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                            Nílson José Machado             

1-  Ortega e a técnica

2-  A técnica e a tecnologia

3-  Ortega e as três fases da técnica

4-  Técnica: substantivo ou adjetivo?

5-  A técnica e a linguagem

6-  O logos é técnica

7-  Linguagens e tecnologias

8-  A torneira e a consciência

9-  Analógicos ou digitais?

10- Tecnologias: fascínio x fastio

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1 – Ortega e a técnica

Uma das mais lúcidas reflexões sobre a técnica é fruto da lavra de Ortega y Gasset, antes do aparecimento dos computadores eletrônicos. Em Meditação da técnica (1939), Ortega a associa com os atos que transformam a natureza ou as circunstâncias. Em suas palavras, um homem sem técnica, quer dizer, sem reação contra o meio, não é um homem. Dois fatos agudos, e até certo ponto surpreendentes, emergem de sua seminal reflexão.

O primeiro é que técnica não resulta da busca de adaptação do homem ao meio, mas sim do meio à vontade do ser humano. O animal é atécnico: adapta-se ao meio e segue vivendo.

O segundo fato é que somente se pode pretender que a técnica responda às necessidades humanas se nos limitarmos à manutenção da vida em sentido biológico. Em sentido pleno, a vida humana não pode prescindir de “supérfluos” absolutamente necessários, como a arte, a estética.

De modo premonitório e sutil, Ortega nos lembra: a técnica sacia as necessidades humanas com a mesma frequência com que as cria.

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       2 – A técnica e a tecnologia

A técnica é inerente à condição humana, mas sua transformação em tema de estudos é relativamente recente. Na Grécia antiga, a techné  e o logos  não se comunicavam, não havia “o logos da técnica”. A palavra “tecnologia” com o sentido atual surge com a Revolução Industrial. É na Enciclopédia de Diderot que se explicita pela primeira vez na história uma lista de disciplinas a serem estudadas pelos que buscavam uma formação para o trabalho.

A partir de 1950, com a ascensão dos computadores, a tecnologia passa a ser associada às tecnologias informáticas, empurrando a técnica para os bastidores das questões teóricas. Mas é na técnica que reside uma dimensão fundamental do ser humano: a informática não passa de uma de suas manifestações, ainda que a mais espetaculosa.

A onipresença das tecnologias exige permanente reflexão sobre as implicações de tal invasão. O homem não se tornou racional ao tematizar a lógica, nem tematizar a técnica é suficiente para torná-lo consciente de seu significado.

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           3 – Ortega e as três fases da técnica

A técnica é uma atividade produtiva tipicamente humana, que busca minimizar os esforços nas ações de adaptação da natureza ao modo de ser humano. Em Meditação da Técnica, Ortega identifica três períodos em sua história: a técnica fortuita, a técnica do artesão e a técnica cindida.

No primeiro, a técnica é partilhada por todos, e os instrumentos surgem de ações não intencionais. No segundo, a multiplicação de tarefas conduz à subdivisão das mesmas e ao trabalho do artesão. Cada um sabe fazer o próprio calçado, mas se torna mais conveniente delegar tal tarefa aos sapateiros. Os artesãos aperfeiçoam o processo de produção e a evolução natural faz surgirem as primeiras máquinas. Aos poucos, porém, elas passam a predominar na produção de objetos específicos, subordinando o artesão a seu fito e ritmo.

Inicia-se, então, o terceiro período, em que a técnica se descola do técnico, e este, do mero operador das máquinas. Sobrevém o perigo: o homem não pode tornar-se mero apêndice de equipamentos.

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4 – Técnica: substantivo ou adjetivo?

Um substantivo tem vida própria, designa algo por si só; um adjetivo sempre é tributário de um substantivo, ao qual se adjunta. Quando nos referimos à “técnica” como uma atividade humana, falamos de um substantivo ou de um adjetivo? A gramática pode ser esclarecedora.

Nas fases iniciais da civilização, a técnica é essencial, mas apenas adjetiva a ação; o substantivo, a substância da vida é o modo de ser humano. Mesmo como adjetivo, a técnica carece sentido: ninguém especificamente é “técnico”, ou todos o são.

