Microensaios

Nílson José Machado

                       SUMÁRIO

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1 – Competências ontem e hoje: duas vias

2 – A leitura, a escrita, o luxo

3 – Ler o mundo

4 – A leitura, a escrita e os genes

5 -A leitura, a escrita e o estrogonofe

6 – Conhecer e/é narrar

7 – Escrever, contar

8 – Cadeias, redes, narrativas

9 –  Sobre a leitura

10 – Ler, escrever

11- Livros, mundos, macacos, espelhos

12- Ler, escrever, contar revisitados

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1 – Competências ontem e hoje: duas vias

Estudamos muitas matérias, na escola: a fragmentação disciplinar é uma marca de nossos tempos. A perda do sentido decorrente conduziu o discurso pedagógico ao elogio das competências. As disciplinas são meios; as competências pessoais são a meta. Durante muito tempo, uma boa formação escolar significava saber ler, escrever e contar. Hoje, as competências básicas precisam ser atualizadas.

Duas vias podem ser percorridas, com esse objetivo. Numa delas, a antiga tríade é substituída por pares como expressão/compreensão, argumentação/decisão, contextuação/imaginação. Competente é quem se expressa bem, mas compreende o outro; argumenta com  capacidade analítica, mas é capaz de elaborar sínteses e tomar decisões; refere o que aprende na escola a múltiplos contextos, mas tem uma imaginação vigorosa, capaz de extrapolar todos os contextos.

Outra via seria uma reinterpretação dos termos da tríade ler/escrever/contar. Afinal, cada uma dessas competências, hoje, tem um significado muito mais amplo.

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          2 – A leitura, a escrita, o luxo

Ler, escrever e contar é o que deveria resultar dos estudos escolares, diziam antigamente. No antigo Egito, a leitura era ensinada a todos, mas o ensino do cálculo não era generalizado e a escrita era destinada apenas aos filhos das classes dominantes. Em Roma, os escravos que conduziam tais crianças à escola eram chamados “pedagogos”. Em latim, paidòs é criança, e agogòs, condutor. Os pedagogos aprendiam a escrita para poder ajudar as crianças em seu aprendizado.

Hoje, é incompreensível uma dissociação entre a leitura e a escrita. A expressão de si e a compreensão do outro são competências complementares. Ler é fundamental para seguir regras com consciência, mas a expressão pessoal é vital, e a escrita é essencial para isso. A oralidade esvanece, a escrita permanece. Animais comunicam-se oralmente; a peculiaridade do ser humano reside na escrita. 

É preciso ler e compreender o mundo, mas, na escola da vida, temos que assinar o livro de presença. Decididamente, a escrita não é um luxo.

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3 – Ler o mundo

Para nossos avós, era simples assim: estudamos muitas matérias, mas precisamos sair da escola sabendo leR, escreveR e contaR. Tínhamos que demonstrar competência nos chamados três “R”s.

Hoje, os tempos são outros e os três “R”s já não parecem bastar. Antigamente, podíamos ser apenas analfabetos na língua materna; hoje, podemos ser polianalfabetos: em informática, em ciências, em política, em economia…

Diante da multiplicidade de conteúdos disciplinares apresentados na escola, teorias sobre competências buscam uma nova tríade, uma visão sintética das competências pessoais para substituir os três “R”s, que teriam caducado.

Uma brecha pode ser aberta em tal análise: não seria o caso de buscarmos uma revitalização das antigas competências? No fundo, tudo o que buscamos na escola é aprender a ler, escrever e contar; ocorre que, hoje, são outros os significados de tais ações. É preciso ser capaz de mais do que ler um texto; na expressão de Paulo Freire, estudamos para aprender a ler o mundo.

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       4 – A leitura, a escrita e os genes

A expectativa da ciência biológica é decifrar o código genético e produzir remédios decisivos para manter a vida, e, quem sabe, criá-la. Com muita euforia, há uma década, foi anunciado um esquema inicial para a leitura de cadeias de DNA, complexos textos com bilhões de “letras” químicas. Atualmente, as instituições de pesquisa armazenam mais de 270 bilhões de pares de bases de DNA. Descobriu-se ainda que, no universo das dezenas de milhares de genes que codificam as proteínas, existem múltiplos modos de leitura para cada conjunto de letras. E ainda estamos no terreno da leitura.

