma doença terrível, de caráter pandêmico, que espalhava feridas pelo corpo. Foi o médico e cientista inglês Edward Jenner que observou: os camponeses que ordenhavam as vacas não eram infectados pelo vírus da varíola. Daí a usar o pus das feridas das vacas para imunizar pacientes humanos foi apenas um passo e Jenner é hoje considerado o pai da ideia de vacinação.
Já a palavra “estímulo” deriva de sti, que era um objeto pontiagudo, e mulus, que se refere às mulas, com sua proverbial resistência à obediência. Para vencer tal resistência, uma cutucada por baixo com um objeto “estiloso” costuma produzir efeitos…
Como já foi dito, não se trata de uma etimologia motivadora, convém até esquecê-la. Mas ecoemos: viva a vaca, viva a mula, viva a vacina!
*****24/4/2021
Mil e Uma X31 Quatro exemplos de Corrupção Dissimulada
A mensagem aqui é simples e direta: corrupção é antônimo de integridade. Às vezes, pares de opostos se instalam de modo sutil, dissimulado, podendo propiciar derrapagens éticas. Mas como dizia o historiador Paulo Cavalcante, em seu provocativo livro de memórias, “o caso eu conto como o caso foi: ladrão é ladrão, e boi é boi.”
Dois exemplos do senso comum. Quem ostenta um discurso politicamente correto, aliado a uma prática em total dissintonia, não é íntegro, é desintegrado, é corrupto. Simples assim. Outro exemplo de personalidade corrupta, aparentemente inofensiva, mas que confunde ladrão e boi, é o do torcedor que acha desonesto apenas o juiz que rouba para o adversário.
Dois exemplos literários igualmente sugestivos. De Antonio Machado um lembrete poético: “De nada vale o fruto/Colhido fora de estação/E não é porque te elogia um bruto/Que ele há de ter razão.” E Antonio Vieira proclama alto e bom tom: “Não basta que as coisas que se dizem sejam grandes se quem as diz não é grande.”
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Mil e Uma X30 Meu time, Deus, os números e a poesia
É curiosa a relação que os homens estabelecem com a divindade, quando torcem pelo seu time favorito: agem como se não houvesse tema mais relevante com o que Deus deveria se preocupar. Loyola captou bem a lógica de tal síndrome ao escrever: “Ora como se tudo o que acontece dependesse apenas de Deus; mas age como se tudo o que ocorre dependesse unicamente de ti”.
Na distribuição de responsabilidades pelo que ocorre entre Deus e os homens, dois casos são especialmente reveladores: a produção matemática e a criação poética.
Diante da beleza das relações entre os universos numéricos, com suas ampliações sucessivas, dos naturais aos inteiros, aos racionais, aos irracionais, aos reais, aos complexos, aos transfinitos, o matemático Kronecker decretou: “Deus criou os números naturais; todo o resto é trabalho dos matemáticos.”
Uma situação similar, particularmente reveladora, se dá na poesia. Foi Bandeira quem reconheceu ou decretou: “Deus nos dá o primeiro verso: todo o mais é criação do poeta”.
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Mil e Uma X 29 Avaliação, Saúde e Gamificação
Diante de sintomas, ou em consultas periódicas, o médico nos submete a um leque de exames. Os resultados e a expertise do profissional conduzem a um diagnóstico e a orientações de tratamento.
A simbiose entre exames e certificados quase inexiste nos processos educacionais. Aqui, os certificados, às vezes, importam mais do que a efetiva “saúde”. Um bom certificado traz alegria, mesmo havendo uma distância entre o “atestado de óbito” e o “defunto”. Na escola, as avaliações disputam espaço com o ensino, como se subtraíssem seu tempo.
Uma comparação similar resultaria da relação entre os games e a Educação. O que se tem chamado de gamificação é uma influência positiva de elementos próprios dos games, como explicitação dos objetivos, criação de interesse, o trabalho em equipe etc.
No caso da avaliação, a lição a ser aprendida com os games é a da necessária sincronia entre avaliação e ação. Na escola, na saúde, nos jogos e na vida, a competência efetiva vale mais do que certificações formais.
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Mil e Uma X 28 Bom senso e Justiça
No Discurso do Método, é fina a ironia cartesiana: todos se julgam tão bem servidos de bom senso que ninguém acha que precisa de mais do que tem. O inverso parece ocorrer com a ideia de justiça: por mais que as contingências tenham sido generosas, a menor circunstância negativa conduz à expressão: Não é justo!
De fato, se meu time preferido ganhou quase todas as partidas, perdendo apenas a final, não é justo; se vivi com plena saúde até os 70 anos, e, de repente, certo mal me acometeu, não é justo… Mas, o que é justo?
É justo quando uma moeda “honesta”, lançada 100 vezes, mostra em sua face superior 80 caras? Não me consola saber que, em um número infinito de lançamentos, as chances de cara e de coroa sejam iguais: em pequenos números, a aparência é de injustiça.
