INTEGRAÇÃO DE SABERES

Considerações, Constelações

Nílson José Machado

PARTE I

São Paulo, dezembro de 2018

Sumário

Apresentação: a Fragmentação do Conhecimento e do Significado

I. “Considerações”: Astrologia, Fusão de Horizontes, Constelações

II. Teorias, Constelações, Fusão de Horizontes

III. Raul Seixas, Adorno, Teorias, Constelações

IV. O Aleph e a Eternidade: Fusão de Horizontes e Ministério do Tempo

V. A Pós-Modernidade, as Fake News e o Cálculo Diferencial

VI. Conceitos, Esquemas

VII. Pressentimento e Preconceito

VIII. Ciência e Religião: Conceitos e Preconceitos

IX. Eça de Queiroz, Machado de Assis e o Jornal: Um Bem? Um Mal?

X. Democracia: as visões de Dewey e Tarde

XI. As crianças na Caverna, a Falácia Utilitarista e as Olimpíadas Zoológicas

XII. O Público, O Privado e a Prosopopeia do Mercado

XIII. A Desigualdade de Renda, a Febre Amarela e o Big Bang

XIV. Gravidez não é Doença, e Salário não é Renda…

XV. Bill Gates e as Privadas Inteligentes

XVI. O Capim, o Leite, o Estrume e a Flor

XVII. Excrementos no Everest e nas Redes Sociais

XVIII. O Mar e a Bússola: A Fragmentação e as Ideias Fundamentais

XIX. Disciplina é Competência: o caso do Trivium

XX. Habilidades socioemocionais, Nietzsche, o carioquinha e o velho chinês

XXI. Competência: Rasa ou Profunda?

XXII. Mito ou Verdade?

XXIII. Verdades e Mentiras sobre a Verdade e a Mentira

XXIV. Tradição, Tolerância, Opinião, Respeito

XXV. Conversar e Convencer

XXVI. Comemoração, Esquecimento, Perdão

XXVII. Vontade, Consciência, Consenso

XXVIII. Herrar é Umano

XXIX. Curtir o consertar é só começar…

XXX. Razão, Sentimento, Emoção

XXXI. Adeus às Armas e Fé nas FARC…

XXXII.  Crer, Ver, Querer

XXXIII. Eu não creio em Bruxas, mas…

XXXIV. Esperança e Vida: o Dito, o Fato, o Inesperado

XXXV. O Fato, a Negação, o Oposto

XXXVI. A Álgebra, o Conselheiro Acácio e a Consciência

XXXVII. O Pantógrafo, a Impressora 3D e o Princípio de Cavalieri

XXXVIII. Algoritmos: Inércia da Repetição ou Antessala da Criação?

XXXIX. Inovação e Criação

XL. Antonio Machado, Keith Devlin e as Mentiras Fracionárias

XLI. Números Redondos na Mídia, no Comércio e na Política

XLII. Quem acredita no Infinito?

XLIII. O valor de π é 3, é 80, ou é 180? Um flash da Bíblia até hoje

XLIV. Notas sobre Direitos e Deveres

XLV. Notas sobre Ética no Meio Acadêmico

XLVI. Notas sobre Nicolau de Cusa e a Douta Ignorância

XLVII. Notas sobre o Conteúdo e a Forma na Ação/Formação do Professor

XLVIII. Notas sobre Tecnologias na Escola

LXIX. Notas sobre a Ideia de Representação

L. O Infinito, a Fé e o Sentido da Vida em 30 Bullets

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APRESENTAÇÃO  

A Fragmentação do Conhecimento e do Significado

O conhecimento escolar tanto na escola básica quanto no ensino superior, apresenta-se atualmente de modo excessivamente fragmentado, dissociado em muitas disciplinas que interagem fracamente umas com as outras. Além disso, novas disciplinas encontram-se em permanente estágio de gestação. Mal um subtema disciplinar se torna especialmente relevante, seus estudiosos buscam constituir algo como uma intradisciplina, com seus novos especialistas. Com lupas poderosas explorando propriedades de pontos/objetos cada vez menores, perdemos, pouco a pouco, a visão mais abrangente da foto que constituem. A consequência mais imediata é o correspondente esfacelamento do significado do que se estuda. No mundo inteiro, busca-se uma maior integração entre as disciplinas, um conhecimento mais integrado dos fenômenos. Não parece haver mais lugar para um especialista no sentido chapliniano, tão bem registrado no filme Tempos modernos, o que não significa que o caminho seja a formação de um generalista que seja um especialista em tudo, o que não passa de mera caricatura. Precisamos, sim, de especialistas, mas que sejam capazes de ver a foto inteira, que saibam mobilizar seu conhecimento em temas específicos no sentido da solução de problemas gerais, quase sempre de natureza transdisciplinar.

É neste contexto que se inserem os textos desta coletânea. Os temas tratados nascem em territórios disciplinares, mas transbordam seus limites, favorecendo uma aproximação mais efetiva entre as ideias fundamentais de cada disciplina. Incluem cenários da Ética, da Política, da Filosofia, da Ciência, da Religião, da Tecnologia, e de outros mais, sempre em busca de um insight unificador, de uma visão sintética, de uma visão teórica da prática efetiva.

Os textos são curtos e dialogam uns com os outros, podendo ser lidos em qualquer ordem. O preço que se paga pela relativa independência dos textos é a ocorrência de certa reiteração de temas e afirmações, aqui e ali, o que se coaduna com o gênero ensaio, pretendido em cada passo. Intencionalmente – e humildemente -, buscamos situar cada um dos textos no território fecundo do ensaio, tão magistralmente explorado por pensadores maiúsculos como Adorno e Montaigne. Segundo eles, o ensaio se situa estrategicamente entre a absoluta pessoalidade da poesia e o rigor absoluto do texto científico. As elaborações decorrentes da leitura serão, então, mais diretamente resultantes da sintonia entre ideias e opiniões, partilhadas em uma conversa entre cidadãos educados, do que de categóricas demonstrações lógico-formais. É verdade que o conhecimento não pode se limitar ao terreno das opiniões, mas tanto no terreno da política quanto no das relações pessoais, o espaço da conversa, da troca de opiniões certamente deve anteceder o terreno das certezas absolutas, das demonstrações, cabais, da busca do convencimento.

  1. “Considerações”: Astrologia, Fusão de Horizontes, Constelações

O significado mais frequente da palavra “considerar” está associado a verbos como meditar, refletir, ponderar, estimar, ter em grande conta, examinar criticamente todas as circunstâncias de um ato, tendo em vista a tomada de uma decisão. Etimologicamente, no entanto, a raiz mais funda da palavra encontra-se na astrologiana observação dos astros (sidera), tendo em vista a orientação das ações em empreendimentos futuros, como se pode conferir no Grande Dicionário Etimológico-Prosódico da Língua Portuguesa, de Silveira Bueno.

Como se sabe, na Roma antiga, os métodos de antecipação do futuro cunhados pela astrologia eram muito populares. Atualmente, salvo no que tange à previsão do tempo, gozam de pouco prestígio, ou seja, caprichosamente, não são levados em consideração. O significado principal da palavra “consideração” teria sofrido uma radical transformação. Renegando explicitamente sua origem etimológica, ele não mais remeteria, nem mesmo tacitamente, aos astros. É o que parece, mas arrisco afirmar que o que parece não é.

De fato, duas das noções mais fecundas e atuais da epistemologia apontariam no sentido de uma reinterpretação e uma revitalização dos astros, não mais como logos, mas como alegoria, na busca de uma compreensão da condição humana. refiro-me às ideias de “fusão de horizontes”, apresentada por Gadamer em seu seminal livro Verdade e Método, e de “constelação”, da lavra de Adorno, no denso Dialética Negativa. Nos dois casos, a inspiração nos astros como alegoria é bastante evidente. Algumas poucas palavras a seguir têm apenas a intenção de introduzir a questão.

Conhecer é conhecer o significado, e o significado somente se constrói por meio do sentido, ou dos sentidos. O que não é sentido, não faz sentido. Mas os sentidos são pessoais, idiossincráticos; cada visão é um ponto de vista, referido a um cenário específico, a um horizonte pessoal. A educação consiste na construção dos significados, que representam a parte partilhável dos sentidos, o que somente pode ocorrer por meio de uma fusão dos horizontes pessoais. Nas palavras de Gadamer, “o intérprete e o texto possuem cada qual seu próprio horizonte e todo compreender representa uma fusão desses horizontes.” Como fica claro em seu trabalho, a referida fusão não significa uma unificação das visões, que eram distintas e permanecem distintas, mas sim a inserção das visões em uma linha do horizonte comum, o que viabilizaria o logos, o diálogo, a tolerância, a compreensão. Não me parece existir frase mais adequada como síntese das produções da Escola de Frankfurt do que a busca da construção de um horizonte comum para a interação entre as diferentes visões de mundo dos participantes do discurso, regulado pela razão comunicativa. Retornando ao início destas considerações, a busca de um lugar para viabilizar uma visão comum certamente deve nos deslocar de polarizações terrenas, como as perspectivas ocidental e oriental, ou outras, derivadas de grupos de países representativos de diferentes concepções político-econômicas, passando a situar nos astros o centro de nossos olhares. Assim, ter os astros para orientar as ações, ou seja, tecer considerações, transformar-se-ia não buscar as justamente desprestigiadas correlações astrais, mas sim um ponto de vista que possibilitasse uma visão comum para todos nós, habitantes deste pequeno planeta Terra.

Em outro sentido, complementar ao anterior, o conceito adorniano de constelação pode estar contribuindo para uma revitalização de sua associação inicial de consideração com os astros. ideia de constelação oferece uma perspectiva extremamente interessante para os descrentes na razão iluminista, muitas vezes associada a uma razão formal, fundada em “conceitos”. Distinguindo o uso ordinário da palavra conceito, como sinônimo de ideia ou noção, de seu uso teoricamente denso, associado aos quatro pilares definição, classificação, ordenamento e causalidade, o que se percebe é que, na vida cotidiana, incluindo-se a vivência na escola básica, pouco utilizamos conceitos em sentido técnico, com suas hierarquias categóricas. Não conhecemos o conceito de verdade, o conceito de tempo, o conceito de consciência, ou de vida em sentido humano, e vivemos bem, apesar disso. Lidamos quase o tempo todo com noções preconceituais, esquemas de percepção ou de ação; vivemos na antessala dos conceitos. Temos um consenso quase absoluto em língua portuguesa na atribuição de um sentido negativo ao “preconceito”, que parece sempre detestável. E o é, efetivamente, na medida em que se trata de uma ideia preconceitual que se pretende um conceito. É aí que mora o perigo.

