Há uma doença que ataca o mundo inteiro, produzindo estragos consistentes no modo de ser do ser humano. Mais letal que a febre amarela, tem as características de uma verdadeira pandemia: trata-se do crescimento desordenado da desigualdade de renda, uma espécie especialmente agressiva de câncer social. Alguns indicadores numéricos de tal síndrome: 1% da população mundial tem nas mãos 82% de toda a riqueza produzida; 50% da população mundial vive com uma renda de 2 a 10 dólares por dia; apenas 5 brasileiros ultrarricos têm em mãos 50% da população de renda mais baixa. Os dados são extraídos do Relatório recentemente divulgado pela ONG britânica OXFAM, mas números similares têm sido apresentados desde que a Revista Forbes instaurou a publicação periódica de tais listas de bilionários, em 1987. E o abismo que separa ultrarricos de superpobres somente tem aumentado, ano após ano. Todo o sistema econômico é organizado tendo por base princípios de promoção da desigualdade. O fundador /proprietário de uma marca de roupas (a Zara), um dos homens mais ricos do mundo, paga cerca de 4 dólares por dia aos trabalhadores que emprega, ao mesmo tempo que recebe cerca de 1,5 bilhão de dólares de dividendos oriundos de sua vasta produção. Em grande parte das empresas, a remuneração dos executivos corresponde até 20 vezes o salário médio dos encarregados pela produção.  No Brasil, considerado um dos países mais desiguais do mundo no que se refere à distribuição da riqueza produzida, os impostos correspondentes à transmissão de heranças atingem no máximo 8%  do patrimônio, enquanto no Reino Unido pode chegar a 40%. De modo geral, os 10% mais pobres do Brasil gastam 32% de sua renda em tributos, enquanto os 10% mais ricos gastam cerca de 21%.

Para corrigir a anomalia de tal estado de coisas, não faltam ideias interessantes, mas sim a coragem de implementá-las. Uma Reforma Tributária teria que partir de uma valorização efetiva do trabalho, em contraposição às rendas provenientes do patrimônio e da riqueza. Precarizar as condições de trabalho, minimizar despesas, especialmente com salários, tendo em vista maximizar lucros, é um caminho que já sabemos onde vai dar. Políticas compensatórias, do tipo Renda Mínima, são paliativas, não atingindo o cerne das causas da desigualdade excessiva, de natureza economicamente cancerosa. É fundamental manter o foco das atenções no fato de que quem vive de salário não vive de rendas… O sistema tributário não pode fazer vista grossa para o fato de que a única maneira justa de distribuição de renda é a justa remuneração do trabalho.  Compensações para situações especiais, em que deficiências físicas ou resultantes da idade são evidentemente necessárias, mas a regra geral deveria ser, sem dúvidas, a distribuição da riqueza por meio de uma remuneração digna, qualquer que seja a natureza do trabalho realizado. Um problema teórico importante dificulta, no entanto, qualquer iniciativa que possa ser tomada no sentido acima indicado. Em uma época em que o conhecimento se transformou no principal fator de produção, constituindo a grande riqueza a ser distribuída, não sabemos como atribuir valor a tal riqueza, persistindo a intenção tácita de tratá-la como se tratam as mercadorias em sentido industrial. Mas o conhecimento não se esgota em sua dimensão mercantil. Ele é um bem que se pode dar, vender ou trocar sem ficar sem… Trata-se de uma fonte de paradoxos, em nossa tosca contabilidade mercantil. Trabalhos como a economista Elinor Ostrom, primeira mulher a receber o Prêmio Nobel de Economia (2009) com o conceito de commons,para se contrapor ao de commodities, ainda permanecem incipientes. Ao incluir o conhecimento na categoria de commons, como o ar ou a água que nos mantêm vivos, Ostrom apontou numa direção auspiciosa, mas seu falecimento poucos anos depois da obtenção do Nobel pode ter atrasado um pouco a amplificação de suas ideias.

Um ponto crucial, no entanto, permanece pouco referido pela maior parte dos analistas da problemática da contabilidade das riquezas e de sua distribuição mais justa: não sabemos mais como calcular o PIB a ser partilhado. De fato, a produção de riquezas distribui-se pelo mundo mais em função de facilidades tributárias do que da nacionalidade das empresas, o que pode não afetar o PIB mundial, mas afeta drasticamente o PIB de cada país. Mais grave ainda, no entanto, é o fato de que a rede mundial de computadores, que transformou noções de tempo e de espaço, está a redefinir a própria ideia de moeda, com bitcoins ou outras criptoficções. É sintomático que se fale muito mais de aumento ou diminuição dos PIBs nacionais, sem referência mais explícita ao PIB mundial, às miraculosas startups, que extraem valor do nada, ou das criptomoedas, uma verdadeira febre amarela que ainda devorará o fígado de muitos investidores, que transformam esperteza em riqueza.

A situação não é simples, exigindo grandeza na concepção de riqueza. A Economia Virtual poderá nos levar a descobrir que a explosão do big bang, em vez do início de tudo, poderia ser o ato final de uma brincadeira de mau gosto.

********SP 22-01-2018

No comment

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *