Vivemos uma crise civilizatória profunda, explicitada pelo novo coronavírus, mas sugerida ou anunciada já há alguns anos por diversos indícios, em diferentes contextos.

Um exemplo notável de tais indícios, associado ao uso crescente das redes informacionais, é uma identificação indevida entre as noções de links e de laços, bem como uma crescente promiscuidade nas relações entre o público e o privado, com naturais implicações de natureza ética., especialmente no terreno da vergonha,

Outro indício eloquente de crise sistêmica é o desequilíbrio crescente na distribuição de bens e serviços, o que tem provocado em quase todos os lugares uma desvalorização do trabalho humano e um aumento indecente na desigualdade econômica.

 Uma busca acrítica e desesperada pelo crescimento econômico e pela inovação a qualquer custo, como se o novo constituísse um valor em si, e uma expectativa de sustentabilidade absolutamente irreal, uma vez que, de modo geral, a vida não é sustentável, e um crescimento tumoral nunca é desejável. 

Com o advento do coronavírus, essas e outras questões se entrelaçam e a crise latente se agiganta e parece conduzir ao desespero; os problemas básicos, no entanto, já estavam aí, bem nítidos, diante de nossos olhos.

Para sobreviver à crise ampla e irrestrita, alimentamos a expectativa de que tudo vai passar, tudo vai voltar ao normal, mas o caminho não parece ser por aí.

Voltar simplesmente à situação anterior ao vírus é pouco, é inserir-se na velha trama e esperar pela eclosão de nova crise, que inevitavelmente virá, quem sabe, com um novíssimo vírus a ser decifrado. Não podemos perder a oportunidade de aprender com a profunda crise, de articular elementos para construir um novo “normal”; restabelecer as relações que já vivenciávamos no passado recente não parece aceitável, é contentar-se com muito pouco.

Uma consciência mínima sobre a natureza da crise atual aponta para a transformação do conhecimento com principal fator de produção, o que traz implicações profundas na compreensão das relações entre Ética, Economia e Educação.

De fato, a crise mundial atual somente aparentemente é causada pelo novo vírus. O cerne da questão é a transformação do conhecimento em mercadoria em sentido industrial. Ninguém sabe mais com nitidez determinar o PIB de um país. O conhecimento é um ativo que posso dar, vender ou trocar sem ficar sem ele.  É um bem que quanto mais uso, mais novo ele fica; é uma commodity da qual não se pode determinar o estoque. É um valor que, diferentemente de bens materiais, não se pode distribuir por decreto: o único meio de partilhar conhecimento é a Educação.

Algumas lições aprendidas ao longo da crise atual precisam articular-se e ganhar consistência no novo cenário que poderá advir. Sobre algumas delas serão esboçadas algumas referências a seguir. Oito pontos principais a serem lembrados; não por acaso, cada um deles tem a ver com uma reconstrução da ideia de conhecimento como um valor:

  1. A integração entre os universos do Conhecimento e da Economia é total

No período industrial (1750-1950), a marca das relações entre o mundo do conhecimento e o da economia era a aplicabilidade: estudar matérias era fundamental para aplicá-las ao mundo do trabalho. Tal período foi ponte de passagem para a transformação do conhecimento em mercadoria em sentido industrial. Hoje, vivemos na antessala de um novo período, em que o conhecimento é o principal fator de produção: o grande desafio é não identificar as noções de valor e de preço, ou a ideia de valor em sentido econômico e no terreno da Ética.

  • O futuro do Trabalho é a Educação

Na Grécia antiga, um pai não diria ao filho “estudar para garantir um bom emprego”: os universos do Trabalho e da Educação eram desconectados. Hoje, a integração entre os universos do conhecimento e do trabalho conduz ao fato de que aprendemos continuamente, toda formação é uma formação inicial. À Escola compete fornecer uma formação básica em competências gerais como capacidade de análise, de síntese, de argumentação para a tomada de decisões, de articulação entre a realidade e a imaginação. A aprendizagem do manuseio de ferramentas tecnológicas específicas dar-se-á cada vez mais no universo do trabalho, ainda que muitas empresas ainda ensaiem reclamar de que os alunos seriam carentes de tal formação. Soa um pouco cínica a ideia de que uma universidade tenha como função ensinar o uso específico de tais ou quais equipamentos: decisivamente, isso se aprende no trabalho.   