Com a ideia de constelação, Adorno nos lembra de como podemos viver bem sem se submeter a uma razão iluminista simplificada, sem pressupor que trabalhamos apenas com conceitos em sentido filosófico, distinguindo com nitidez a razão e a sombra, o bem e o mal. Ao apresentar sua “dialética negativa”, ele afirma que “não se progride a partir de conceitos e por etapas até o conceito superior mais universal, mas esses conceitos entram em constelação. Essa constelação ilumina o que há de específico no objeto e que é indiferente ou um peso para o procedimento classificatório.” A possibilidade de uma razão ampliada, que incorpore infra-lógicas em terrenos em que a formalização seja inviável ou demonstradamente impossível é que conduziu à ideia de constelação. Afinal, em vez de um conceitual sistema solar, a nos indicar nitidamente o objeto iluminado, e até mesmo denegando a importância do que a sombra esconde, um conjunto de estrelas com múltiplos focos, iluminando de forma aparentemente desordenada as múltiplas perspectivas de observação – ou seja, uma constelação – pode constituir uma alegoria muito mais interessante, muito mais representativa da vida em sentido humano.

  1. Teorias, Constelações, Fusão de Horizontes

Em sentido formal, as teorias são constituídas por conceitos, que operam como focos concentrados de luz, iluminando racionalmente as ações. A realidade, no entanto, não se deixa apreender facilmente, ou mesmo se representar apropriadamente por teorias formais. No exercício cotidiano da linguagem, na comunicação entre as pessoas, a maleabilidade das noções, a plasticidade dos esquemas preconceituais opera muito mais eficazmente do que o pretenso (e muitas vezes precoce) rigor conceitual, quase sempre manejado de modo ingênuo ou imprudente.

Ocorre, no entanto, que instrumentos preconceituais, como os esquemas, raramente são reconhecidos como instrumentos prestigiosos. O risco de desandarem em elementos anárquicos ou desestruturados, com a consequente perda de poder explicativo, encontra-se presente, ao lado do risco similar de serem vaidosamente extrapolados os limites de sua eficácia: assumindo-se como se fossem conceitos eles acabam, assim, por se converter em detestáveis preconceitos.

Uma contribuição efetiva à valorização das noções e dos esquemas decorre da ideia de “constelação”, da lavra de Adorno, em seu importante trabalho Dialética Negativa, obra de referência da chamada Escola de Frankfurth.  O modo de operar de uma constelação pode ser associado ao funcionamento da linguagem ordinária, que não define rigorosamente o que denomina, construindo, em vez disso, uma rede de relações entre o termo novo, cujo significado se constrói, e outros termos de significados já conhecidos. As palavras se esclarecem mutuamente, por meio de tais conexões mútuas. As noções ou os esquemas preconceituais articulam-se em diversos focos de luz, que se entrecruzam sem a eficácia da concentrada razão iluminista, mas que colaboram para revelar o que vai além do foco, os elementos coadjuvantes ou mesmo figurantes, que, de outro modo, seriam deixados à sombra. A própria ideia de verdade é mais facilmente construída por meio de uma constelação do que a partir em uma única concepção, no âmbito de determinada teoria. Assim, colaborativamente, operam as constelações.

Gadamer, outro  eminente frankfurthiano, em sintonia tácita com Adorno, produziu uma ideia especialmente fecunda no que se refere à construção do significado. Ela se compõe perfeitamente com a noção de constelação: trata-se da noção de “fusão de horizontes”. Como se sabe, as percepções pessoais dão sentido às palavras e às coisas, mas a construção do conhecimento pressupõe a possibilidade de partilha de tais sentidos, o que corresponde à construção do significado que se apreende. O significado constitui a parte partilhável dos sentidos. Apesar de idiossincráticos, é possível encontrar na multidão de sentidos elementos comuns, no mínimo como o são resquícios naturais da língua e da cultura. Sem tal possibilidade de partilha, a imensa diversidade dos sentidos tornaria a vida uma selva: cada sentido corresponde a um ponto de vista. A questão que naturalmente se coloca é: como vislumbrar tais elementos de partilha? Como explorar a riqueza da diversidade de pontos de vista sem a violência do confronto direto? Para Gadamer, não é o caso de se pretender reduzir a uma só visão o que originariamente são duas: é possível manter duas visões distintas, mas é imprescindível fundir os dois horizontes em um só. Não reduzimos dois pensamentos, duas visões, duas teorias a uma só perspectiva, mas o cenário que se descortina, o contexto em que tais visões se constituem deve passar a ser o mesmo. O instrumento fundamental para tal convergência é a razão comunicativa, Eis aí uma sublime noção de tolerância.

  1. Raul Seixas, Adorno, Teorias, Constelações

Não vivemos conceitualmente. Conceitos como os de tempo, de consciência, de pessoa, de liberdade, de dignidade, de vida, esvaem-se entre nossos dedos, e isto não chega a ser um mal. A vida vivida conceitualmente seria muito chata. Vivemos e nos alimentamos das ideias que temos ou construímos sobre todos os temas, e somente algumas poucas dessas ideias conseguimos explorar no nível dos conceitos. Conceitos são definidos precisamente, determinam classes de equivalência, ordenam o universo correlato, inspiram relações de causalidade. Quando perguntamos a uma pessoa “Como está?” dificilmente buscamos ou apreciamos uma resposta conceitual.

Naturalmente, a palavra “conceito” costuma ser utilizada em sentido mais leve, como sinônimo de “noção”, “ideia” ou até mesmo “opinião”. Em várias de suas músicas, Raul Seixas faz menção a uma rejeição à vida conceitual referindo-se, explícita ou tacitamente ao peso do conceito: “Prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”. Todos temos opiniões a respeito de quase tudo. Conversamos, trocamos opiniões, argumentamos para defender as que temos, mas somente algumas dessas opiniões avançam um pouco no vasto, difícil, fecundo e sedutor terreno das noções pré-conceituais, e somente um pequeno número delas atinge o nível dos conceitos. Um elemento complicador no esclarecimento das relações entre o pré-conceitual e o conceitual é o fato de que os conceitos se estruturam em teorias, inicialmente ingênuas ou locais, mas sempre ávidas por formalizações, extensões e/ou generalizações.

A passagem do pré-conceitual ao nível do conceito é sutil, é não trivial, envolvendo riscos e apostas. A afoiteza e/ou a precipitação em tal intento podem nos levar a derrapar em cascas de banana e dar origem à negatividade da noção de pré-conceito. O cuidado para evitar tal derrapagem, no entanto, não pode nos paralisar, nem nos fazer rejeitar in limine a viagem em busca do conceito. Entre filósofos importantes da Escola de Frankfurt, como Adorno, Gadamer ou Horkheimer, a palavra “pré-conceito” não apresenta apenas sua conotação negativa, significando também os esquemas anteriores aos conceitos, fundamentais para a orientação da ação. São como uma luz um tanto dispersa, não focalizada como a razão iluminista pressupõe, mas, ainda assim, esclarecedora. Evitar sistematicamente a busca do conceito seria uma forma de pré-conceito, certamente negativo.

É aqui, justamente, que um insight muito interessante da lavra de Adorno pode fazer par com a rejeição sistemática de Seixas a teorias que representam “opiniões formadas sobre tudo”: trata-se da noção de constelação. Adorno restaura da etimologia a ideia mais geral de teoria como visão, destacando que um conceito, por mais que alimentado pela estrutura de uma teoria, é insuficiente como recurso para iluminar o objeto que se deseja conhecer. Para tanto, seria sempre conveniente o recurso a uma constelação, a uma reunião de elementos que, a despeito de serem pré-conceituais, constituem uma configuração em que se apoiam mutuamente, iluminando, mesmo difusamente, os objetos que estão sendo estudados.

Resumindo, nós, humanos, podemos viver muito bem, mesmo sem o conceito de vida ou de tempo, ou de ser humano… Vivemos buscando por tudo isso: pela consciência, pela felicidade, pelo significado da vida, mas não nos sentimos paralisados pela eventual ausência de conceitos a respeito de temas tão complexos. Reunimos luzes difusas, com foco disperso, e buscamos iluminar nossos passos com uma teoria mínima, como nos sugere Adorno, com os aforismos de sua inspiradora Minima Moralia.

É quase automática a lembrança de outra música de Raul Seixas:

“Quem não tem colírio, usa óculos escuros…”

  1. O Aleph e a Eternidade: Fusão de Horizontes e Ministério do Tempo

Há um texto de Jorge Luís Borges em que se apresenta um lugar especial, denominado Aleph, situado no sótão de uma casa sombria, de onde todos os lugares do mundo poderiam ser vistos de uma só vez, em todas as perspectivas e sob todos os pontos de vista possíveis. A singularidade de tal local traduziria a expectativa utópica de uma visão totalizadora do mundo, de onde poderia advir uma compreensão mais adequada do outro, uma partilha instantânea, fraterna e generosa de pontos de vista. Diversas variações místicas na concepção de um lugar como o Aleph podem ter levado alguns autores a distorções ou apequenamentos de tal constructo, mas a ficção de Borges é ímpar, e continua, sem dúvida, fascinante e inspiradora, especialmente no que tange à caracterização de um espaço social tão impregnado de tecnologias.

Alguns roteiros cinematográficos têm-se inspirado em questões similares no que se refere ao tempo, oferecendo uma perspectiva integrada da tripartição passado, presente e futuro. Um exemplo interessante é a série espanhola intitulada Ministério do Tempo, que apresenta situações em que personagens do presente podem conviver com outros do passado, por meio de portas de acesso a outros universos temporais. O vigilante Ministério do Tempo seria uma instituição governamental criada com a finalidade específica de enviar pessoas para outros tempos e lugares, tendo em vista evitar desvios, ou ocorrências fortuitas que comprometeriam o futuro; no caso, o futuro do passado, que é o presente. A dissolução da tripartição passado / presente / futuro corresponderia a uma compreensão do tempo numa perspectiva de Eternidade.

As duas situações apresentadas congeminam-se perfeitamente: a eternidade está para o tempo assim como o Aleph está para o espaço.

Um passo modesto, mas extremamente fecundo no sentido da construção de uma visão integradora do espaço, do tempo, do espaço/tempo, é a ideia de Fusão de Horizontes, da lavra de Gadamer, em sua densa obra Verdade e Método. Segundo Gadamer, o conhecimento sempre se constrói a partir de visões/percepções pessoais, idiossincráticas. Duas pessoas diferentes assistem ao mesmo filme e apresentam visões distintas, compreensões diversas; isso pode ser muito bom, mas é preciso cuidar dos horizontes diversos em que tais visões se inserem. Não se trata de unificar as visões, de buscar uma perspectiva única; a questão que se põe é a de construir dialogicamente, argumentativamente, narrativamente, uma única linha de horizonte, na qual as duas visões se inserem. As visões/perspectivas continuarão distintas, mas somente a construção de um horizonte comum viabiliza a vida numa sociedade democrática.