A verdade é que uma expectativa de justiça somente poderia ocorrer após o fim da jornada, no infinito, ou após o fim da vida. Compreende-se, então, o registro de Rimbaud:
“A visão plena da justiça é um prazer somente de Deus.”
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Mil e Uma X27 Deus é uma Ficção
As ficções são apresentadas, às vezes, em oposição à realidade dos fatos. Além disso, dizer-se de algo que não passa de uma ficção parece um atestado de irrealidade, mas as coisas não são tão simples assim.
Fato (facto, factum em latim) é particípio passado do verbo fazer (facere). Facto é o que já está feito. Na vida, lidar com fatos nos traz segurança, mas limitar-se ao que já está feito é sintoma de fatalismo.
Em geral, observamos um fato e idealizamos a realidade do nosso gosto, criamos ficções na mente. Um ficto é algo imaginado, fingido, idealizado, fictício. Uma abstração, como mediação entre uma realidade bruta e outra mais elaborada, é como um ficto, é uma ficção.
Não podemos ignorar o mundo dos fatos, seria indício de loucura; mas viver apenas em ligação direta com os fatos, abdicando da força viva da imaginação criadora, do mundo da ficção, seria sinal de uma limitação mental severa.
Precisamos tanto da realidade dos fatos quanto da ficção. E por falar nisso, Deus é uma ficção.
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Mil e Uma X26 Ensino Híbrido: entre a panaceia e a esterilidade
Na contraposição entre ensino presencial e ensino à distância, a expectativa de vitória de uma das modalidades com a aniquilação da outra é cada vez menos pertinente. Em vez disso, desenha-se uma convergência notável para um mix de modalidades. A expressão “ensino híbrido” tem sido utilizada para tal mix, e a tendência é a um aparente consenso: um ensino 100% presencial é um desperdício e um ensino 100% à distância é insuficiente e precário.
A cautela, no entanto, é necessária. Em primeiro lugar, não basta falar sobre a mistura como uma panaceia, é preciso caracterizá-la conceitualmente, dando ao presencial César o que é de César, mas preservando espaços específicos em que o ensino à distância pode ser pertinente e preferível.
Outro pondo decisivo pode ser metaforicamente lembrado pela biologia: quando se cruzam indivíduos de diferentes espécies, como o burro e a égua, dando lugar ao mestiço jumento, o mix pode apresentar características interessantes, mas a infertilidade é a regra…
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Mil e Uma X25 O vírus, a bola de tênis e o ser humano: Uma Regra de Três Simples
Em muitas imagens, o coronavírus parece uma bola de tênis espinhosa. Proporcionalmente, se o vírus fosse do tamanho de tal bola, qual seria a altura de um ser humano?
Calculemos. Um minúsculo vírus está para a bola de tênis assim como um ser humano está para o “monstro” cuja altura queremos determinar.
Outro modo de pensar seria: um vírus está para um ser humano assim como a bola estaria para o “monstro”
O tamanho do vírus varia entre 20 e 300 nanômetros; um nanômetro é igual a 10-9m. Para simplificar, consideremos um vírus de 160 nanômetros, e um ser humano de altura 1, 60m. A razão altura do ser humano/tamanho do vírus é igual a 1,60m/160.10-9m, ou seja, é igual a 107. Esta também deverá ser a razão entre a altura do “monstro” e o diâmetro da bola, que vamos aproximar por 8cm, ou 8.10-2m.
Logo, a altura x do “monstro” seria igual a 107 vezes o tamanho da bola, ou seja, x = 107. 8.10-2m = 800km.
Em palavras: a bolinha de tênis seria como um vírus em um ser humano de 800km de altura.
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Mil e Uma X24 Descartes, Kafka e o bom senso na argumentação
Descartes já nos alertara: o bom senso é o atributo mais bem partilhado do mundo; ninguém acha que precisa de mais do que já tem. No terreno das ideias, no entanto, o bom senso pode conduzir a derrapagens conceituais.
É o que ocorre quando se transferem qualidades ou defeitos do orador para os argumentos em defesa das ideias que apresenta. O deslizamento é sutil: se a pessoa argumenta mal, então a causa que defende não presta. Em latim, isto era chamado de Argumento Ad Hominem, uma situação em que os argumentos são deixados de lado e o argumentador é fuzilado…
Naturalmente, tal procedimento é logicamente insustentável. Em um debate, as ideias é que estão em questão, e não a eventual simpatia ou os defeitos do orador. A esse respeito, Kafka foi cirúrgico ao afirmar, com fina ironia: A maneira mais pérfida de se combater uma causa é defendê-la com um péssimo argumento. Simetricamente, poder-se-ia dizer: A maneira mais cínica de defender uma causa é combatê-la com um péssimo argumento.
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