No nível do senso comum a questão parece simples: não se pode dizer de alguém que vive do próprio salário que “vive de rendas”. Associamos viver de rendas ao estado em que o dinheiro produz dinheiro. Salário é remuneração pelo trabalho realizado, é o pão obtido pelo suor do rosto, não é o resultado de uma aplicação financeira.

No campo teórico, a questão não é tão simples; a ideia de renda é mais ampla e entende-se que o salário faz parte da renda. Em consequência, trabalhadores pagam Imposto de Renda – e como pagam!

Durante muitos anos, o político Franco Montoro – ex-Senador e ex-Governador do Estado de São Paulo – defendeu a bandeira de que “Salário não é renda”. Um artigo especialmente singelo com o título de sua bandeira foi escrito por ele no jornal Folha de São Paulo em 16 de outubro de 1964. A Constituição vigente era a de 1967, produzida pelo Regime Militar iniciado em março de 1964, e que permaneceria em vigor até 1988. As palavras de Montoro podem ser associadas, portanto, a um debate permanente sobre o tema, parcialmente provocado pela Constituição de 1934.

Como se sabe, a constituição supra referida exclui explicitamente do pagamento do Imposto de Renda os autores de livros, os jornalistas e os professores. Tais benefícios corporativos, no entanto, duraram apenas 3 anos, e logo a Constituição de 1937, conhecida como “a polaca”, mudaria o cenário, transformando radicalmente a situação política do país e mudando o rumo das discussões.     

Voltemos ao rumo inicial da prosa: Salário não é renda? Naturalmente, a distinção resultaria de um entendimento formal da ideia de salário, e é aí que a referência ao artigo de Franco Montoro pode nos ajudar a alinhavar algumas questões anuviadas pelas novas formas de produção, especialmente nas últimas cinco décadas.

No cenário econômico, o conhecimento transformou-se no principal fator de produção, tendo se integrado ao mundo do trabalho de uma maneira tal que nenhum habitante da Grécia Antiga poderia conceber. Em tal processo de integração, o tratamento do conhecimento como uma mercadoria em sentido industrial tem-se revelado inadequado em pelo menos dois sentidos. Em primeiro lugar, o conhecimento é uma “mercadoria” que eu dou, vendo, ou troco e não fico sem… Como lidar com a contabilidade referente a tal “ativo”? Em segundo lugar, a “mercadoria” conhecimento é tal que não se pode falar propriamente em “estoque”. Quase diariamente vivenciamos como cidadãos a expectativa de aumento ou de diminuição de estoque das mercadorias, o que influi imediatamente em seu preço. Como proceder, então no caso da mercadoria conhecimento? Quem controla seu estoque?

Tais questões nos induzem a necessidade de uma transformação – ou mais que isso, uma verdadeira metamorfose na ideia de mercadoria, de modo a considerar a dimensão mercantil presente na circulação, na compra e venda do conhecimento, sem ignorar que o conhecimento não se esgota em tal dimensão.

Uma contribuição significativa a tal reconfiguração da concepção de conhecimento como mercadoria  resultou, nas últimas 3 décadas, do trabalho de Elinor Ostrom, que recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 2009, caracterizando a ideia de Commons. Seu trabalho Understanding Knowledge as a Commons representa uma virada semântica. Ostrom explicita que existem coisas, como o ar e a água, que estão no mundo para serem partilhadas, e que não podem ser tratadas apenas em sua dimensão mercantil. O fato notável é que Ostrom inclui o conhecimento científico na lista de Commons. Sem meias palavras: o conhecimento são pode se limitar a sua dimensão mercantil.

 A situação a que nos tem levado a pandemia do novo corona vírus escancarou as portas da necessidade de não se tratar uma vacina como uma mercadoria em sentido industrial. Especialmente no que se refere à indústria farmacêutica, tal necessidade de transformação já esteve presente há quase três décadas no programa de governo de Al Gore, ex-candidato à Presidência dos EUA, em seus slogans contra a indústria farmacêutica.

O pensamento sobre a ideia de commons é rico, inspirador, e, ao que tudo indica, ainda insuficientemente conhecido e explorado. Infelizmente, Ostrom faleceu em 2012, o que de modo algum impede, mas pode atrasar um pouco a atenção mundial que seu pensamento merece.

Se, no universo econômico, a ideia de mercadoria está sendo reconfigurada, no sentido sugerido pelo trabalho de Ostrom, uma metamorfose conceitual semelhante está a merecer a ideia de salário. São amplamente conhecidas e reconhecidas as metamorfoses do trabalho, parcialmente articuladas com as transformações do conhecimento como o principal fator de produção. Articuladamente com tais metamorfoses, carecemos com certa urgência de um aprofundamento crítico na ideia de salário. Um bom ponto de partida em tal questão pode ser o artigo exemplar de Franco Montoro, escrito em 1964, como se disse no início de nosso percurso.

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