  • A Pós-Modernidade, as Fake News e o Cálculo Diferencial

Primeiro veio a Pós-Modernidade, que reduziu as certezas da razão iluminista a pó, e colocou sob suspeita toda tentativa de caracterização de uma verdade em sentido absoluto. Da relativa ingenuidade da busca de tal verdade, fomos conduzidos à verdade como coerência em sentido lógico, e daí a uma relativização de tal ideia, que passaria a ser, necessariamente, tributária de um contexto. A multiplicidade de contextos conduziu paulatinamente a uma aparente relativização da noção de verdade. Mas a imensa diversidade de contextos não significa um esvaziamento da verdade, que precisa permanecer no horizonte de toda argumentação bem intencionada. É certo que ser ou não ser verdade é uma questão complexa, e ganhou espaço certa flexibilização das fronteiras entre ser ou parecer. Mas não podemos nos contentar com a identificação da ideia de verdade com a de uma narrativa consistente. Seria como se, na reconstituição de um crime, conduzida pela polícia, a coerência da narrativa fosse suficiente para a garantia da culpabilidade do suspeito. Diante de tais dificuldades conceituais, um justo enfraquecimento da razão estritamente formal não pode conduzir a um terreno minado em que as opiniões passem a predominar sobre as demonstrações, e a distinção entre verdades e crenças não justificadas não se faça necessária.

Uma nova acrobacia, especialmente arriscada, é, agora, ensaiada.  Da relatividade absoluta, passa-se agora à proclamação  da inexistência da verdade. Extrapolando-se o ceticismo da pós-modernidade, pretende-se, agora, uma caracterização do que seria uma pós-verdade. Em tal cenário, a aparência substitui a essência, o parecer ocupa o lugar do ser, a coerência torna-se sinônimo de verdade. E os meios de comunicação, especialmente os eletrônicos, abrem espaços generosos para as chamadas fake news. A sintonia entre o divulgado e o que pensamos não pode dispensar o cuidado com a verificação das fontes. Um juiz de futebol não é desonesto apenas quando intencionalmente favorece nosso adversário, mas também quando nos favorece.

Reiteramos, no entanto, que a existência da verdade permanece no horizonte, tanto de uma  descomprometida conversa, que busca uma partilha ou troca de opiniões, quanto de uma argumentação sincera, bem intencionada, em que se pretende justificar proposições, fundamentar escolhas.

Para explicitar tal posição, consideremos a afirmação “Não existem retas no mundo”. Certamente, poder-se-ia discutir o que seria uma reta: o caminho mais curto entre dois pontos? a trajetória da luz no vácuo? uma geodésica? A dificuldade, no entanto, está em definir-se o que é uma reta, mas todos têm uma ideia do que seria a retidão. Mesmo sem definições precisas, somos capazes de distinguir retas de não retas, no dia a dia. E compreendemos que as curvas, das mais simples às mais complexas, podem ser aproximadas por retas de maneira sugestiva e proveitosa nas proximidades de um ponto.  As retas tangentes são especialmente interessantes na aproximação local de curvas por retas. Não existe uma reta única, absoluta, que aproxima satisfatoriamente dada curva, em toda sua extensão, mas, localmente, em cada contexto, existe uma reta que mais bem representa a curva referida.

Algo similar ocorre quando pensamos sobre a ideia de verdade. Mesmo sem definições precisas, distinguimos a retidão da verdade e a complexidade da não verdade, nos mais diversos contextos. Quando se pretende a inexistência de uma verdade absoluta, é como se se registrasse que não existe uma reta única que traduz a complexidade da curva/narrativa em toda sua extensão, mas, localmente, em cada ponto, em cada contexto, existe a possibilidade de retificação, de referência à verdadeira retidão.

Naturalmente, não se está insinuando, nem de longe, que tal aproximação local de uma curva genérica por uma reta seria imediata e trivial: é preciso estudo e dedicação para compreender isso. Uma aproximação dos elementos teóricos de tal estudo pode ser encontrada no Cálculo Diferencial…

  • Conceitos, Esquemas

Uma das palavras cujo uso se aproxima de um abuso é “conceito”. Na linguagem corrente, frequentemente identifica-se com palavras como “ideia”, “noção”, “significado”. No discurso educacional, são fartos os registros da busca do ensino de conceitos para alunos da escola básica, ou mesmo para crianças. Na realidade, no entanto, vivemos na antessala dos conceitos. Ensinamos às crianças noções fundamentais de muitos temas importantes para a vida, sem a pretensão, no entanto, de uma apresentação conceitual em sentido filosófico. Podemos falar sobre a vida, o ser humano, a verdade, ou o tempo, mas não lidamos ordinariamente com o conceito de vida, o conceito de ser humano, o conceito de verdade, o conceito de tempo, e isto não nos faz falta. A ideia que temos de tais noções nos parece suficiente. Uma reflexão mais funda sobre tais conceitos parece ser da responsabilidade dos filósofos. Há até os que pretendem que a centralidade das atenções no ensino de conceitos seria o objeto específico da Filosofia. Os conteúdos que usualmente ensinamos, no âmbito das diversas disciplinas, seriam constituídos essencialmente de noções, de ideias, de significados. Imprescindível a todas as disciplinas seria o significado do que se ensina, mas nem sempre dizer “significado” quer dizer “conceito”.

Uma palavra que pode servir de ponte entre uma abordagem conceitual de um tema e outra, aparentemente anárquica, dos significados, é a ideia de esquema. Um esquema é uma unidade de ação ou representação, na construção dos significados. Piaget explorou de modo especialmente fecundo os esquemas das crianças, nas fases iniciais da aprendizagem. Partindo de esquemas simples, como os de preensão ou de sucção, avançou até os esquemas sensório-motores, como unidades de ação, avançando, a partir daí, numa sequência de estágios pré-operatórios e concretamente operatórios, até o período das operações formais, na antessala dos conceitos. Peirce explorou a noção de hábito, que apresenta uma conexão direta com a ideia de esquema, mas foi a dupla de pesquisadores Arbib e Hesse, em um livro fundamental intitulado The construction ou reality (1986) que produziu uma síntese exploratória brilhante da ideia de esquema, um material especialmente valioso na constituição da dignidade e da relevância que, a nosso ver, tal ideia merece ter.

Partindo das ideias de Piaget, os referidos pesquisadores deslocaram o foco das atenções para a aprendizagem da língua, passando suavemente dos esquemas sensório-motores à palavra como unidade de ação/significação, ou seja, como um esquema. A viagem prosseguiu, sempre de maneira gradual e compreensiva, passando-se da palavra às metáforas como germes de esquemas, daí às micro-narrativas, às narrativas, até a ideia da língua como um grande esquema simbólico. Um percurso paralelo especialmente importante ao longo do livro é o que explora as ideologias e as religiões como macro-esquemas como macro esquemas de ação.

Um fato notável a quem tem olhos para ver: o livro de Arbib e Hesse apresenta uma densidade filosófica indiscutível, sem recorrer, em qualquer momento, à palavra “conceito”.

  • Pressentimento e Preconceito

Continuamente, múltiplas sensações e percepções nos alcançam por meio dos órgãos dos sentidos. Elas são, simultaneamente, vitais e insuficientes para nos guiar adequadamente na construção do conhecimento. É fundamental filtrar as sensações e buscar o que há de partilhável na diversidade de sentidos, ou seja, o significado do que se percebe. Conhecer é conhecer o significado, e, decididamente, o que não é sentido, não faz sentido, e nada pode significar. Duas filtragens adicionais merecem especial registro,  nos processos cognitivos. Por um lado, anteriormente ao sentido, há o intuído, o pressentido. Não podemos ignorar tais ocorrências, nem nos entregar acriticamente a elas. Os pressentimentos não podem ser considerados numa perspectiva apenas lógica, nem podem ter ignorados seus elementos mínimos, representados por sintomas, por indícios. Pressentimentos podem ser descabidos, mas também podem constituir premonições inspiradoras, e somente o futuro poderá avaliá-los. Por outro lado, dos sentidos extraímos os significados, que são socialmente partilháveis por meio das palavras, e que são, frequentemente, ambiciosos na busca da construção de conceitos. Entretanto, toda palavra é portadora de significados, mas apenas uma parte ínfima do universo verbal é constituída por conceitos. Na quase totalidade das situações, na escola básica ou na vida social, vivemos na antessala dos conceitos. A formulação de um conceito exige certa categorização, com definições precisas, classificações, organizações, expectativas de causalidade. De um ponto de vista técnico, não vivenciamos na linguagem e na vida cotidiana um conceito de tempo, de homem, de pessoa, de sociedade: partilhamos noções, ideias de tempo, homem, pessoa, sociedade, temos opiniões a respeito de tais temas, mas nos situamos bem longe do terreno conceitual, salvo em situações formais extremamente específicas – e raras. Vivemos e agimos na antessala dos conceitos, em terrenos preconceituais. Conversamos para fazer circular e eventualmente trocarmos  opiniões, mas poucas vezes operamos no nível estrito dos conceitos. De modo geral, entendemo-nos bem assim, e somente corremos o risco de, por excesso de autoconfiança, como se fosse um tipo de hybris, tratar noções preconceituais de modo rigoroso, como se fossem conceitos: tecnicamente, elas passariam a constituir os sempre abomináveis preconceitos. Um preconceito é precisamente isso: uma noção preconceitual que se arvora de conceito. Não parece prudente nem ignorar completamente as intuições, os pressentimentos, nem se deixar guiar por meros preconceitos. Uma pessoa comum vive a maior parte do tempo buscando, aqui ou ali, um ou outro conceito, mas respeitando os pressentimentos tanto quanto as previsões meteorológicas: o fato de, às vezes, se mostrarem erradas não significa que não fazem qualquer sentido…

  • Ciência e Religião: Conceitos e Preconceitos

O senso comum mais aligeirado associará duas a duas as quatro palavras referidas no título numa ordem que parece natural: acostumamo-nos a pensar na Ciência como o lugar dos conceitos, e são comuns as associações entre o terreno das Religiões e o dos preconceitos. Parece-me, no entanto, que tais associações traduzem uma visão simplificada – e preconceituosa – em relação a ambos os temas. A associação que considero absolutamente natural é a que se dá entre a Ciência e os preconceitos, o que buscaremos justificar a seguir. Vivemos continuamente em busca de um significado para nossas ações mais ordinárias: conhecer é conhecer o significado. Tal significado é continuamente construído por meio de um feixe de relações estabelecidas entre as ideias já conhecidas e as noções emergentes. As ideias, as noções, as opiniões que construímos aspiram ao estatuto dos conceitos, que são significados consolidados em teorias, expressos em definições precisas, em classificações, em organizações hierárquicas que inspiram relações causais. Na grande maioria dos casos, no entanto, não logramos atingir tal nível dos conceitos. Como bem nos lembrou Santo Agostinho, vivemos a noção de tempo, partilhamos com os outros nossas cronologias e nossas narrativas, mas poucos de nós podem afirmar que têm um conceito de tempo bem definido. Não se trata de uma exceção fortuita: também não temos um conceito nítido de ser humano, de humanidade, de pessoa, de vida em sentido humano, por mais educados que sejamos. Vivemos a maior parte de nossas vidas, mesmo quando tratamos de ideias científicas,  na antessala dos conceitos, em terreno reconhecidamente preconceitual. Somos movidos por esquemas sensório-motores, por metáforas inspiradoras, por associações simbólicas aparentemente arbitrárias. Não se trata de um defeito de fabricação, mas sim de nossa condição humana. Nossas realizações estritamente conceituais são puntiformes, são circunstanciais: o preconceitual é nossa praia. Não compreender tal fato é sintoma da persistente hybris que busca nos elevar até o nível dos deuses que não somos. A tragédia humana não resulta dessa nossa natural limitação, mas sim da ilusão do tratamento das ideias preconceituais, dos esquemas sensoriais ou verbais como se fossem conceitos. O mal não está na aceitação do preconceitual como conhecimento legítimo, mas sim no tratamento do preconceitual como conceito, o que caracteriza um preconceito. Espasmos de arrogância conduzem a Ciência a tratar ideias simples e inspiradoras, mas frágeis como um ser humano, como conceitos bem estabelecidos, como se emanassem de deuses poderosos. Pecados desse tipo são muito comuns na Ciência, em todas as suas vertentes. As Religiões também revelam um pecado similar: o tratamento de metáforas inspiradoras, de alegorias poderosas como se pudessem ser traduzidas em sentido literal. O paralelismo me parece perfeito: tratar o preconceitual como conceito é descabido, é a doença da Ciência; traduzir o metafórico, o alegórico das narrativas religiosas em sentido literal também é sintoma da mais pura insanidade.

