Sobre o Ensino e a Pesquisa

Quinze quilos de reflexões*

Nílson José Machado

                                              njmachad@usp.br                                                  www.nilsonjosemachado.net

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Sumário

1. Ensinar e Pesquisar é Descobrir ou Inventar?

2.  Ensino e Pesquisa: uma integração natural

3. Pesquisa Científica não é Pesquisa de Opinião

4. Na Pesquisa ou no Ensino: Ideias Fundamentais

5. Projetos de Pesquisa: considerações acacianas

6. Universidade: o dogma da indissociabilidade ensino/pesquisa/extensão

7. Universidade: sete desvios na ideia de pesquisa

8. Pesquisa: a superestimação da metodologia

9. Pesquisa: a artificialidade do referencial teórico

10. Pesquisa: o abuso da linguagem técnica

11. Pesquisa: a quantificação como camuflagem

12. Pesquisa: a opção pela caricatura

13. Pesquisa: os objetivos excessivamente modestos

14. Pesquisa: o número exagerado de citações

15. Pesquisa: cuidado com os cuidados

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* Cada um dos quinze textos contém exatamente 1000 caracteres (1 quilo de caracteres).

                          São Paulo, out/19

  1. Ensinar e Pesquisar é Descobrir ou Inventar?

A frase é de A. Fleming: “A natureza faz a penicilina (bolor); eu somente a descobri”. De modo similar, o matemático que apresentou ao mundo o fato de que a razão entre o comprimento de uma circunferência e seu diâmetro é constante e igual a pouco mais que 3 (cerca de 3,14), tanto em uma pequena aliança, um pneu de um automóvel, ou no equador terrestre, ele descobriu ou inventou este fato? Para Platão, todo conhecer é um reconhecer o que já se sabia sem saber que sabia; um matemático descobre relações entre objetos ideais, de uma realidade supra empírica. Já na visão de Aristóteles, o conhecimento é construído a partir de nossas percepções sensoriais, sendo o matemático um criador, um inventor de relações. No ensino e na pesquisa, não parecem tão distantes a descoberta e a criação. Numa aula bem arquitetada, o professor constrói as condições para que os alunos descubram relações, ao mesmo tempo, revela fatos notáveis da temática, para despertar o interesse e a criatividade dos alunos.

2 – Ensino e Pesquisa: uma integração natural

É quase impossível ensinar sem fazer algum tipo de pesquisa. As duas atividades pressupõem a criação de centros de interesses em uma temática relevante, enraizada em contextos problematizadores. Nos dois casos, é fundamental explicitar perguntas nítidas a serem respondidas e objetivos claros a serem atingidos. Uma ação docente competente sempre inspira descobertas por parte dos alunos.

Não se trata de o professor simular, na aula, que desconhece os temas básicos que ensina, fingindo surpresas ou mimetizando a história das pesquisas científicas. O ensino e a pesquisa estão associados de modo natural ao aparecimento do novo. Para o aluno, a novidade pode referir-se ao conteúdo; para o professor, mais provavelmente ela estará relacionada à forma. Em qualquer caso, uma aula sempre representa a construção de novas significações.

O recado básico para professores é simples: quem acha que nada mais tem a descobrir e aprender em sua atividade docente, mais provavelmente nada mais tem a ensinar.

  • Pesquisa Científica não é Pesquisa de Opinião

Na linguagem ordinária, a expressão “fazer uma pesquisa” significa, às vezes, ouvir as pessoas de uma população sobre dado tema, produzindo-se resultados tão expressivos quanto o fato de que 7 em cada 10 entrevistados significa 70%. Uma pesquisa de opinião pode ser realizada de forma metodologicamente adequada, considerando-se o conhecimento estatístico, mas o resultado de uma pesquisa científica não é determinado pela opinião dos envolvidos, não exige uma sintonia com qualquer regra da maioria, não é similar, portanto, a uma pesquisa de opinião. A doxa (opinião) e a episteme (Ciência) são diferentes instâncias na construção do conhecimento. Em cada fenômeno estudado, importam as opiniões dos investigadores, que podem conversar e trocar ideias a respeito do que pensam, mas os resultados são racionalmente considerados, não decorrendo de meros caprichos da Curva Normal, que praticamente ignora tudo o que se situa a dois ou mais desvios padrão em relação às médias, tantas vezes insípidas.

