Desde que entrou em cena, há cerca de 20 anos, a ideia de competência tem sido tratada de modo ambíguo, ora com extrema reverência, minimizando o papel dos conteúdos disciplinares, ora sendo duramente criticada por meio da associação com impertinentes caricaturas, o que facilita o trabalho do crítico, mas soa como uma espécie de trapaça.

Etimologicamente, a palavra competência tem origem na junção com + petere, expressão que significa saber buscar junto com os outros. Numa frase, a ideia de competência pode ser entendida como a capacidade de mobilizar o que se sabe para realizar o que se deseja, o que se projeta. Não pode ser competente quem nada busca, que nada quer; a inapetência é a antessala da incompetência. Por outro lado, quem age sempre isoladamente, sem o outro, pode ser muito “petente”, mas não “competente”. Nos primeiros currículos ocidentais, estudavam-se três disciplinas – Gramática, Lógica e Retórica – cujos conteúdos relacionavam-se diretamente com a formação pessoal esperada: o conhecimento da Língua nos aproxima visceralmente do outro; a capacidade lógica de argumentação nos abre portas para o acordo e a consciência; e na dimensão retórica do discurso buscamos formas eficazes de expressão e de argumentação, tendo em vista convencer, ou vencer junto com o outro. Não passava pela cabeça de ninguém que as disciplinas seriam fins em si mesmas: a todos era claro que constituíam meios para o desenvolvimento e a formação pessoal.

Com a ciência moderna, o número de disciplinas escolares aumentou muito, e a busca de uma síntese relativa ao que se buscava por meio delas se tornou necessária. Para nossos avós, no entanto, não parecia um grande problema: estudamos História, Geografia, Português, Matemática, Ciências, Fillosofia, etc, mas, ao fim e ao cabo, ao saírem da escola, os alunos deveriam saber Ler, Escrever e Contar: tais três “Rs” seriam as competências consideradas fundamentais a serem evidenciadas por todos.

Nas últimas décadas, a fragmentação disciplinar agravou-se e os currículos multidisciplinares passaram a reivindicar ações de interdisciplinaridade, de transdisciplinaridade, e a buscar formas de articulação como a reunião das disciplinas em áreas do conhecimento. Uma lista de competências a serem desenvolvidas por meio das disciplinas pretendeu explicitar, a partir do final da década de 1990, uma atualização da tríade Ler, Escrever e Contar.

Com o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), criado em 1998, uma lista de cinco competências básicas foi anunciada como fins a serem perseguidos por todas as disciplinas. Tais seriam as capacidades de expressão de si, de compreensão do outro, de argumentação, de enfrentar situações-problema em diferentes contextos, e de, extrapolando as análises, fazer propostas de intervenção solidária na realidade. Todas as disciplinas teriam, então, como função no currículo propiciar o desenvolvimento de tais competências gerais.

Alguns desvios de percurso ocorreram, e as cinco competências gerais enunciadas pelo documento instituidor dos primeiros exames do ENEM transformaram-se em mais de 100 competências nas quase seiscentas páginas da Base Nacional Comum Curricular. Compreensões aligeiradas da ideia de competência levaram a uma redução do significado da mesma a sua dimensão técnica, afastando-se paulatinamente do terreno dos valores, imediatamente presente nas formulações iniciais. A partir daí a expressão “competências sócio-emocionais” passou a ser utilizada com frequência crescente, registrando-se que não bastam as “competências cognitivas”, seja lá o que esta última expressão signifique… Desde o início, aqui entre nós e no mundo, a ideia de competência não se reduzia a sua dimensão técnica, incluindo explicitamente valores que favoreçam a ação junto com os outros. Reiteramos o que anteriormente já registramos: quem somente pensa em si, quem não se sujeita, não se submete à existência do outro, pode ser muito “petente”, mas não seria “competente”. Fazer uma caricatura da ideia de competência, ignorando sua relação primária com os valores, pode facilitar a crítica, mas não parece consistente com a história da ideia.

Circunstancialmente, assistindo a uma interessante apresentação de um competente professor, justamente reconhecido como uma autoridade na área da tecnologia educacional, deparamos com uma afirmação sobre a noção de competência que certamente poderá atrair adeptos e repercutir entre os participantes do evento em questão (www.youtube.com/watch?v=lcq9cXBAIA), mas que não me parece passar de uma nova caricatura de tal ideia. Trata-se de uma contraposição, não pertinente, a nosso ver, entre as ideias de competência e de compreensão. O palestrante afirma, enfaticamente, que não se justifica dar importância à ideia de competência, que a busca da compreensão é o que verdadeiramente importa, uma vez que “a competência é rasa; a compreensão é que é profunda”. Não se pode discordar nem um tostão da afirmação de que o que realmente importa é a compreensão; somente não conseguimos atinar, senão como mera caricatura, para o fundamento da afirmação de que a ideia de competência é rasa. Talvez seja mera incompetência minha.

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