  1. Eça de Queiroz, Machado de Assis e o Jornal: Um Bem? Um Mal?

Poucos anos separam dois diagnósticos opostos sobre a função do jornal, da lavra de dois notáveis escritores. Em meados do século XIX, Machado de Assis publicou um artigo no jornal Correio Mercantil, intitulado O jornal e o livro, em que arrisca uma previsão sobre a inevitável derrota do livro, diante da agilidade da publicação dos jornais. Destaca a força do instrumento que considera adequado às demandas políticas da época e afirma, sem meias palavras, que o jornal é uma expressão, é um sintoma de democracia.

Poucos anos separam uma previsão não menos incisiva sobre o tema, da lavra de Eça de Queiroz. Numa das cartas publicadas no livro A correspondência de Fradique Mendes (“A Bento S.”), Eça exara uma opinião absolutamente distinta do otimismo machadiano. Em carta encaminhada a Bento S., Mendes, que era o pseudônimo utilizado por Eça em seus escritos poéticos, critica a intenção do amigo de criar um jornal, registrando as seguintes considerações:

“A tua ideia de fundar um jornal é daninha e execrável… Tu vais concorrer para que no teu tempo e na tua terra se aligeirem mais os Juízos ligeiros, se exacerbe mais a Vaidade, e se endureça mais a Intolerância. Juízos ligeiros, Vaidade e Intolerância – eis três negros pecados sociais que, moralmente, matam uma sociedade!”

É praticamente impossível não reconhecer que Eça e Machado foram atropelados pelas tecnologias informáticas, que surgiriam mais de cem anos depois, e que assumiriam o protagonismo tanto na agilidade na circulação de informações, quanto na exacerbação das características negativas referidas, associadas ao funcionamento de instrumentos como a rede www, nas chamadas redes sociais. A transformação das funções exercidas pelos jornais, atualmente, é notável: buscamos suas páginas não mais para recolher as notícias fresquinhas, disponíveis continuamente na rede, mas cada vez mais para apreciar as análises de comentaristas confiáveis, nas diversas áreas cobertas pelos jornais.

Tinha razão Machado, em seu elogio à agilidade jornalística, que durou muito pouco, sendo atropelada por outros meios; e tinha razão Eça, ao temer, sobretudo, o aligeiramento dos juízos, resultantes de uma divulgação quase sempre acrítica, de temas originados precipuamente em mera vaidade, ou na suprema intolerância de se achar que cada pequena ocorrência no mundo privado de um pretendente a youtuber pode interessar ao espaço público de pseudo famosos de araque.

O fato é que Eça e Machado atiraram no jornal e acertaram nas redes sociais.

  • Democracia: as visões de Dewey e Tarde

Em Democracia e Educação (1916), um livro do início do século XX, John Dewey registra uma máxima notável, no delineamento da organização social: ter Democracia sem Educação, ou ter Educação sem Democracia é como aliviar de uma pena de morte alguém que foi condenado a duas… É fácil concordar com Dewey sobre o fato de que a Educação é condição de possibilidade do pleno funcionamento de um regime democrático, ainda que nem sempre seja simples uma consonância com os meios para a consolidação dos dois macro valores que a máxima propõe.

Mais ou menos na mesma época, no final do século XIX, Gabriel Tarde afirma, com a mesma convicção de Dewey, ainda que com menos repercussão, que uma Imprensa livre é condição de possibilidade de uma Democracia. Em seu texto seminal A opinião e as massas, Tarde destaca a importância da conversa, da comunicação entre os cidadãos no sentido de uma construção efetiva do espaço da troca de opiniões, da conversação não preconceituosa, na antessala da busca de argumentos para uma posterior defesa de ideias, valores e posições. E na construção de tal espaço, o papel de uma Imprensa livre e responsável é destacado com vigor.

A despeito do discernimento e da pertinência na formulação de suas máximas, nem um nem outro pode assistir à imensa amplificação da importância dos fatores vitais para o pleno funcionamento de uma Democracia por eles anunciados, associados ao fenômeno da rede mundial de computadores (1993). No mundo inteiro, as eleições estão sendo intensamente afetadas pela comunicação nas redes sociais de um modo ainda difícil de se compreender.

Uma questão decisiva, ainda a ser explorada, é o fato de que é cada vez mais claro o modo como as redes podem contribuir decisivamente para a chegada ao poder, mas ainda está por ser minimamente compreendida a forma como elas interferirão no exercício efetivo do poder. A tecnologia parece acrescentar uma tremenda complexidade à administração de tal fenômeno, e a face mais visível dos problemas, as chamadas Fake News, parecem ser apenas a pontinha do imenso iceberg da comunicação direta. Eis aí um desafio especial aos cidadãos, enredados ou não.

  • As crianças na Caverna, a Falácia Utilitarista e as Olimpíadas Zoológicas

Uma equipe de doze crianças tailandesas, juntamente com seu treinador, ficou perdida ao longo de nove dias, no interior de uma caverna aparentemente inexpugnável. Isolados do mundo exterior por sifões de água suja, em compartimento escuro, com pouco ar e parca alimentação, foram, afinal, localizados, mas um monumental quebra-cabeças logístico foi enfrentado pelas equipes de resgate. Bombeiros, mergulhadores, médicos e centenas de profissionais de diversas competências técnicas buscaram equacionar o problema por todos os meios imagináveis, mas, decididamente, a tarefa não seria fácil. Para encurtar a história, após vários dias de meticuloso planejamento, o resgate foi realizado, com todas as crianças salvas, bem como seu treinador.

Os jornais diários noticiaram fartamente toda a epopeia, que sensibilizou e mobilizou o planeta, mesmo o evento tendo ocorrido durante a Copa do Mundo de Futebol (2018). Aos 40 mergulhadores tailandeses, uniram-se mais de 50 profissionais de mergulho de outros países, e uma equipe de mais de 1000 profissionais trabalhou dia e noite em busca da preservação da vida das crianças e de seu treinador. Os crentes rezaram, os descrentes torceram, ninguém ficou indiferente ao que ocorria no interior de uma caverna tailandesa, envolvendo um pequeno número de seres humanos em formação. Nenhum esforço foi poupado, nenhuma dúvida sobre o significado e a relevância da tarefa coletiva, assumida solidariamente por tantos participantes de tão diversos países. Muitos sofreram muito e sentiram profunda e sinceramente as dores das crianças e das famílias envolvidas, independentemente de seu número. Mesmo com a ocorrência da morte acidental de um dos mergulhadores, o elenco maior de valores humanos envolvidos não abriu qualquer espaço para uma contabilidade utilitarista, não houve registro de qualquer dúvida com relação à pertinência da dedicação dadivosa de todos os envolvidos.

A despeito do sofrimento e do sentimento de angústia ao longo do evento, episódios como o das crianças tailandesas acendem em cada um de nós uma chama de esperança no imenso repertório de valores e de possibilidades de cada ser humano. A fé na perfectibilidade humana é um alento sublime que nos mantém vivos. Mas a vida humana, que certamente inclui a dimensão animal, sem se limitar a ela, precisaria ser repensada. Como há muito nos lembrou Ortega y Gasset, o que chamamos de Biologia não passa de uma Zoologia Humana. As palavras bio e zoo são de origem grega e significam vida, mas em sentido diverso. Zoo refere-se à vida em sua dimensão animal, do corpo físico, enquanto bio refere-se à vida em sentido humano, a vida com a palavra, juntamente com os outros, a vida do homem como animal político. As Copas do Mundo, as Olimpíadas, contribuem para nosso aperfeiçoamento na dimensão animal, latente em cada um de nós; são competições zoológicas. Seria necessário criar Olimpíadas Biológicas, em que os seres humanos competiriam para se tornar melhores como seres humanos, corpo e alma, razão e sentimento, física e mentalmente. O grande desafio é o do aperfeiçoamento de cada ser humano como pessoa. Enquanto não existirem Olimpíadas desse tipo, as cavernas tailandesas têm mais a nos ensinar, a nos fazerem crescer como seres humanos, do que as competições esportivas no sentido atual.

  • O Público, o Privado e a Prosopopeia do Mercado

Há uma ideia tácita mais ou menos partilhada segundo a qual o que é Público refere-se diretamente ao Estado e o que é Privado pode ser associado ao Mercado. Privatizar uma atividade seria, então, subtraí-la da responsabilidade do Estado e entregá-la aos braços do Mercado. Trata-se, naturalmente, de uma simplificação excessiva. Uma compreensão mais abrangente da coisa pública (res publica) é condição necessária para uma vivência com os outros, numa sociedade democrática. De modo especular, carecemos também de uma compreensão mais plena do significado do Privado, sobretudo em tempos e espaços como o das redes sociais, em que pululam em espaços públicos explorações de imagens e/ou informações que seriam pertinentes apenas no âmbito do privado.

Em seu livro de despedida, publicado em 2004 e intitulado A Economia das Fraudes Inocentes, o economista John Kenneth Galbraith destaca algumas ideias do senso comum da Economia ensinada nas Universidades, que são apresentadas como verdadeiras, mas que constituem verdadeiras fraudes. De modo tolerante, tais ideias são rotuladas pelo autor como “fraudes inocentes”, ainda que algumas não mereçam efetivamente tal qualificativo. Uma delas seria precisamente a de que existiria uma distinção nítida entre o interesse público e o privado, ou, de modo geral, um critério nítido de demarcação entre os elementos do par Público/Privado. Com a autoridade de quem desempenhou funções de destaque em nível mundial na gestão da economia, incluindo-se um longo período na presidência do FED, que seria como um Banco Central americano, Galbraith expõe os meandros das complexas e delicadas relações entre o governo e a indústria de armamentos, nos EUA, o que desnudaria uma interferência incisiva, eticamente difícil de se aceitar.  Nos últimos anos, vieram à tona na mídia muitas informações igualmente incômodas sobre certa promiscuidade nas relações entre os governos e a indústria farmacêutica. Ainda que os fatos divulgados possam comportar diferentes interpretações, não podendo ser considerados verdades absolutas, são muito sólidos os indícios de que o par Público/Privado carece urgentemente de uma revisão conceitual.