  • A utilidade, paulatinamente, dá lugar ao significado.

Um poema não é útil: ele expressa, significa, nos faz sentir. De modo geral, a arte significa, e as movimentações produzidas pelo mercado da arte não passam de uma pálida ideia do significado da arte. No mundo do trabalho, ainda que se busque continuamente uma articulação entre o prazer no que se realiza e o sucesso financeiro, o significado das ações que realizamos é mais importante do que os bens materiais delas derivados. Platão caracterizava o escravo como alguém que não tem projetos, que vive para realizar o projeto dos outros. Na Grécia antiga, os escravos não tinham salário; atualmente, ter ou não ter salário é um pormenor.

  • Valorizar o conhecimento é valorizar o trabalho.

Em todas as suas formas, o trabalho é o motor da ação humana, é o meio principal de construir o significado da vida. Entre outros problemas, a concepção de trabalho tem mantido uma relação promíscua com a ideia de renda. Uma questão a ser considerada é o fato de que trabalho não é renda: de quem vive de salário não se diz que “vive de rendas”. Viver de rendas é viver de dinheiro produzido por dinheiro, como no caso das aplicações financeiras. Pode ser economicamente justo fazer dinheiro render dinheiro, mas é significativamente diferente de viver de seu salário, fruto de seu trabalho.

  • Renda não é tudo

Em diversos países do mundo, os juros oferecidos ao capital são muito baixos; em alguns casos, os juros são negativos, ou seja, paga-se ao capital empregado nominalmente menos do que se custou seu empréstimo, desde que ele seja utilizado para produzir empregos, para semear atividades socialmente relevantes.

  • O Mercado é fundamental, mas não basta.

Em todo o mundo, relações dadivosas entrelaçam-se com relações mercantis. Não vivemos apenas de compras e vendas de mercadorias em sentido industrial. As relações mercantis convivem com as relações dadivosas, que buscam o laço com os outros. O mercado mais agressivo não sobrevive sem uma estrutura de dádivas simuladas, de presentes dissimulados, como tão bem explicita o calendário anual de vendas, em que sobrelevam datas como “dia das mães”, “dia dos pais”, “dia das crianças” etc.

  • Na relação com a Tecnologia, o ser humano é o valor fim.

Sobretudo no que se refere à repartição do tempo, aos novos ritmos de ação/atuação, não é possível tergiversar: as tecnologias são e serão sempre da ordem dos meios: o valor fim será sempre o ser humano. Se seu coração está batendo cada vez mais rapidamente, não pense que estaria tendo um upgrade, uma melhoria no chip… busque um médico. Meu computador não tem, e nunca terá, grilos existenciais associados a perturbações em seu “projeto de vida” pelo simples fato de que ele não tem projeto, nem vida.

  • Não é possível ignorar o renascimento da ideia de profissionalismo.

Em todo o mundo, renasce a ideia simples de que a vida junto com os outros não pode prescindir, na organização social da noção de profissionalismo. Um profissional é membro de um tipo de ocupação, vital para a vida social, que não pode ser regulada inteiramente pelo mercado, nem pelo Estado: são os profissionais. A marca do profissionalismo é a existência necessária de instâncias de autorregulação entre o mercado e o Estado. Em momentos de crise social como a que vivemos atualmente, em termos ideais, sobressaem profissões como bombeiros, médicos, enfermeiros, políticos, entre outras, caracterizando espaços de ação em que a competência técnica se alia ao compromisso público, ao assumir as responsabilidades inerentes às ações realizadas.

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