Primeiro veio a Pós-Modernidade, que reduziu as certezas da razão iluminista a pó, e colocou sob suspeita toda tentativa de caracterização de uma verdade em sentido absoluto. Da relativa ingenuidade da busca de tal verdade, fomos conduzidos à verdade como coerência em sentido lógico, e daí a uma relativização de tal ideia, que passaria a ser, necessariamente, tributária de um contexto. A multiplicidade de contextos conduziu paulatinamente a uma aparente relativização da noção de verdade. Mas a imensa diversidade de contextos não significa um esvaziamento da verdade, que precisa permanecer no horizonte de toda argumentação bem intencionada. É certo que ser ou não ser verdade é uma questão complexa, e ganhou espaço certa flexibilização das fronteiras entre ser ou parecer. Mas não podemos nos contentar com a identificação da ideia de verdade com a de uma narrativa consistente. Seria como se, na reconstituição de um crime, conduzida pela polícia, a coerência da narrativa fosse suficiente para a garantia da culpabilidade do suspeito. Diante de tais dificuldades conceituais, um justo enfraquecimento da razão estritamente formal não pode conduzir a um terreno minado em que as opiniões passem a predominar sobre as demonstrações, e a distinção entre verdades e crenças não justificadas não se faça necessária.

Uma nova acrobacia, especialmente arriscada, é, agora, ensaiada.  Da relatividade absoluta, passa-se agora à proclamação  da inexistência da verdade. Extrapolando-se o ceticismo da pós-modernidade, pretende-se, agora, uma caracterização do que seria uma pós-verdade. Em tal cenário, a aparência substitui a essência, o parecer ocupa o lugar do ser, a coerência torna-se sinônimo de verdade. E os meios de comunicação, especialmente os eletrônicos, abrem espaços generosos para as chamadas fake news. A sintonia entre o divulgado e o que pensamos não pode dispensar o cuidado com a verificação das fontes. Um juiz de futebol não é desonesto apenas quando intencionalmente favorece nosso adversário, mas também quando nos favorece.

Reiteramos, no entanto, que a existência da verdade permanece no horizonte, tanto de uma  descomprometida conversa, que busca uma partilha ou troca de opiniões, quanto de uma argumentação sincera, bem intencionada, em que se pretende justificar proposições, fundamentar escolhas.

Para explicitar tal posição, consideremos a afirmação “Não existem retas no mundo”. Certamente, poder-se-ia discutir o que seria uma reta: o caminho mais curto entre dois pontos? a trajetória da luz no vácuo? uma geodésica? A dificuldade, no entanto, está em definir-se o que é uma reta, mas todos têm uma ideia do que seria a retidão. Mesmo sem definições precisas, somos capazes de distinguir retas de não retas, no dia a dia. E compreendemos que as curvas, das mais simples às mais complexas, podem ser aproximadas por retas de maneira sugestiva e proveitosa nas proximidades de um ponto.  As retas tangentes são especialmente interessantes na aproximação local de curvas por retas. Não existe uma reta única, absoluta, que aproxima satisfatoriamente dada curva, em toda sua extensão, mas, localmente, em cada contexto, existe uma reta que mais bem representa a curva referida.

Algo similar ocorre quando pensamos sobre a ideia de verdade. Mesmo sem definições precisas, distinguimos a retidão da verdade e a complexidade da não verdade, nos mais diversos contextos. Quando se pretende a inexistência de uma verdade absoluta, é como se se registrasse que não existe uma reta única que traduz a complexidade da curva/narrativa em toda sua extensão, mas, localmente, em cada ponto, em cada contexto, existe a possibilidade de retificação, de referência à verdadeira retidão.

Naturalmente, não se está insinuando, nem de longe, que tal aproximação local de uma curva genérica por uma reta seria imediata e trivial: é preciso estudo e dedicação para compreender isso. Uma aproximação dos elementos teóricos de tal estudo pode ser encontrada no Cálculo Diferencial…

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