Nos dias atuais, as interfaces entre o Público e o Privado situam-se em três dimensões principais, nos terrenos da Economia, da Sociologia e da Política. Apesar de constantemente se misturarem, e de parecer praticamente impossível uma separação nítida entre tais dimensões, elas apresentam elementos distintivos que mereceriam uma atenção especial.

Na Economia, alguns ingredientes relativamente recentes parecem especialmente relevantes. O primeiro deles é o fato de que o conhecimento se transformou efetivamente no principal fator de produção, transformando substancialmente as ideias de autoria e de propriedade. Em terrenos como o da Medicina, ou da indústria farmacêutica, uma estrita privatização do conhecimento pode ser facilmente caracterizada como imoral, e uma espécie de habeas cognitio pode ser um instrumento tão importante no que se refere à vida como um valor quanto o habeas corpus representa no que tange à liberdade pessoal. O premiado trabalho que resultou no Prêmio Nobel de Economia para Elinor Ostrom em 2009, intitulado Understanding Knowledge as a Commons, representa um marco notável em tal percurso. Ao defender a caracterização do conhecimento como um commons, uma categoria criada para se contrapor à ideia de commodity,  situando o conhecimento ao lado da água que partilhamos ou do ar que respiramos, Ostrom alinhavou elementos teóricos especialmente fecundos, a serem explorados no sentido de redefinir a relação entre o público e o privado na produção e na circulação do conhecimento, com as consequentes redefinições de autoria e de propriedade. Iniciativas como a do Creative Commons constituem apenas o ponta pé inicial de um jogo que acabou de começar.

No terreno da Sociologia, a partir da primeira metade dos anos 1990, com a contribuição e a rápida evolução das tecnologias informacionais, crescem a cada dia as evidências de uma singular promiscuidade entre o Público e o Privado. A possibilidade aberta a praticamente todos os interessados de um acesso às redes sociais, espaço em que, paradoxalmente, a autoria e o anonimato continuamente proliferam, fez, já há algum tempo, sua mais importante vítima: a ideia de verdade. O fenômeno das fake news ocupa espaço importante na circulação de informações, sobretudo em épocas críticas, como a das eleições. Se há muito se sabe que a Educação é condição de possibilidade do funcionamento de uma Democracia, mais recentemente tornamo-nos mais conscientes de que há muito o que aprender no que tange à partilha do espaço informacional, com sua peculiar maneira de imiscuir e promiscuir os espaços público e privado. Em meados do século XIX, Eça de Queirós advertiu um amigo que pretendia fundar um jornal, em uma carta a ele dirigida em que associa o aumento na circulação de notícias com o crescimento da intolerância. Ao acolher autores com ideias semelhantes, que continuamente se fermentam e se alimentam, os jornais, segundo Eça, em tal carta, poderiam favorecer tal desvio. Eça foi, sem dúvida, premonitório, os aspectos supostamente negativos que aponta nos jornais têm sido amplificados milhares ou milhões de vezes pelas redes sociais.

É no terreno da Política, no entanto, que as transformações nas relações entre o Publico e o Privado se tornam mais sutis e mais tensas.  De fato, como bem apontou Galbraith no livro anteriormente citado, a divisão entre Estados capitalistas ou socialistas tornou-se claramente insuficiente para a caracterização da orientação política de cada um. A associação simplista do capitalismo com a prevalência do Privado, e o socialismo como a predomínio do setor Público rapidamente tornou-se inexpressiva. O fracasso de regimes como o da ex União Soviética pode ter sugerido, de início, um triunfo da perspectiva capitalista, mas rapidamente o capitalismo amplificou algumas de suas facetas  mais perversas, como é o caso das dificuldades na circulação de bens fundamentais para a vida humana entre todos os necessitados. A despeito de tanto sucesso na produção de riquezas. em todos os lugares, a desigualdade iníqua é cada vez maior.  E não se trata apenas de ocorrências de tais disparidades em países periféricos. Nos últimos meses, a divulgação ampla na mídia de um fato provocou desconforto e teve consequências práticas imediatas. Na divulgação dos resultados econômicos relativos ao ano de 2017, anunciou-se que o principal acionista de uma grande empresa no mercado do comércio e de tecnologia faturara em dividendos cerca de 3 bilhões de dólares, ao mesmo tempo em que o salário médio dos programadores de sua bem sucedida empresa seria de apenas 4 dólares a hora… Em cerca de um mês, a repercussão negativa provocou duas inciativas marcantes do principal acionista: uma doação de cerca de 1 bilhão para uma causa educacional nobre e, o que é mais importante, um aumento do piso salarial para os programadores para 15 dólares a hora… Um efeito político absolutamente desejável seria uma “contaminação”  das políticas de remuneração de todos os empregadores, tanto no setor público quanto no privado, pela consciência, ainda que tardia, do acionista acima referido. Remunerar adequadamente o trabalho é, sem dúvida, a política mais consistente de distribuição de renda.

É na confluência dos terrenos da Economia, da Sociologia e da Política, no entanto, que se dá a mais sutil das reconfigurações entre as relações entre o Público e o Privado. Com a inexpressividade do par capitalismo/socialismo na referência à realidade política dos diversos países, operou-se uma nova caracterização de tal distinção: há Estados cujo sistema produtivo é caracterizado como uma Economia de Mercado; outros, teriam uma economia marcadamente estatal, ou seja, excessivamente regulada/controlada pelo Governo. A expressão “Economia de Mercado” passou a representar um modelo amplamente desejável, sublimando as restrições ao capitalismo. Ao mesmo tempo, a regulação estatal, que admite uma discussão importante sobre seus limites, mas não sobre sua existência, passou a ser vista como intrinsecamente indesejável, tangenciando, às vezes, a seara do anarquismo.

O aspecto sutil de tal mudança de perspectiva é a ocorrência concomitante de uma prosopopeia do Mercado, ou uma espécie de humanização de tal constructo . Todos os dias, somos informados de que “o mercado está nervoso”, “o mercado está otimista”, “o mercado reagiu mal às medidas do Governo”, como se a entidade “Mercado”, ou o Modelo da Economia de Mercado, ao invés de se esforçar para representar a realidade, às vezes falhando em tal intento, passasse a reger a realidade, como se tivesse vontade própria. Para representar uma síntese efetiva entre os interesses Público e Privado, o Mercado não pode ser como um ser humano isolado, uma pessoa desvinculada dos interesses da sociedade. O Mercado não é bonzinho ou malvado, é o que nosso projeto de país quiser fazer dele.

  • A Desigualdade de Renda, a Febre Amarela e o Big Bang

Há uma doença que ataca o mundo inteiro, produzindo estragos consistentes no modo de ser do ser humano. Mais letal que a febre amarela, tem as características de uma verdadeira pandemia: trata-se do crescimento desordenado da desigualdade de renda, uma espécie especialmente agressiva de câncer social. Alguns indicadores numéricos de tal síndrome: 1% da população mundial tem nas mãos 82% de toda a riqueza produzida; 50% da população mundial vive com uma renda de 2 a 10 dólares por dia; apenas 5 brasileiros ultrarricos têm em mãos 50% da população de renda mais baixa. Os dados são extraídos do Relatório recentemente divulgado pela ONG britânica OXFAM, mas números similares têm sido apresentados desde que a Revista Forbes instaurou a publicação periódica de tais listas de bilionários, em 1987. E o abismo que separa ultrarricos de superpobres somente tem aumentado, ano após ano. Todo o sistema econômico é organizado tendo por base princípios de promoção da desigualdade. O fundador /proprietário de uma marca de roupas (a Zara), um dos homens mais ricos do mundo, paga cerca de 4 dólares por dia aos trabalhadores que emprega, ao mesmo tempo que recebe cerca de 1,5 bilhão de dólares de dividendos oriundos de sua vasta produção. Em grande parte das empresas, a remuneração dos executivos corresponde até 20 vezes o salário médio dos encarregados pela produção.  No Brasil, considerado um dos países mais desiguais do mundo no que se refere à distribuição da riqueza produzida, os impostos correspondentes à transmissão de heranças atingem no máximo 8%  do patrimônio, enquanto no Reino Unido pode chegar a 40%. De modo geral, os 10% mais pobres do Brasil gastam 32% de sua renda em tributos, enquanto os 10% mais ricos gastam cerca de 21%.

Para corrigir a anomalia de tal estado de coisas, não faltam ideias interessantes, mas sim a coragem de implementá-las. Uma Reforma Tributária teria que partir de uma valorização efetiva do trabalho, em contraposição às rendas provenientes do patrimônio e da riqueza. Precarizar as condições de trabalho, minimizar despesas, especialmente com salários, tendo em vista maximizar lucros, é um caminho que já sabemos onde vai dar. Políticas compensatórias, do tipo Renda Mínima, são paliativas, não atingindo o cerne das causas da desigualdade excessiva, de natureza economicamente cancerosa. É fundamental manter o foco das atenções no fato de que quem vive de salário não vive de rendas… O sistema tributário não pode fazer vista grossa para o fato de que a única maneira justa de distribuição de renda é a justa remuneração do trabalho.  Compensações para situações especiais, em que deficiências físicas ou resultantes da idade são evidentemente necessárias, mas a regra geral deveria ser, sem dúvidas, a distribuição da riqueza por meio de uma remuneração digna, qualquer que seja a natureza do trabalho realizado. Um problema teórico importante dificulta, no entanto, qualquer iniciativa que possa ser tomada no sentido acima indicado. Em uma época em que o conhecimento se transformou no principal fator de produção, constituindo a grande riqueza a ser distribuída, não sabemos como atribuir valor a tal riqueza, persistindo a intenção tácita de tratá-la como se tratam as mercadorias em sentido industrial. Mas o conhecimento não se esgota em sua dimensão mercantil. Ele é um bem que se pode dar, vender ou trocar sem ficar sem… Trata-se de uma fonte de paradoxos, em nossa tosca contabilidade mercantil. Trabalhos como a economista Elinor Ostrom, primeira mulher a receber o Prêmio Nobel de Economia (2009) com o conceito de commons,para se contrapor ao de commodities, ainda permanecem incipientes. Ao incluir o conhecimento na categoria de commons, como o ar ou a água que nos mantêm vivos, Ostrom apontou numa direção auspiciosa, mas seu falecimento poucos anos depois da obtenção do Nobel pode ter atrasado um pouco a amplificação de suas ideias.

Um ponto crucial, no entanto, permanece pouco referido pela maior parte dos analistas da problemática da contabilidade das riquezas e de sua distribuição mais justa: não sabemos mais como calcular o PIB a ser partilhado. De fato, a produção de riquezas distribui-se pelo mundo mais em função de facilidades tributárias do que da nacionalidade das empresas, o que pode não afetar o PIB mundial, mas afeta drasticamente o PIB de cada país. Mais grave ainda, no entanto, é o fato de que a rede mundial de computadores, que transformou noções de tempo e de espaço, está a redefinir a própria ideia de moeda, com bitcoins ou outras criptoficções. É sintomático que se fale muito mais de aumento ou diminuição dos PIBs nacionais, sem referência mais explícita ao PIB mundial, às miraculosas startups, que extraem valor do nada, ou das criptomoedas, uma verdadeira febre amarela que ainda devorará o fígado de muitos investidores, que transformam esperteza em riqueza.