  • Na Pesquisa ou no Ensino: Ideias Fundamentais  

           A fragmentação excessiva dos conteúdos é uma marca das atividades de ensino, sobretudo nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio. Um sintoma similar ocorre na educação infantil e nas séries iniciais do fundamental: as atividades de ensino limitadas a metodologias, mesmo sendo agradáveis, podem resultar fragmentadas, esgotando-se em aspectos lúdicos. Um antídoto para tais desvios é a concentração das atenções nas ideias fundamentais dos conteúdos. O fato de que tais ideias são passíveis de apresentação na linguagem ordinária, nunca se apresentam isoladamente, como penduricalhos, e sempre transbordam os limites da disciplina em que se originam, torna a articulação interna da disciplina e a articulação entre as diversas disciplinas especialmente favorecidas. E como a realidade não se organiza disciplinarmente, o foco nas ideias fundamentais tem ainda como efeito colateral aproximar estruturalmente as atividades de ensino, ligadas à escola, e as de pesquisa, ligadas à vida.  

5 – Projetos de Pesquisa: considerações acacianas

Um projeto de pesquisa precisa delimitar uma temática, não pode dizer respeito a tudo. Em tal temática, é necessário expressar uma dúvida, um problema cuja solução se desconhece, uma pergunta nítida ainda sem resposta. Naturalmente, espera-se que seja apresentada uma justificativa da relevância de tal dúvida, pergunta ou problema a ser estudado.

Cabe ao pesquisador, por mais original que lhe pareça sua pesquisa, apresentar referências a trabalhos ou autores que examinaram questões análogas: afinal, o mundo não se inicia com seu projeto. É fundamental também que esboce a metodologia a ser seguida, ou seja, indique o tipo de pesquisa a ser realizada: de campo, bibliográfica, teórica… Para merecer a expectativa de resultados, um projeto deve ir além das boas intenções do pesquisador. E é de bom alvitre uma bibliografia específica, que revele as fontes principais da investigação a ser realizada. Tudo isso parece muito acaciano, muito óbvio, mas frequentemente não é levado em consideração.

6. Universidade: o dogma da indissociabilidade ensino / pesquisa / extensão

Na Universidade brasileira, a docência, a pesquisa e a extensão de serviços à comunidade são consideradas indissociáveis. Tal “dogma”, no entanto, em vez de qualificar a instituição, tem produzido alguns efeitos negativos nas práticas acadêmicas.

Não está em questão a exigência da pesquisa para a caracterização de uma Universidade; isso, porém, não deveria obrigar cada um dos docentes, em todas as etapas da carreira, a realizar projetos de pesquisa. Essa obrigação tende a minar a ideia de projeto, e levar o rótulo de “pesquisa” a ser utilizado em amplo rol de atividades menores.  

Uma pesquisa exige temática relevante, sobre a qual temos uma dúvida sincera, traduzida em uma pergunta nítida, além da competência teórica para buscar uma resposta. A leitura de alguns “projetos de pesquisa” disponíveis em vários sites oficiais leva-nos a concluir que, se todos são obrigados a pesquisar o tempo todo, o efeito perverso é o inverso do esperado. E a ideia de pesquisa é completamente banalizada.

7. Universidade: sete desvios na ideia de Pesquisa

Analisando o mar de pesquisas acadêmicas atualmente produzidas, é possível constatar algumas de suas mazelas, sete das quais serão aqui apontadas.

A primeira é a superestimação do papel da metodologia, que funciona como um esconderijo para o conteúdo da pesquisa.

A segunda é a artificialidade do referencial teórico, que se torna um atestado de óbito independente do defunto.

A terceira é o abuso da linguagem técnica, o que dificulta a compreensão de quem não é cúmplice da investigação.

A quarta é o recurso à quantificação como uma camuflagem, enfatizando a máxima absurda de que “os dados falam por si”.

A quinta é a opção pela caricatura do que se pretende criticar, o que facilita a obtenção de resultados, mas a torna inócua.

A sexta é a fixação de objetivos excessivamente modestos, o que “condena” a pesquisa a ser bem sucedida, mesmo as irrelevantes.

A sétima é o número exagerado de citações, o que torna a pesquisa um repertório de ecos, ou de ecos de ecos: a voz do autor sequer é percebida.

8. Pesquisa: a superestimação da metodologia

A palavra método deriva de metá (objetivo)e hodós (caminho): trata-se do caminho para atingir uma meta prefigurada.