O aparecimento do artesão conduz a certo descolamento entre a técnica e as atividades comuns, dando início a uma substantivação da “técnica”. É como se ela passasse a designar algo por si só, independente das ações humanas.

Na forma das modernas tecnologias, a técnica está, hoje, tão disseminada na sociedade quanto nas fases primitivas de nossa história. A diferença crucial é que nos primórdios, a técnica não era substantivo, e hoje, há quem subverta a gramática e a trate como tal. 

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          5 – A técnica e a linguagem 

A técnica distingue os homens dos animais. Uma simplificação de tal perspectiva levou à caracterização do homem como um produtor de ferramentas, e à supervalorização do trabalho como categoria distintiva.

Há muito também se diz que o homem é um animal racional. A razão, o logos, a linguagem seria uma marca distintiva em relação aos animais. Nesta trilha, há os que reconhecem a essencialidade da linguagem, mas negam a animalidade do homem.

Há ainda os que buscam uma síntese, pretendendo que a ação, ou o fazer consciente, irmanado com a palavra, seja a real condição humana.

O mais frequente, no entanto, são tentativas simplórias de exploração do fato de que os animais também se comunicam e produzem ferramentas. Em resposta, o pulo do gato dos seres humanos é duplamente radical: somente eles produzem meta-ferramentas, ou ferramentas para produzir ferramentas; e somente eles têm uma linguagem que se desdobra em múltiplas meta-linguagens, sendo absolutamente constitutiva de seu modo de ser.

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  6 – O logos é técnica 

A técnica pode ser entendida como a produção de ferramentas para adaptar o meio ambiente ao modo de ser humano, buscando minimizar seus esforços, em diferentes contextos.

A Antropologia nos indica que não se pode pensar no homem sem a técnica, nem sem a linguagem. A História nos revela que toda tentativa de fixar relações de precedência, ou de reduzir uma dessas dimensões à outra é condenada ao fracasso. A Filosofia nos torna conscientes de que a técnica e a linguagem são dimensões humanas que sempre estiveram imbricadas. A Ciência nos aponta que as modernas tecnologias, consolidadas como o logos das técnicas, constituem ferramentas que transformam substancialmente as formas de expressão e comunicação, criando e explorando novas e instigantes dimensões da linguagem.

Afinal, a marca do ser humano é a técnica ou a linguagem? Quando nos damos conta de que a linguagem é uma ferramenta, como o machado ou a enxada, como a razão e os conceitos, pomos em pé o ovo de Colombo: o logos é técnica. 

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    7- Linguagens e tecnologias

 O interesse pelas linguagens em geral não pode desviar-nos da singularidade da língua, e o fascínio pelas tecnologias não pode elidir que elas traduzem o estágio atual das técnicas.

Techné  e poiesis são dimensões distintas da ação humana. De um lado, um fazer prático, que se atém aos meios; do outro, de um fazer criativo, que nos constrói enquanto realizamos. Ambas desempenham papéis importantes, mas a criação é fundamental.

Ainda que a oralidade, a escrita e a informática sejam consideradas “tecnologias” da inteligência, a língua tem um caráter absolutamente radical no modo de ser do ser humano; as tecnologias são da ordem dos meios, nada tendo a nos oferecer no que se refere aos valores ou aos fins.

A língua é um meio de expressão, mas é mais: tem um conteúdo essencial, um elenco denso de ideias fundamentais, constitutivas da formação pessoal. A criação no âmbito das tecnologias é inteiramente tributária dos projetos e dos valores que alimentamos e que nos alimentam. Ou deveria ser.

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8 – A torneira e a consciência

Como uma praga, ela se disseminou pelos banheiros: a torneira de pressão com fechamento automático tornou-se uma prótese da consciência pessoal no caso do uso parcimonioso da água. Um aviso junto à torneira seria suficiente para lembrar os distraídos e despertar consciências adormecidas, mas a tecnologia oferece mais garantias.