A situação não é simples, exigindo grandeza na concepção de riqueza. A Economia Virtual poderá nos levar a descobrir que a explosão do big bang, em vez do início de tudo, poderia ser o ato final de uma brincadeira de mau gosto.

  • Gravidez não é Doença, e Salário não é Renda…

Algumas décadas já se foram, mas me lembro bem da insistência do ginecologista que assistiu o nascimento de meu primeiro filho, diante do excesso de preocupações de um pai calouro, ao reiterar a mensagem: “Gravidez não é doença!” Ainda que em situações excepcionais possa sê-lo, normalmente, obviamente, não o é. Trata-se de um recado simples, muitas vezes solenemente olvidado, em cenário impregnado de inovações tecnológicas, em que um médico costuma solicitar a priori um grande número de exames, antes mesmo de olhar nos olhos ou conversar com o paciente, em que o parto natural  é tantas vezes desnecessariamente transformado em cirurgia. Talvez não seja excesso de otimismo acreditar que um reconhecimento progressivo de tais desvios esteja ocorrendo, e a consciência da sabedoria expressa na mensagem tranquilizadora “Gravidez não é doença” venha crescendo, em todo o mundo.  Tais fatos me vêm à mente em decorrência de outra comparação igualmente pertinente, que necessita da construção de uma consciência similar: “Salário não é renda”.  Tecnicamente até pode sê-lo, mas a sabedoria popular, expressa no uso corrente da linguagem, é absolutamente transparente: ninguém diz, de alguém que vive de seu próprio salário, que “vive de rendas”. Na teoria econômica, a renda é entendida como a remuneração dos fatores de produção. O salário seria a remuneração pelo trabalho; os juros e os lucros seriam a remuneração pelo capital; os aluguéis a remuneração pela propriedade… O Imposto de Renda iguala todas essas formas de remuneração, incidindo de modo quase inescapável sobre os salários e sendo muito mais generoso com os ganhos associados ao capital. Entre as inúmeras reformas da legislação vigente que periodicamente vêm à tona  (Reforma da Previdência, Reforma Política, Reforma Tributária,…), talvez a mais simples delas fosse a que mais eficazmente produziria efeitos sociais: refiro-me a uma distinção mais nítida entre salário e renda, estimulando-se e valorizando-se decididamente a remuneração do trabalho, expressa pelo valor do salário, e tratando da renda, entendida em sintonia com o sentido popular do “viver de rendas”, ou seja, primordialmente, como a remuneração do capital e da propriedade, e estabelecendo alíquotas mais justas no sentido da distribuição da riqueza produzida. Em termos radicais, poder-se-ia simplesmente estabelecer que “salário não é renda”; em busca de alguma contemporização, poderia ser criada uma distinção nítida e crucial entre a renda que vem do trabalho e a que vem do capital ou da propriedade, criando-se uma alíquota menor (talvez única) para o salário e alíquotas progressivas para a tributação da renda. Não custa sonhar…

  • Bill Gates e as Privadas Inteligentes

Deu na mídia: a Fundação Bill e Melinda Gates anunciou a criação de uma privada tecnologicamente avançada, tendo em vista uma solução para o problema da carência do saneamento básico no mundo. Curiosamente, apesar de não recorrerem ao efeito de um sifão e de dispensarem completamente o uso da água, as novas privadas mantêm a forma usual. O processo de utilização, no entanto, é outro, transformando-se o excremento em material seco que pode ser usado como fertilizante. Inicialmente, o preço de cada unidade é muito alto, não se vislumbrando de imediato uma disseminação de seu uso. No entanto, como acontece em situações similares, o custo marginal tende a diminuir e os problemas crônicos do saneamento básico que atingem numerosos e populosos países, inclusive o Brasil, podem ser abordados em outra perspectiva. Depois de ter inovado no desenvolvimento de produtos relacionados com a inteligência humana, Gates agora abre os portões para o que está sendo chamado de “inteligência” das privadas.

  • O Capim, o Leite, o Estrume e a Flor

Em interessante matéria publicada em jornal (OESP, 13-08-2017), o biólogo Fernando Reinach explora de modo instigante o fato de a ciência estar avançando no sentido de transformar racionalmente ração vegetal em carne, desde a produção do frango até a de hambúrguer de soja, ou ainda, o incremento transgênico da produção do filé de salmão. Há pouco, em outro veículo da imprensa, (FSP, 14-04-2017), o aparente milagre da produção do perfume da orquídea a partir de leveduras que se alimentam de lixo também foi saudado em prosa e verso. Criar o animal para o abate já causa certo estranhamento em certa parcela da sociedade, composta pelos vegetarianos ou veganos; basear o tempo de vida de cada um deles em sua taxa de conversão na transformação de ração em carne é dar um passo à frente em tal estranhamento. A taxa de conversão é a razão entre a massa de ração utilizada em cada animal e os quilos de carne produzidos. Nos frangos, a taxa de conversão é 1,8, ou seja, gasta-se 1,8 kg de ração para produzir 1 kg de carne; a taxa é igual a 4 para os porcos, e, para desapontamento dos produtores, próxima de 7 para as vacas. Nossos avós escolhiam um frango no quintal e procediam como num ritual – que tinha, certamente, algo de macabro – para a morte por meio do corte no pescoço, a extração do sangue para a cabidela, ou a preparação da galinhada. Hoje, a vida de um frango para o abate dura exatos 39 dias, tempo após o qual a taxa de conversão do frango começa a aumentar, o que não se pode admitir.  Uma mensagem que parece decorrer de experiências como as citadas é a de que a objetividade da ciência estaria conduzindo a certa desvalorização dos meios, a uma centralização absoluta das atenções nos fins dos processos. Abaixo os rituais, abaixo os simbolismos, delete-se tudo o que parece supérfluo. O progresso nos processos faz tudo parecer inteiramente natural, dentro da lógica da otimização dos retornos, mas pode haver algo de assustador em tudo isso. O perfume sintético das orquídeas, o filé de soja e outros neo quitutes podem conduzir a extremos de intolerância, em que não tenhamos paciência nem mais pelos meios: vamos direto à origem, à fonte. A vaca transforma magistralmente capim em leite: tecnicamente, podemos produzir um atalho científico e passar a comer diretamente o capim. Não custa lembrar que uma roseira extrai do estrume que a alimenta o perfume de suas rosas… No livro Viagens de Gulliver, Jonathan Swift põe na boca do narrador, na visita à Academia de Lagados, algo relacionado à temática que examinamos. A Academia seria o local em que se produz ciência nos micromundos imaginados pelo autor. Em tal visita, o narrador descreve a maior das pesquisas realizadas em Lagados, que seria justamente a da transformação reversa do excremento em alimento, o que constituiria um progresso fabuloso na economia da alimentação.  Ironicamente, afirma que os resultados já estariam bem avançados, mas que um problema concreto estaria afligindo os cientistas envolvidos: o odor dos laboratórios não seria agradável. Quando são examinados com uma lupa, os processos econômicos associados à produção de medicamentos também não cheiram bem. Os princípios éticos que parecem guiar a indústria farmacêutica não parecem diferir muito da busca exclusiva pela maximização dos lucros. A alegoria de Swift parece perfeita e certamente nos faz parar para pensar, mas o problema fundamental de pesquisas como as inicialmente descritas neste texto é o da desvalorização dos meios nos processos vitais que nos mobilizam. Vivemos o tempo presente, que é uma duração, uma durée, segundo Bergson; a longo prazo, todos estaremos mortos.  A vida mesmo, a vida vívida e vivida de modo pleno, vale pela caminhada, pelos processos de aprendizagem que ocorrem ao longo da viagem. A vida não se resume à partida ou à chegada: a vida é durante.

  • Excrementos no Everest e nas Redes Sociais

Os jornais estamparam manchetes insólitas: “Fezes viram problema ambiental no Everest” (FSP, 2/11/2018). Subitamente, os dejetos deixados pelos alpinistas no local desde 1953, quando o Monte Everest foi pela primeira vez escalado, tornou-se um problema efetivo. Os dejetos não se decompõem na neve, e sua caprichosa conservação provocou medidas de proteção ao meio ambiente. O governo do Nepal passou a obrigar cada alpinista a apresentar na volta de sua empreitada, bem ou mal- sucedida, que pode durar de 6 a 8 semanas, um montante de 8 kg de fezes. Uma multa de US$ 4000 passou a punir, desde 2014, quem descumpre a regra.

Apesar de inusitada, a questão que está em jogo é simples; simples, mas crucial. A Terra é nosso lar comum e somos responsáveis pelos nossos atos. O que surpreende é o fato de precisarmos ir até o Everest para nos conscientizar de nossa responsabilidade com relação aos efeitos dos dejetos que continuamente produzimos. O não equacionamento do saneamento básico é a causa de doenças e mortes em muitos países, inclusive no Brasil. O montante de indivíduos que escalaram – ou tentaram escalar – o Everest desde 1953 é o de alguns milhares de indivíduos.  Em termos estatísticos, a influência global dos excrementos dos alpinistas é menos importante do que a obrigação dos donos de animais de recolher as fezes de seus estimados bichinhos. Os problemas de saúde e as mortes de dezenas de milhões de pessoas atingidas pela carência de saneamento básico são muito mais graves. A maior lição a ser aprendida com a manchete do Everest não é, no entanto, de natureza estatística, mas sim de natureza simbólica. É necessário assumir a responsabilidade pelo que excretamos, tanto do ponto de vista biológico, quanto no que se refere a outros tipos de excrementos, como alguns textos – ou quase isso – postos em circulação nas redes sociais, e eufemisticamente rotulados de Fake News. O simbolismo do Everest representa uma contribuição fundamental para a tomada de consciência de tal responsabilidade, antes que o Everest – e as redes sociais – se tornem montes de excrementos.

  • O Mar e a Bússola: A Fragmentação e as Ideias Fundamentais

Avalanche de dados

Como já dizia há algumas décadas um compositor popular em inspirada canção, “Quem lê tanta notícia?” Jornais e revistas multiplicam-se e recheiam-se de bizarrices, como recurso para chamar a atenção. Livros acumulam-se nas livrarias; editores pagam caro para dispor de espaço nas vitrines. Escreve-se sobre tudo e sobre todos, de biografias de recém-nascidos às regiões acinzentadas das relações sexuais; das mais insólitas idiossincrasias às realidades mais banais. De maneira ainda mais impressionante, a rede www continuamente disponibiliza dados cada vez mais abundantes, sobre todos os temas imagináveis. O volume de dados é imenso, a insuficiência no tratamento é a regra, a carência de estrutura é total. Como uma imensa avalanche, os dados ultrapassam os limites de nossa capacidade de informação e simplesmente nos soterram. Prestamos atenção numa frase solta aqui, noutra acolá. Somos convidados a repetir jargões ou palavras de ordem. Não nos tornamos mais sábios; apenas, mais sabidinhos.