A escolha do método é muito importante para quem sabe o que quer. Para quem não tem objetivos claros, ou tem dúvidas sobre as metas, recorrer à melhor metodologia é inócuo e pode até ser perigoso. Afinal, não há vento que ajude um barco sem rumo; e quem está indo para o inferno, se escolher o melhor caminho, morrerá queimado mais rapidamente. 

Há pesquisas que se ocupam tanto da explicitação da metodologia que os objetivos visados são quase esquecidos e resvalam para um segundo plano. É como se a escolha de um caminho bem limpo e iluminado fosse sempre preferível, ainda que ele nada tenha a ver com o fim que se busca.

O método é sempre da ordem dos meios e os meios não devem preponderar sobre os fins. Afinal, como dizia Nietzsche, “quem tem um porquê, arruma um como”. A marca registrada de uma pesquisa é o objetivo que busca: a metodologia é sempre tributária de tal fim.

9. Pesquisa: a artificialidade do referencial teórico

Uma pesquisa pressupõe um referencial teórico, tácito ou explícito, mas não basta um referencial teórico interessante para caracterizar uma boa pesquisa. É comum uma ênfase à filiação a determinados autores ou linhas de investigação. Algumas se dizem “pesquisa-ação”, outras se pretendem “qualitativas”, muitas desfrutam do rótulo de “construtivistas”, ou de “sócio-interacionistas” etc.

A sedução de certos autores é tamanha que a referência a eles é usada como indício suficiente de qualidade. Uma citação de Piaget costuma encaixar-se bem em qualquer situação. Há casos em que os textos parecem dizer: “Esta pesquisa não recorre ao referencial teórico piagetiano, mas, se o fizesse, trataria de esquemas de assimilação/acomodação, da abstração reflexiva etc, etc.”

Entre a profissão de fé que o suposto referencial teórico representa e o efetivo trabalho realizado existe, muitas vezes, certo descolamento. Daí a resvalar-se para falta de integridade ou para a simples hipocrisia é apenas um passo.

10. Pesquisa: o abuso da linguagem técnica

Em Amor y Pedagogia, Unamuno critica o cientificismo exagerado do final do século XIX. Chama de Cocotologia a ciência das ciências, que consistiria na “embananação” do banal, por meio do recurso a uma linguagem artificialmente sofisticada, para impressionar incautos. A construção de um passarinho de papel (cocotte) seria a gestação de um óvulo quadrado papiráceo; um bêbado seria um indivíduo etilicamente saturado; uma “conversa mole” seria uma tertúlia flácida; e assim por diante.

O fato é que a linguagem utilizada em certas pesquisas parece desnecessariamente cocotológica. A compreensão de temas acadêmicos supõe conhecimentos específicos, mas a comunicação do significado das pesquisas ao grande público deveria ser convertida em uma necessidade profissional.

O abuso do jargão técnico costuma ser indício de incapacidade do pesquisador na escolha de uma escala adequada para tratamento de seus temas. Ao mesmo tempo, é um desrespeito ao cidadão interessado que não é cúmplice do pesquisador.

11. Pesquisa: a quantificação como camuflagem

Há quem creia, como Rutherford, que o qualitativo não é mais que um quantitativo pobre, mas o endeusamento dos números na realização de uma pesquisa pode ser igualmente caricato. Indicadores numéricos podem revelar relações de interdependência importantes e são muito bem-vindos. Mas devem ser cautelosamente interpretados, uma vez que tanto podem esconder quanto revelar, ou traduzir meras trivialidades. A estatística presta-se especialmente a utilizações enevoadas e a inferências ingênuas ou descabidas.

Uma pesquisa exige uma temática relevante sobre a qual temos dúvidas sinceras, traduzidas em perguntas nítidas. A competência teórica na busca de respostas pode incluir a expressão numérica dos resultados obtidos, quando for o caso, mas os números virão sempre a reboque das ideias defendidas, para referendá-las ou refutá-las.

Nunca será prudente esperar que os números falem por si. E é bom lembrar que, se os números não mentem, mentirosos usam números: Figures don`t lie, but liars figure…

12. Pesquisa: a opção pela caricatura

A caracterização do problema a ser enfrentado é a ante-sala da formulação dos objetivos de uma pesquisa. Em tal etapa, é fundamental resistir à opção pela caricatura, que pode facilitar a tarefa do pesquisador, mas certamente mina os resultados da pesquisa.