A produção de remédios e a interferência direta nos processos vitais exigem mais do que a decifração, ainda longe de ser completada: elas dependem muito mais da capacidade de expressão escrita nesse complexo código. Quanto a isso, permanecemos como os escravos, a quem era permitido aprender a ler para bem cumprir ordens. As ambiciosas metas anunciadas pela ciência biológica dependem de engenho e arte na escrita.

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        5 – A leitura, a escrita e o strogonoff

Certa vez li um texto jornalístico intitulado “Os juros, as exportações e o futebol”. Li com atenção até o final, acompanhando a argumentação do autor sobre as correlações entre os dois primeiros elementos do título. Não percebi, explícita ou tacitamente, qualquer referência ao futebol. Imediatamente, reli o texto, e voltei a lê-lo uma terceira vez, e nada do ludopédio. Por vias tortas, compreendi que o autor me pregara uma peça retórica, ao nomear o texto: o futebol não deveria ter sido levado a sério.

São múltiplas as funções de uma palavra em um texto: denotar, conotar, reforçar, sugerir, dissimular, conectar, emocionar, atrair, disfarçar, distrair, entre outras. A atenção do leitor é o fim de todos os esforços. Quem escreve quer ser lido. Não vale ser hipócrita. Não valem o descompromisso com a verdade, a falta de integridade. Vale muito buscar construir a visualidade em dupla mão: da imaginação ao papel, do papel à imaginação.

A retórica é importante, quando não é apenas retórica.

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6 – Conhecer e(é) narrar

Ignaro é uma palavra de nosso léxico, com o significado de sem instrução, que nada sabe, mas os dicionários não registram o que seria seu antônimo, gnaro. Na raiz de ambas está gnósis (grego), que dá origem a gnose (conhecimento, ato de conhecer). Ignorante, prognóstico, diagnóstico, agnóstico são derivações conhecidas e utilizadas. Derivações de gnaro também são muito conhecidas, mesmo sem a indicação da origem. De gnarus e gnare  derivam narrare e narrar. Em diversos sentidos, o ato de conhecer está associado a narrar.

De fato, conhecer é construir o significado e o modo canônico de construção de significados é a articulação de narrativas. Em A Cultura da Educação, Jerome Bruner registra que, na formação pessoal e na construção do conhecimento em geral, é apenas no modo narrativo que um indivíduo pode criar uma identidade e encontrar um lugar na sociedade; o próprio processo de fazer ciência é narrativo.

Conhecer, significar, narrar: eis o tripé a sustentar a trama e o sentido da vida.

7 – Escrever, contar

Em quase todas as línguas, o verbo contar tem dupla acepção: enumerar ou narrar. Ao contarmos uma estória, a sucessão dos eventos é decisiva para seu significado. As mesmas frases em diferentes ordens produzem narrativas diferentes:

Estória 1                                                                     Estória 2

 “João faltou à escola.                         “A professora repreendeu João.

A professora repreendeu João.”         João faltou à escola.”       

Existe, pois, um paralelismo entre enumerar e narrar. A História é uma matriz básica para a elaboração de narrativas significativas. Conhecer é construir o significado, o que somente se dá por meio de narrativas. Um professor competente é um bom contador de estórias, e boas estórias são enraizadas um contexto, de onde extraem viço e vigor.

Uma razão decisiva para o sucesso de Paulo Freire na educação de adultos é o fato de que ele nunca subestimou a importância das histórias de vida dos educandos, extraindo delas elementos para a construção de narrativas significativas.

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8 – Cadeias, redes, narrativas

As imagens de encadeamentos lógicos e de redes de significações são muito frequentes na construção do conhecimento. Quase sempre as acompanha uma visão caricata do ato de encadear e um elogio fácil da ideia de tecer, enredar. Uma vaga ideia de complexidade contribui para tornar as redes objetos do desejo e alimentar slogans ingênuos contra encadeamentos. 

Para equilibrar o jogo entre cadeias e redes, cresce a cada dia a força e a importância da ideia de narrativa. Toda narrativa é uma trama bem tecida que instaura uma temporalidade rigorosamente fundada no encadeamento. “A economia perdeu o rumo. O presidente renunciou ao cargo. A crise instalou-se no país”, ou “A crise instalou-se no país. O presidente renunciou ao cargo. A economia perdeu o rumo” são duas narrativas com significados distintos.

As narrativas são como fecundas sínteses entre as ideias de cadeia e de rede. Expulsas como intrusas do baile das redes, as cadeias ressurgem, sedutoras como sereias, nos braços das narrativas.

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 9 – Sobre a leitura

Muito cedo aprendemos a falar: ler, escrever e contar são competências que desenvolvemos na escola.