Fragmentação e liquidez

A fragmentação do conhecimento é a regra. A multiplicidade de disciplinas explode ao final do ensino médio, ocupando as mentes adolescentes. Plenas de vida em sentido pleno, elas buscam significado para as ações que projetam, mas ele não se revela nos cacos de um vaso despedaçado cuja integridade não se conheceu. O esfacelamento disciplinar é como uma paráfrase da máxima marxista: o que era sólido desmanchou-se no ar. Se a rigidez iluminista incomodava mentes mais humildes, a pós-modernidade reduziu todas as certezas a pó, esvaziando o sentido das ações ordinárias. Valores fundamentais para a estruturação da vida perderam o sentido; atualmente, há pudores até ao falar-se do sentido dos vetores.

Como um recado para desafiar desilusões irresponsáveis, pensadores como Bauman apostam numa razão líquida, que perderia a rigidez, mas conservaria o volume. A submissão à forma do recipiente revela os limites de tal metáfora: na construção do significado, existem ideias e estruturas fundamentais.

A importância do fundamental

Uma grande ideia nos marca para sempre: quem abriu os olhos para ela, jamais a esquecerá. Mas esquecemos facilmente os pormenores de um fato, o que é absolutamente salutar, ou nos tornaríamos paralisados, como Funes, o memorioso, personagem de J. L. Borges.

É possível discorrer sobre um tema desfrutando apenas do interesse despertado, sem intenções de mapear o que é mais relevante; quando restrições de tempo ou de objetivos exigem, é preciso saber ater-se ao que é fundamental. De modo geral, explorar as ideias fundamentais torna qualquer tema mais compreensível do que quando se dá excessivo destaque a pormenores. Além disso, a ênfase no que é fundamental encurta a distância entre um conhecimento superficial e um conhecimento avançado de um tema. De fato, existe uma linha direta entre o fundamental e o elementar em sentido etimológico.

Naturalmente, no caso, o pulo do gato é a distinção entre o fundamental e o acessório: sem critérios nítidos, corremos o risco de confundir gatos e lebres.

Fundamental: ser ou não ser é a questão

Em qualquer tema, uma ideia fundamental deve apresentar simultaneamente três características cruciais:

– sua importância pode ser justificada por meio da linguagem ordinária, sem necessidade de arsenais terminológicos compreensíveis apenas por especialistas;

– ela não é isolada, devendo articular-se com diversas outras ideias do tema, o que pode promover uma articulação interna e uma estruturação do conteúdo estudado;

– ela nasce em um tema específico, mas transborda, inevitavelmente, os limites da disciplina original, explicitando conexões com outras disciplinas.

A ideia de energia, por exemplo, é fundamental na Física. A vida é movimento e a energia é a capacidade de produzir movimento. As diversas formas de produzir movimento conduzem aos diversos tipos de energia (mecânica, elétrica, térmica, etc.), estruturando internamente a Física. Mas a ideia de energia transborda as fronteiras disciplinares, articulando a Física com outras disciplinas, como a Biologia, a Química, a Geografia etc.

  • Disciplina é Competência: o caso do Trivium

O primeiro currículo na história do pensamento ocidental foi o TRIVIUM. Nele confluíam três disciplinas que constituíam as vias de acesso ao conhecimento: GRAMÁTICA, LÓGICA e RETÓRICA. Na formação greco-romana, o que todos os que estudavam tinham que aprender, o “trivial”, era o TRIVIUM, e era evidente a todos as competências pessoais que se desenvolviam por meio de tais disciplinas. A Gramática não era um fim em si mesmo, nem a Lógica, nem a Retórica; eram meios para a comunicação com os outros, para a construção de argumentações consistentes. Especialmente a Retórica, que hoje goza de má fama, era um instrumento essencial na escolha de modos de falar e de argumentar que favorecessem o convencimento. “Convencer” é um belo verbo: é vencer junto com os outros, é criar as condições para chegarmos juntos às mesmas conclusões. Hoje, as disciplinas escolares se multiplicaram e, algumas vezes, algumas delas parecem muito distantes dos interesses da nossa formação para uma vida em sociedade.

  • Habilidades Socioemocionais, Nietzsche, o carioquinha e o velho chinês

Em matéria jornalística de destaque (Folha de São Paulo, 30/06/2017), o professor e psicólogo americano Oliver P. John proclama que a escola não pode se limitar a lidar com números e livros, que as pessoas é que contam, e que as chamadas “habilidades socioemocionais” deveriam preponderar nas ações educacionais. Por trás do biombo do aparente consenso, algumas dissonâncias fundamentais eivam a argumentação do celebrado educador. Justamente por concordar com a mensagem principal do texto, a lembrança do aforismo nietzscheano, segundo o qual “a maneira mais pérfida de se combater uma causa é defendê-la com um péssimo argumento”, nos leva a explicitar três de tais dissonâncias.

Em primeiro lugar, a concepção de inteligência professada parece um tanto limitada e mesmo extemporânea. Afirma-se literalmente que “Já nos demos conta de que não conseguimos solucionar nossos problemas só com inteligência. QI não é tudo. … A inteligência tem um grande componente biológico, por isso não é a melhor coisa para tentar influenciar na escola. Você quer influenciar o conhecimento e ensinar habilidades socioemocionais.” Nos tempos atuais, associar a inteligência em sentido humano apenas ao famigerado QI, redenominando o que transborda a dimensão biológica é, digamos assim, subestimar nossa inteligência.

Em segundo lugar, as concepções das relações de colaboração entre a família e a escola também nos pareceram simplificadas; interpretadas literalmente, tangenciam o absurdo. A autoridade do pai e da mãe é de natureza distinta da autoridade do professor. A afirmação literal de que “o professor é como outra mãe ou como outro pai para a criança; meus professores mais significativos foram os que me ensinaram coisas que meus pais não sabiam ou não dominavam” ignora solenemente que o foco principal da colaboração escola-família não se situa nos conteúdos específicos, mas sim no que se refere aos valores,

Em terceiro lugar, a exemplificação de como ensinar as “habilidades socioemocionais” na escola por meio de temas de  conteúdo matemático beira certa ingenuidade patética: “Por exemplo, o professor de matemática vai ensinar divisão. Em vez de dizer vamos dividir 10 por 4, ele fala que você montou uma banca para vender limonada com quatro amigos (ou seriam três?) e ganhou U$ 10. Depois pergunta como dividir esses U$ 10, que estão em moedas de U$ 0,25, por vocês quatro. Esse é um problema socioemocional, porque você quer que o aluno faça uma divisão justa.” Não é fácil levar a sério tal pretensão de, como direi, socioemocionalização. É muito difícil não lembrar do grande filósofo brasileiro Millor Fernandes, em sua instigante quadrinha: “Tudo aquilo que eu digo/Teria mais solidez/Se, em vem de carioquinha/Eu fosse um velho chinês.” Não seria necessário ir tão longe para nos brindar com tais pérolas epistemológicas.

  • Competência: Rasa ou Profunda?

Desde que entrou em cena, há cerca de 20 anos, a ideia de competência tem sido tratada de modo ambíguo, ora com extrema reverência, minimizando o papel dos conteúdos disciplinares, ora sendo duramente criticada por meio da associação com impertinentes caricaturas, o que facilita o trabalho do crítico, mas soa como uma espécie de trapaça.

Etimologicamente, a palavra competência tem origem na junção com + petere, expressão que significa saber buscar junto com os outros. Numa frase, a ideia de competência pode ser entendida como a capacidade de mobilizar o que se sabe para realizar o que se deseja, o que se projeta. Não pode ser competente quem nada busca, que nada quer; a inapetência é a antessala da incompetência. Por outro lado, quem age sempre isoladamente, sem o outro, pode ser muito “petente”, mas não “competente”. Nos primeiros currículos ocidentais, estudavam-se três disciplinas – Gramática, Lógica e Retórica – cujos conteúdos relacionavam-se diretamente com a formação pessoal esperada: o conhecimento da Língua nos aproxima visceralmente do outro; a capacidade lógica de argumentação nos abre portas para o acordo e a consciência; e na dimensão retórica do discurso buscamos formas eficazes de expressão e de argumentação, tendo em vista convencer, ou vencer junto com o outro. Não passava pela cabeça de ninguém que as disciplinas seriam fins em si mesmas: a todos era claro que constituíam meios para o desenvolvimento e a formação pessoal.

Com a ciência moderna, o número de disciplinas escolares aumentou muito, e a busca de uma síntese relativa ao que se buscava por meio delas se tornou necessária. Para nossos avós, no entanto, não parecia um grande problema: estudamos História, Geografia, Português, Matemática, Ciências, Fillosofia, etc, mas, ao fim e ao cabo, ao saírem da escola, os alunos deveriam saber Ler, Escrever e Contar: tais três “Rs” seriam as competências consideradas fundamentais a serem evidenciadas por todos.

Nas últimas décadas, a fragmentação disciplinar agravou-se e os currículos multidisciplinares passaram a reivindicar ações de interdisciplinaridade, de transdisciplinaridade, e a buscar formas de articulação como a reunião das disciplinas em áreas do conhecimento. Uma lista de competências a serem desenvolvidas por meio das disciplinas pretendeu explicitar, a partir do final da década de 1990, uma atualização da tríade Ler, Escrever e Contar.

Com o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), criado em 1998, uma lista de cinco competências básicas foi anunciada como fins a serem perseguidos por todas as disciplinas. Tais seriam as capacidades de expressão de si, de compreensão do outro, de argumentação, de enfrentar situações-problema em diferentes contextos, e de, extrapolando as análises, fazer propostas de intervenção solidária na realidade. Todas as disciplinas teriam, então, como função no currículo propiciar o desenvolvimento de tais competências gerais.

Alguns desvios de percurso ocorreram, e as cinco competências gerais enunciadas pelo documento instituidor dos primeiros exames do ENEM transformaram-se em mais de 100 competências nas quase seiscentas páginas da Base Nacional Comum Curricular. Compreensões aligeiradas da ideia de competência levaram a uma redução do significado da mesma a sua dimensão técnica, afastando-se paulatinamente do terreno dos valores, imediatamente presente nas formulações iniciais. A partir daí a expressão “competências sócio-emocionais” passou a ser utilizada com frequência crescente, registrando-se que não bastam as “competências cognitivas”, seja lá o que esta última expressão signifique… Desde o início, aqui entre nós e no mundo, a ideia de competência não se reduzia a sua dimensão técnica, incluindo explicitamente valores que favoreçam a ação junto com os outros. Reiteramos o que anteriormente já registramos: quem somente pensa em si, quem não se sujeita, não se submete à existência do outro, pode ser muito “petente”, mas não seria “competente”. Fazer uma caricatura da ideia de competência, ignorando sua relação primária com os valores, pode facilitar a crítica, mas não parece consistente com a história da ideia.

