O desprezo pela tradição costuma ser a regra:  o tradicional parece sinônimo de ultrapassado. A filosofia da pós-modernidade pretendeu reduzir as certezas da razão cristalina a pó, na trilha do aforismo marxiano: “Tudo o que é sólido desmancha no ar. É de Horkheimer um alerta importante, que insinua a precipitação na pulverização da razão, em seu extraordinário livro Eclipse da razão (1946). A feliz metáfora do título espraia-se por todo o texto: a razão iluminista não acabou, trata-se apenas de um eclipse, vai passar, vai passar. A atualização de concepções e a conservação de valores considerados ultrapassados é realizada com prudência e parcimônia, passando bem longe do mero desprezo pela tradição. Em texto escrito poucos anos depois (1954), explicitamente, Hannah Arendt  levanta a bola da tradição, diagnosticando o abandono da autoridade que lhe era conferida sem a necessária e correspondente emergência de outra forma de legitimação da concertação das ações coletivas na raiz das dificuldades com a Educação. Mas foi Bauman em uma de suas últimas obras (Babel: entre a incerteza e a esperança, 2016), que fundamentou de modo especialmente consistente o papel da tradição na construção, consolidação e atualização de valores, com sua ideia de retrotopia. É fato que ele já houvera sido extremamente feliz com sua fecunda metáfora da liquidez: a pós-modernidade reduziu nossas certezas cristalinas não a pó mas ao estado líquido: perde-se a rigidez da forma, mas a quantidade, o volume se conserva. O cristal não vira pó e se desfaz, o fio da conservação é  preservado na mudança de estado, ele apenas se liquefaz. Com o que pode ter sido um de suas últimas ideias fundamentais, ele pretende que não podemos descrê ou abandonar as utopias: é necessário, no entanto, projetar o futuro sem deixar de olhar para o passado, de se orientar por ele. Como o deus Jano, é preciso olhar para frente e simultaneamente olhar para trás: tal é a ideia de retrotopia. Que pena que Bauman se foi…

********SP 15-03-2017

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