Se “nenhuma pesquisa foi feita até agora sobre o tema”, isso tanto pode indicar o pioneirismo quanto a irrelevância do tema. Se nada do que foi produzido sobre a temática é relevante, o pesquisador pode ser um gênio, ou, mais provavelmente, um presunçoso. Se a defesa de um “novo papel do professor” baseia-se em crítica genérica ao “professor tradicional”, caracterizado como um monstro que apenas dá “aulas expositivas” e considera os alunos “receptáculos de conhecimento”, então é fácil ter objetivos quixotescos, mas o que se combate são moinhos de vento.

Ao amplificar artificialmente os problemas a serem enfrentados, fabricando caricaturas do existente, o pesquisador faz propaganda enganosa, correndo o risco de perder a credibilidade.

13. Pesquisa: os objetivos excessivamente modestos

É comum em jovens pesquisadores a ambição desmesurada na caracterização do problema da pesquisa a ser realizada. A introdução histórica pode, às vezes, ser intitulada “Deus e sua época”. E a impressão que resulta da leitura da lista de objetivos é que nada mais restará por fazer, após sua conclusão. Tal fato geralmente tem cura: o próprio amadurecimento do pesquisador conduz a um maior discernimento nos recortes temáticos.

Um desvio menos benigno é o excesso de modéstia, ou a falta de ambição nos objetivos, o que condena a pesquisa a um “sucesso” morno e insípido. É o que ocorre quando tudo o que se pretende é “dar alguma contribuição ao estudo de…”, ou “fornecer alguns subsídios para…”, ou ainda, “verificar se, melhorando a formação do professor, melhora o nível dos alunos”, e assim por diante.

Há pesquisas que apresentam perguntas tão singelas e objetivos tão modestos que nem precisariam ser realizadas para respondê-las ou alcançá-los. Pesquisa: é preciso não usar seu nome em vão.  

14. Pesquisa: o número exagerado de citações

Deixemos de lado o desvio aético das citações cruzadas, trocadas como gentilezas: ainda assim, costuma ser exagerado o número de citações em grande parte das pesquisas. Coligidas de modo sincrético, seu uso nem sempre é adequado e elas podem esconder a voz do pesquisador.

Ninguém melhor do que Calvino, em Seis propostas para o próximo milênio, caracterizou o papel das citações em um texto:

 se o discorrer sobre um problema fosse como transportar pesos, muitos cavalos poderiam transportar mais do que um só cavalo; mas o discorrer é como o correr, e um só cavalo árabe há de correr mais do que cem cavalos frísios…

Citamos um autor quando consideramos que ele disse o que queríamos dizer de uma maneira tão ágil, tão adequada ao que pretendemos que não convém parafraseá-lo. Partilhamos o sentimento do autor e acolhemos suas palavras em nosso texto e as fazemos nossas. Não nos escondemos atrás delas, nem nos limitamos a ecoá-las, ou a produzir ecos de ecos: a voz do citado torna-se nossa voz.

15. Pesquisa: cuidado com os cuidados

Parafraseando o poeta, “são demais os perigos da pesquisa pra quem tem paixão”. Mas não existe vida – ou pesquisa – sem riscos, sem experimentação.

Um pesquisador apaixonado pode pecar por excesso ou por falta de ambição, pela paranóia ou pela frouxidão metodológica, pelo excesso de linguagem técnica ou pela pobreza terminológica, pelo pedantismo no recurso à teoria ou pela contenção nos limites do senso comum.

É importante ter cuidado para não derrapar em cascas de banana; mais importante ainda é ter CUIDADO COM OS CUIDADOS, para que eles não conduzam ao medo de correr riscos, que é como uma castração. 

Viver é lançar-se para frente em busca de metas prefiguradas, mas não garantidas, sem levar demasiadamente a sério os limites. Como disse uma vez Cocteau, “não sabendo que era impossível, eles foram lá e fizeram…”   

É preciso, pois, cuidar para que os CUIDADOS não provoquem um só aborto, não mutilem nem violem, não atropelem o momento, não censurem nem impeçam o natural crescimento.       

         *******SP/out2019

Referências Bibliográficas

Andreski, Stanislaw. – Las ciencias sociales como forma de brujeria. Madrid: Taurus, 1973

Machado, N. J. – Ética e Educação.  São Paulo: Ateliê Editorial, 2012.

Machado, N. J. – Livro de Bolso da Formação do Professor. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2016

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