O concreto e o abstrato, a realidade e a imaginação, o existente, o que está feito, o fato (facto), por um lado, e o desejado, o idealizado, o fingido (ficto), por outro, já compuseram pares complementares de significado auto evidente em seu uso corrente. “Material concreto” já constituiu um pleonasmo vicioso: como uma matéria poderia ser abstrata? Simetricamente, seria contraditório falar-se de “fato fictício”: ou algo é um fato, ou é uma ficção. De modo geral, ou algo é um dado de realidade, ou apenas fruto da imaginação… e assim por diante. Hoje, no entanto, as coisas já não são mais tão simples assim. A chamada “realidade virtual” aparentemente pode estar criando dezenas de tons de cinza entre os elementos do par 1-Realidade/0-Imaginação. As narrativas dos games misturam continuamente tais pares de opostos, diluindo as distinções. E a própria distinção binária entre Verdade e Mentira parece estar dando adeus a sua nitidez como o fenômeno das chamadas fake news. Trata-se, no entanto, de um modo de ver as coisas: há outras visões.

 De fato, entre um natural e frequente afastamento das palavras de sua matriz etimológica e a absoluta relativização de seus significados, pulverizados por eventos aparentemente desconexos, há um espaço imenso, a ser explorado pela pesquisa linguística, fecundada pela História. Fazer os falantes acreditarem na linguagem como um jogo aleatório em que cada palavra pode significar o que quer que queiramos faz parte do arsenal de recursos de todo regime autoritário. A corrupção da ideia de liberdade por meio do trabalho, presente nos campos e concentração nazistas, as estratégias mais sofisticadas nas distopias de Orwell, entre outros registros históricos ou literários, são eventos em que transbordam os lembretes sobre os limites da frouxidão de significados no uso corrente das palavras.

No mesmo sentido, reforçando o que acima foi delineado, um recado muito interessante nos é dado, em outro contexto, pelo economista Friedrich Hayek (1899-1992). Ao analisar os artifícios e os efeitos da propaganda nos regimes autoritários, Hayek situou entre eles as estratégias de despojar as palavras de qualquer significado específico, deixando-as designar indiscriminadamente tanto uma coisa como seu oposto. É aí que mora o perigo: afinal, a maior de todas as violências não é o cerceamento da palavra, mas sim a que se dá por meio da palavra. Todo cuidado é pouco.

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