Circunstancialmente, assistindo a uma interessante apresentação de um competente professor, justamente reconhecido como uma autoridade na área da tecnologia educacional, deparamos com uma afirmação sobre a noção de competência que certamente poderá atrair adeptos e repercutir entre os participantes do evento em questão (www.youtube.com/watch?v=lcq9cXBAIA), mas que não me parece passar de uma nova caricatura de tal ideia. Trata-se de uma contraposição, não pertinente, a nosso ver, entre as ideias de competência e de compreensão. O palestrante afirma, enfaticamente, que não se justifica dar importância à ideia de competência, que a busca da compreensão é o que verdadeiramente importa, uma vez que “a competência é rasa; a compreensão é que é profunda”. Não se pode discordar nem um tostão da afirmação de que o que realmente importa é a compreensão; somente não conseguimos atinar, senão como mera caricatura, para o fundamento da afirmação de que a ideia de competência é rasa. Talvez seja mera incompetência minha.

  • Mito ou Verdade?

Nos últimos anos tem sido comum a questão apresentada no título, como se vigorasse uma triangulação simples, em que “mito” fosse sinônimo de “mentira”, que, por sua vez, seria o oposto de “verdade”. Em tempos de pós modernidade, em que nossas certezas foram reduzidas a pó, em que convivemos com ideias lânguidas como as de Fake News e de “pós verdade”, a escolha que a pergunta sugere somente pode ser classificada como ingênua ou mal informada.

De fato, a ideia de verdade há muito se afastou do caráter binário, do Verdadeiro ou Falso excludente e totalizante, em que se supunha a inexistência de uma terceira alternativa, nem o “acúmulo” de funções entre o V e o F. Salvo casos especialmente simples, a correspondência direta entre um enunciado e um fato é uma quimera, e a Lógica tornou-se um pouco mais humilde, aceitando um terceiro estado em que não afirmamos nem negamos a verdade. Em outras formulações, a Lógica também assumiu a realidade do embaçamento, incorporando as probabilidades de modo consistente, em sua versão “Fuzzy”. E nas entranhas de sua vertente mais dura, a Lógica Matemática, a transformação mais séria se deu por meio da remissão da ideia de verdade à meta linguagem, a uma espécie de transcendência. Hoje, aceitamos que somente se pode falar de modo consistente da verdade de uma proposição P de uma linguagem L, que fala de objetos, se recorremos a uma linguagem L’ de ordem superior, que tem como objetos as proposições da linguagem L. As sentenças de L’, por sua vez, somente poderão ser classificadas em V ou F em uma linguagem L’’, de ordem superior a L’, e assim por diante. Mesmo perdendo a chancela da nitidez iluminista, na relação com o mito vê-se que a ideia de verdade não perdeu a pose.

Quanto ao mito, uma análise do verbete correspondente no Dicionário de Filosofia de Abbagnano revela que três são as acepções em que a palavra é utilizada em sentido filosoficamente adequado, e nenhuma delas pode ser associada à ideia de uma simples mentira, como se verá.

A primeira acepção é a de uma forma aproximada, imperfeita, da ideia de verdade, como era a visão de Platão ou de Aristóteles. A expressão mítica seria, em certos campos, a forma possível de se aproximar do verdadeiro. Aceita-se que o que o mito afirma não seria perfeitamente explicável, nem demonstrável como um resultado científico, mas traduziria bem mensagens de natureza moral ou religiosa. A limitação da verdade do mito seria inerente a sua natureza, convivendo com a expectativa de rigor interpretativo do conhecimento em outras áreas.

A segunda acepção do mito é oposta à primeira, no sentido de que a ideia de mito é uma forma fecunda e autônoma de pensamento, que não deveria ser considerada como uma verdade empobrecida. Autores como Cassirer, Vico ou Schelling exploram a riqueza da linguagem mítica, da mesma maneira que um poema não é um cálculo empobrecido, ou uma obra de arte não é um produto industrial rudimentar. Em sua inspiradora obra (Filosofia das Formas Simbólicas), Cassirer apresenta múltiplas formas de acesso à realidade, cada uma com seus recursos e suas limitações: a ciência, o mito, a arte são algumas de tais formas, que deveriam interpenetrar-se continuamente.

A terceira acepção de mito decorre de teorias sociológicas ou psicológicas, que não separam o universo mítico da realidade imediata, recorrendo a ele para exercer certo tipo de controle sobre tal realidade. É o caso, por exemplo, dos trabalhos de Malinowski, no terreno intermediário entre a sociologia e a antropologia, bem como de reflexões como as de Jung no terreno da psicologia. A busca do equilíbrio entre a desvalorização platônica e a supervalorização da lavra de Cassirer é o nó górdio da questão. Tudo isso, no entanto, situa-se em um plano muito superior ao da mera distinção entre verdadeiro ou falso, como sugeririam, ingenuamente, tantas enquetes realizadas pelas redes sociais, ou pelos meios de comunicação.

  • Verdades e Mentiras sobre a Verdade e a Mentira
  • A expressão “pós-verdade” sugere que a ideia de verdade já era, o que é uma deslavada mentira. Dois exemplos simples podem sustentar tal afirmação. No terreno econômico, a sociedade em que vivemos também é chamada de “pós-industrial”. Isto significa que não é mais verdade que a maior parte da força de trabalho situa-se na indústria, o setor de serviços incorpora a grande maioria dos trabalhadores. Mas é certamente uma mentira afirmar-se que a indústria não mais existe. No terreno da sociologia, a chamada “pós-modernidade” transformou o sentido da razão, que perdeu a rigidez cristalina do iluminismo, mas não foi reduzida a pó, como pretendeu o marxismo. Em vez de anunciar o fim da razão, o trabalho do preclaro Bauman nos iluminou, redesenhando a ideia de racionalidade com a metáfora da razão líquida. Analogamente, no terreno filosófico, a ideia de verdade sofreu grandes transformações, mas, em sintonia com a fina ironia de Mark Twain, as notícias de sua morte são um tanto exageradas.
  • Nunca foi simples falar sobre a verdade. A abordagem inicial, que a associava a uma correspondência direta entre um fato e um enunciado, esbarrou em sucessivos obstáculos que acabaram por explicitar um fato patente: a realidade dos fatos não é verdadeira, nem falsa, ela simplesmente é. Verdadeira ou falsa é a asserção que enunciamos sobre os fatos, e não existe métrica confiável que inter-relacione a verdade de uma proposição e a putativa realidade dos fatos, senão em situações muito simples, teoricamente pouco relevantes. Falar sobre a verdade, então, é falar sobre sentenças de determinada linguagem, e não diretamente sobre a realidade em si mesma. A verdade ou a falsidade de uma sentença da linguagem L somente pode ser estabelecida em uma linguagem L’, de ordem superior a L, que tem como objetos as sentenças de L. Essa remissão da verdade para a transcendência da linguagem que se habita é da lavra de Tarski, e entusiasmou muitos filósofos ou cientistas, como Popper, por exemplo.
  • A ideia de verdade certamente não acabou, mas, a despeito do otimismo líquido de Bauman, muitos pretenderam reduzi-la a pó. O enfraquecimento do caráter absoluto da verdade conduziu a uma conclusão logicamente indevida de que ela apresentaria um absoluto relativismo. Isso, no entanto, representa uma caricatura impertinente do que efetivamente ocorre. Trata-se de um jogo de palavras tão insustentável quanto seria uma conclusão sobre a relatividade dos valores éticos a partir dos fundamentos da teoria da relatividade einsteiniana. A necessidade de se referir a verdade a contextos específicos situa-se no meio de campo desse jogo linguístico: ela não é absoluta para todos os contextos, mas sua aderência a contextos específicos somente pode ser estabelecida a partir de valores profundos, que subjazem a todos os contextos. Ainda que em algumas situações nos faltem as palavras para nos expressar racionalmente, subjaz uma compreensão tácita, de natureza pré-conceitual, da ideia de verdade.
  • Tradição, Tolerância, Opinião, Respeito

No dia a dia, há um uso pré-conceitual, e muitas vezes preconceituoso, das palavras “tradição” e “tolerância”. Enquanto a primeira é considerada de maneira frequentemente negativa, a segunda circula com acepção nitidamente positiva. Mas nem sempre a tradição é ruim, e nem toda tolerância é boa. A ideia de “opinião” pode ilustrar tal fato. A liberdade de opinião é um fundamento da democracia. A ignorância parece intolerável, mas opinião não é conhecimento e é preciso ser tolerante com a diversidade de opiniões, o que nos leva de volta ao ponto de partida: a tradição é a opinião dos mortos. Cultivar sua presença é preservar a cultura. Fechando o círculo, a etimologia do verbo “respeitar” é iluminadora. Res + spectare significa, literalmente, olhar para trás. Somente é possível respeitar o que tem passado, e o fazemos olhando para trás. O novo nunca elimina o velho: ele o ressignifica. A recusa sistemática da tradição é sintoma de crise, de doença social, como bem registrou Hannah Arendt.

  • Conversar e Convencer

Conversar é trocar ideias, é possibilitar a circulação de opiniões, sem o peso da intenção do convencimento. É como fazer um exercício mental juntamente com os outros, sem o envolvimento em uma disputa. Não existem vencedores ou vencidos em uma boa conversa.

Convencer, por outro lado, remete-nos imediatamente à argumentação, ao enfrentamento de um ponto de vista oposto. É como se fosse uma luta, mesmo virtual, como uma partida de xadrez. Ainda que não seja inevitável, podem ocorrer descuidos verbais que conduzam à desagradável sensação da bifurcação entre vencedores e vencidos.

O melhor antídoto para isso é uma pitada de etimologia: convencer é vencer junto com o outro, é chegar à compreensão do objeto da disputa em sintonia com o oponente. Um desvio fatal para uma boa conversa é justamente a mudança de perspectiva, fazendo-a adentrar o eixo orientado pela argumentação, e assumir as intenções de convencimento.

Uma boa conversa pode nos esclarecer sobre certos fatos, mas nunca é absolutamente constrangida pela necessidade da busca da verdade: a carência a ser preenchida é da sintonia de opiniões. Já a argumentação situa-se em um eixo em que a verdade e a mentira são fundamentais. Quem argumenta defende a verdade de uma proposição, que é sua conclusão, tendo por base a verdade das premissas alinhadas.

A corrupção de uma argumentação é uma trapaça, que mantém o compromisso com a verdade, ainda que de forma negativa. Já a corrupção de uma conversa não a transforma em uma mentira, uma vez que esta, como o eixo argumentativo, mantém um compromisso com a verdade, na verdade com a negação da verdade…

A corrupção de uma boa conversa a transforma em algo sem vida, sem coerência  interna, no terreno das ideias do enunciador, nem sintonia com as opiniões do parceiro. Se o oposto de uma boa argumentação é uma trapaça, o contrário de uma boa conversa é o que sugere o titulo de um pequeno livro do filósofo Harry Frankfurt. Em inglês, foi publicado como On Bullshit; em português, o título escolhido foi Sobre falar merda.

Uma parte não desprezível do que circula nas redes informáticas, particularmente as chamadas Fake news,  não constitui uma argumentação, não tem a arquitetura de uma trapaça, nem a de uma simples conversa: o rótulo frankfurtiano parece mais adequado a tal desvio.

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