 A oralidade nos introduz no mundo das conversas com interlocutores fisicamente presentes: a leitura amplia nossos horizontes, possibilitando a interação com quem está longe, ou até já se foi. A escrita confronta a evanescência da fala, criando condições para a consciência e a reflexão crítica. O contar se expande, das enumerações ao faz de conta, das cronologias às narrativas portadoras de significados. As tecnologias criam novos sistemas de proximidades, novas espécies de conversação, novos parâmetros para a leitura, a escrita, a contagem/narrativa. Hoje, os textos flutuam na tela, as imagens são móveis, os sons, que apenas imaginávamos, explicitam-se.

Em todos os lugares, imagens, palavras, sons, sensações entrelaçam-se e alimentam-se mutuamente. O mundo transformou-se em um imenso texto, um complexo hipertexto, desafiador como uma esfinge. Decifrá-lo é tarefa reservada a bons leitores.

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10 – Ler, escrever

Em geral, aprendemos a ler antes de aprender a escrever e lemos um texto que não escrevemos. Apreciamos a expressão do outro antes de aprendermos a nos expressar por escrito. No antigo Egito, a leitura era ensinada a todos, mas a escrita era destinada apenas aos filhos das classes dominantes. Hoje, escrever e ler são competências complementares. Escrever é expressão de si; ler é compreensão do outro.

As tecnologias amplificam as possibilidades da leitura e da escrita: é preciso saber explorá-las. Tal como a forma soneto, criada por Petrarca, no Renascimento, não eliminou os grandes poemas, recursos sintetizadores da escrita como emails, tweets etc são formas de expressão que favorecem a compreensão, quando a alma não é pequena.

Uma atualização do significado da escrita deve situá-la como par complementar da leitura, na construção do modo dialógico de ser. Na perspectiva de Paulo Freire, o diálogo é constituinte do modo de ser do ser humano. Aprender a escrever é, então, aprender a ser.

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      11 – Livros, mundos, macacos, espelhos

Livros são janelas abertas para o mundo: mundo dos fatos, dos factos, do que já foi feito, e mundo dos fictos, do imaginado, do que buscamos realizar. Limitar-se à realidade imediata é entregar-se ao fatalismo; entregar-se ao universo ficcional é fugir da realidade. Realidade e ficção interconectam-se, interpenetram-se e integram-se continuamente no universo dos livros. São como duas pernas a nos fazerem caminhar.

A leitura é sempre estimulante, e qualquer livro é melhor do que nenhum livro. A incompreensão da importância dos livros e da leitura na formação pessoal revela apenas as limitações de quem a exibe. A leitura não dá sono, ela nos desperta, ela amplifica a capacidade de sonhar.

Com ironia, diz-se que os livros não transformam o mundo, transformam apenas as pessoas; as pessoas é que transformam o mundo. O poder de um livro, no entanto, reflete apenas a força de seus leitores: como bem ressaltou Lichtenberg, se um macaco nele se debruça, não pode ver refletida a imagem de um anjo.

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12 – Ler, escrever, contar revisitados

A tecnologia é onipresente e a escola tem incorporado cada vez mais seus recursos, mas as competências básicas que nela desenvolvemos ainda podem ser bem representadas pela tríade ler, escrever e contar, devidamente reinterpretada.

Ler é mais do que compreender um texto, que é o primeiro outro que se põe diante de nós: é ler o mundo, compreender fenômenos de modo geral, sejam eles naturais, sociais, econômicos, históricos, geográficos etc.

Escrever é mais do que redigir um texto com o próprio punho: é ser capaz de expressar-se em diferentes linguagens, buscando permanentemente a comunicação e o diálogo, o que nos torna efetivamente humanos.

Contar é mais do que enumerar ou fazer contas; é ser capaz de construir narrativas significativas: dos cases aos “causos, elas constituem a arquitetura básica do conhecimento em todas as áreas.

Como educador competente, Paulo Freire aponta, em sua obra, para tal ampliação de horizontes; em decorrência, seu pensamento permanece mais vivo do que nunca.

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Referências Bibliográficas

BURNS, James H. – The new 3Rs in Education: Respect, Responsibility and Relationships. Booksurge Publishing, 2008 (kindle edition)

SMITH, Daniel – Reading, wRiting and aRithm3tic. Mastering the three Rs of an old-fashioned way.London: Michael O´Mara Books Limited, 2013

****** SP/maio2013

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