O tempo que a torneira nos concede para lavar as mãos é matematicamente calculado. Amostras de milhares de usuários produziram curvas normais, tempos médios, desvios-padrão, suficientes para formatar as molas e os dispositivos reguladores. Se não nos adaptarmos aos esquemas programados, não somos “normais”.

É verdade que uma mola muito nova pode abreviar o tempo previsto, e, quando mais velha e mais relaxada, pode deixar a água fluir além do necessário, mas tudo isso são contingências.

O essencial na opção por simulacros de consciência como as torneiras automáticas é o recado tácito: a Ética que nos perdoe, mas a tecnologia parece mais confiável do que as pessoas.

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9 – Analógicos ou digitais?

Há algum tempo, prevalece a ideia de que dispositivos digitais são o novo, o máximo, e dispositivos analógicos são resquícios do ultrapassado. Os computadores logo migraram, tornando-se objetos digitais. Aos poucos, celulares, aparelhos de som, câmeras fotográficas, televisões, tudo convergiu para o elogio do digital. Mas, e o funcionamento dos seres humanos, é digital ou analógico? 

Decididamente, funcionamos de modo analógico. Os impulsos sensoriais externos, que enviamos ao cérebro, são múltiplos e redundantes. Atravessam humores e chegam ao fim da linha de modo pessoal, idiossincrático. São processados analogicamente. Não se resumem a pares do tipo sim/não, zero/um, liga/desliga.

A emulação digital/analógico não tem sentido. O sucesso do digital se dá por meio da imitação do analógico. As telas simulam pinturas, os computadores querem parecer humanos. Pelo menos em um caso, a disputa analógico/digital é equilibrada, com leve vantagem para o analógico: o dos mostradores dos relógios.

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10 – Tecnologias: fascínio x fastio 

A tecnologia é um poliedro de mil faces, algumas assustadoras, outras muito sedutoras. A cada dia um novo produto surge no cenário, com uma mensagem tão atraente quanto enganosa: “o novo é melhor que o velho”, “o novo é melhor que o velho”… Como se não fosse parte da cultura de onde emerge, a tecnologia renega o deus Janus e cultua apenas o futuro.

Ao aceitar o bônus da sedução, a tecnologia assume o ônus do inescapável risco: amor e ódio tangenciam-se, aqui e ali. Uma maioria de entusiastas convive com um grupo crescente de enfastiados e com o radicalismo de uns poucos que rejeitam as formidáveis ferramentas.

Nada parece mais extemporâneo, no entanto, do que a discussão sobre o uso ou a recusa da tecnologia. Como a técnica nos primórdios da civilização, a tecnologia encontra-se disseminada na sociedade. Sem qualquer melancolia, resta-nos avançar na consciência do significado de sua presença.  Se o fascínio automático é típico de neófitos, a recusa sistemática é, sem dúvida, patética.

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 Bibliografia de referência

CRAWFORD, Matthew B. – Éloge du carburateur. Essai sur le sens et la valeur du travail. Paris: La Découverte, 2010.

DRUCKER, Peter – Tecnologia, Gerência e Sociedade. Petrópolis: Vozes, 1973.

DUSEK, Val – Filosofia da Tecnologia. São Paulo: Edições Loyola, 2009.

FROMM, Erich – A revolução da esperança. São Paulo: Círculo do Livro, s/d

LÉVY, Pierre – As tecnologias da inteligência. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.

LINARES, Jorge Enrique – Ética y mundo tecnológico. México: Fondo de Cultura Económica, 2008.

ORTEGA Y GASSET, José – Meditación de la Técnica. In: Obras Completas, vol. 5, p.317-378. Madrid: Alianza Editorial, 1983.

PINTO, Álvaro Vieira – O Conceito de Tecnologia (2 vols.). Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.

QUINTANILLA, Miguel Ángel – Tecnología: um enfoque filosófico. Buenos Aires: Editorial Universitária, 1991.

SENNETT, Richard – O Artífice. Rio de Janeiro: Record, 2009.

VARGAS, Milton – Para uma Filosofia da Tecnologia. São Paulo: Ed. Alfa-Omega, 1994.

WORLD HISTORY – New York: Parragon Books, 2011.

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