Nílson José Machado

A crise mundial atual somente aparentemente é causada pelo novo vírus. O cerne da questão é a transformação do conhecimento em mercadoria em sentido industrial. Ninguém sabe mais com nitidez determinar o PIB de um país. O conhecimento é um ativo que posso dar, vender ou trocar sem ficar sem ele.  É um bem que quanto mais uso, mais novo ele fica; é uma commodity da qual não se pode determinar o estoque. É um valor que, diferentemente de bens materiais, não se pode distribuir por decreto: o único meio de partilhar conhecimento é a Educação.

Oito pontos principais a serem lembrados, numa reconstrução da ideia de conhecimento como um valor:

  1. Salário não é renda, não deveria sê-lo.

De quem vive de salário não se diz que “vive de rendas”. Viver de rendas é viver de dinheiro produzido por dinheiro, como no caso das aplicações financeiras. Pode ser economicamente justo fazer dinheiro render dinheiro, mas é significativamente diferente de viver de seu salário, fruto de seu trabalho.

  • Renda não é tudo

Em diversos países do mundo, os juros oferecidos ao capital são muito baixos; em alguns casos, os juros são negativos, ou seja, paga-se ao capital empregado nominalmente menos do que se custou seu empréstimo, desde que ele seja utilizado para produzir empregos, para semear atividades socialmente relevantes.

  • O Mercado é fundamental, mas não basta.

Em todo o mundo, relações dadivosas entrelaçam-se com relações mercantis. Não vivemos apenas de compras e vendas de mercadorias em sentido industrial. As relações mercantis convivem com as relações dadivosas, que buscam o laço com os outros. O mercado mais agressivo não sobrevive sem uma estrutura de dádivas simuladas, de presentes dissimulados, como tão bem explicita o calendário anual de vendas, em que sobrelevam datas como “dia das mães”, “dia dos pais”, “dia das crianças” etc.

  • A utilidade, paulatinamente, dá lugar ao significado.

Um poema não é útil: ele expressa, significa, nos faz sentir. De modo geral, a arte significa, e as movimentações produzidas pelo mercado da arte não passam de uma pálida ideia do significado da arte. No mundo do trabalho, ainda que se busque continuamente uma articulação entre o prazer no que se realiza e o sucesso financeiro, o significado das ações que realizamos é mais importante do que os bens materiais delas derivados. Platão caracterizava o escravo como alguém que não tem projetos, que vive para realizar o projeto dos outros. Na Grécia antiga, os escravos não tinham salário; atualmente, ter ou não ter salário é um pormenor.

  • A integração entre os universos do Conhecimento e da Economia é total

No período industrial (1750-1950), a marca das relações entre o mundo do conhecimento e o da economia era a aplicabilidade: estudar matérias era fundamental para aplicá-las ao mundo do trabalho. Tal período foi ponte de passagem para a transformação do conhecimento em mercadoria em sentido industrial. Hoje, vivemos na antessala de um novo período, em que o conhecimento é o principal fator de produção: o grande desafio é não identificar as noções de valor e de preço, ou a ideia de valor em sentido econômico e no terreno da Ética.

  • O futuro do Trabalho é a Educação

Na Grécia antiga, um pai não diria ao filho “estudar para garantir um bom emprego”: os universos do Trabalho e da Educação eram desconectados. Hoje, a integração entre os universos do conhecimento e do trabalho conduz ao fato de que aprendemos continuamente, toda formação é uma formação inicial. À Escola compete fornecer uma formação básica em competências gerais como capacidade de análise, de síntese, de argumentação para a tomada de decisões, de articulação entre a realidade e a imaginação. A aprendizagem do manuseio de ferramentas tecnológicas específicas dar-se-á cada vez mais no universo do trabalho, ainda que muitas empresas ainda ensaiem reclamar de que os alunos seriam carentes de tal formação. Soa um pouco cínica a ideia de que uma universidade tenha como função ensinar o uso específico de tais ou quais equipamentos: decisivamente, isso se aprende no trabalho.    

  • Na relação com a Tecnologia, o ser humano é o valor fim.

Sobretudo no que se refere à repartição do tempo, aos novos ritmos de ação/atuação, não é possível tergiversar: as tecnologias são e serão sempre da ordem dos meios: o valor fim será sempre o ser humano. Se seu coração está batendo cada vez mais rapidamente, não pense que estaria tendo um upgrade, uma melhoria no chip… busque um médico. Meu computador não tem, e nunca terá, grilos existenciais associados a perturbações em seu “projeto de vida” pelo simples fato de que ele não tem projeto, nem vida.

  • Não é possível ignorar o renascimento da ideia de profissionalismo.

Em todo o mundo, renasce a ideia simples de que a vida junto com os outros não pode prescindir, na organização social da noção de profissionalismo. Um profissional é membro de um tipo de ocupação, vital para a vida social, que não pode ser regulada inteiramente pelo mercado, nem pelo Estado: são os profissionais. A marca do profissionalismo é a existência necessária de instâncias de autorregulação entre o mercado e o Estado. Em momentos de crise social como a que vivemos atualmente, em termos ideais, sobressaem profissões como bombeiros, médicos, enfermeiros, políticos, entre outras, caracterizando espaços de ação em que a competência técnica se alia ao compromisso público, ao assumir as responsabilidades inerentes às ações realizadas.

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