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Currículos e Competências
Nílson José Machado
Introdução: Currículos, disciplinas, competências
O fenômeno pode ser notado em quase todos os países, de modo mais ou menos acentuado: os currículos da escola básica apresentam-se de modo excessivamente fragmentado. As relações entre as disciplinas constituintes costumam ser fracas e o suposto aprofundamento com que certos temas são tratados não é equilibrado por uma visão transdisciplinar que favoreça a construção dos significados e situe o ser humano em primeiro plano. Afinal, na escola básica, os conteúdos disciplinares são meios para uma formação pessoal densa, não deveriam ser estudados como se se destinassem a especialistas, ou fossem fins em si mesmos.
Vivemos em um ambiente impregnado de tecnologias, as informações estão disponíveis em toda parte. A função da escola não é – e nunca foi – a de fornecer acriticamente dados para informar os alunos, mas sim um espaço para o desenvolvimento de competências pessoais, que combine tanto elementos técnicos quanto uma formação em valores. Os currículos, como mapas de relevância, não deveriam delimitar rigidamente territórios disciplinares: ao organizar os conteúdos, devem ser capazes de despertar interesse, convidando a viagens através de múltiplos espaços do conhecimento.
Visando ao restabelecimento do papel das disciplinas como meio para a formação pessoal, no início da década de 1990 iniciou-se em diversos países um debate sobre a ideia de competência. No Brasil, com o Exame Nacional do Ensino Médio (1998), tal debate entrou em cena, encontrando alguma resistência de parte dos educadores, que associavam a emergência da ideia de competência com a perda de importância dos conteúdos disciplinares.
Apesar do fato primário de que disciplinas e competências não disputam os mesmos espaços na organização da escola, tal como os meios de uma ação não conflitam com os fins da mesma, de alguma forma, tal mal entendido tem sido renitente. Aqui, nosso objetivo principal é reunir elementos conceituais para explicitar a ideia de competência, preparando o terreno para uma explicitação da natureza simbiótica da relação entre disciplinas e competências na organização da escola.
Competência: elementos fundamentais
Com ironia lapidar, Descartes inicia seu Discurso do Método caracterizando a idéia de bom senso: é aquilo de que todos se consideram suficientemente providos a ponto de ninguém admitir que precisa de mais do que tem. Algo similar parece ocorrer com a idéia de competência: em um cenário em que o conhecimento ocupa um lugar central, constituindo o principal fator de produção, em que as permanentes transformações são a regra, precisamos continuamente desenvolver e atualizar nossas competências; poucos assumem de bom grado, no entanto a condição de carência de competência, e menos ainda a de incompetente.
Embora difusa, a etimologia é fecunda: deriva de com + petere, que em latim significa pedir junto com os outros, buscar junto com os outros. Aquele a quem nada apetece é um inapetente; aquele que nada quer, que não sabe buscar junto com os outros é um incompetente. Derivações próximas são competitio, que significa tanto acordo quanto rivalidade, e que conduziu apenas no latim tardio, à idéia de competição; competentia, que remete a proporção, a justa relação, ou à capacidade de responder adequadamente, em dada situação. A associação de competência com capacidade conduz a atenção a capacitas, que significa a possibilidade de conter alguma coisa, de apreender, de compreender algo. As principais características da idéia de competência parecem encontrar raízes em tal feixe de relações etimológicas.
Seis são os elementos fundamentais para constituir tal noção: pessoalidade, âmbito, mobilização, conteúdo, abstração e integridade. Em uma frase: a competência é um atributo das pessoas, exerce-se em um âmbito bem delimitado, está associada a uma capacidade de mobilização de recursos, realiza-se necessariamente junto com os outros, exige capacidade de abstração e pressupõe conhecimento de conteúdos. Complementarmente: animais ou objetos não são competentes, não existe uma competência para todos os âmbitos possíveis, é impossível a competência sem uma ação efetiva, a falta de conhecimento é o primeiro sintoma de incompetência, a incapacidade de abstrair o contexto é uma forma de incompetência, e não se pode ser competente sem integrar-se com os outros, sem levar em consideração os outros.
Em primeiro lugar, naturalmente, vem a pessoalidade da competência. Somente as pessoas são competentes ou incompetentes; quase automaticamente, o substantivo competência é orlado pelo adjetivo pessoal. Atribuir-se competência a objetos, artefatos ou mesmo animais pode ocorrer em metáforas circunstanciais, mas não pode passar disso. As pessoas é que pedem, buscam junto com os outros, têm vontades ou são inapetentes, o que abre as portas para a incompetência. As pessoas se constituem representando papéis, caracterizam-se como um feixe de papéis, em alguns dos quais é protagonista, em outros, coadjuvante. As pessoas são personagens de peças variadas, em que ora submetem-se a diretores exigentes, ora são autores da própria peça que representam. A sociedade consiste em um vasto sistema de distribuição de papéis: na família, na escola, no trabalho, no lazer, na cultura, na política etc. A pessoa competente seleciona adequadamente seus papéis, responde a um chamamento interior, a uma vocação que a distingue de todas as outras. Não se pode ser competente exercendo atividades que não correspondem a esse chamamento pessoal, tanto quanto não se pode viver a vida de outra pessoa. Na Grécia antiga, os atores que simplesmente fingiam representar, muitas vezes roubando os papéis dos outros, eram chamados de hipócritas. Toda competência que não é pessoal em sentido estrito não passa de simulação, de hipocrisia.
A idéia de competência também está inextricavelmente associada a um âmbito em que ela se exerce. Afirmações do tipo “Fulano é competente” carecem de sentido ou soam demasiadamente vagas se não se qualifica o contexto em que tal competência se realiza; não se sustenta facilmente uma pretensão de competência “para o que der e vier”. Naturalmente, quanto mais restrito é o âmbito em que uma competência se exerce, mais facilmente ela pode ser caracterizada em seus pormenores, estruturada em habilidades capilares que lhe dão forma e consistência; quanto mais amplo é tal âmbito, mais difícil é tal estruturação, sempre necessária. É mais fácil, por exemplo, dizer-se o que constitui um motorista competente do que o que caracteriza um cidadão competente. Essa vinculação entre as idéias de competência e de âmbito é similar à existente entre as noções de autoridade e âmbito. De fato, não existe uma autoridade para todos os âmbitos possíveis, toda autoridade tem um âmbito em que é exercida; extrapolá-lo significa uma sempre indesejável derrapagem para o terreno do autoritarismo. Aliás, é justamente o âmbito em que uma autoridade é legítima que determina os limites de sua competência. Uma pretensa competência sem limites seria mais propriamente denominada de arrogância.
De alguém que leu e compreendeu todos os conteúdos atinentes e dispõe de todos os instrumentos necessários para a realização de determinada tarefa mas que não consegue realizá-la, pode-se afirmar com segurança: é incompetente. A competência está sempre associada à capacidade de mobilização dos recursos de que se dispõe para realizar aquilo que se deseja. A fonte de legitimação de todo o conhecimento do mundo é justamente essa possibilidade de mobilização para a realização dos projetos das pessoas; sem ela, o conhecimento é inerte, é como um banco de dados carente de usuários. Não se trata aqui de uma defesa ardorosa das aplicações práticas, nem sempre boas conselheiras na configuração das competências, mas sim do reconhecimento enfático de que qualquer ação a ser realizada pressupõe algum nível de conhecimento teórico (theoria, em grego, quer dizer visão), sem o que não se pode lograr um fazer propriamente humano, manifestação de uma vontade livre e consciente. A idéia de mobilização também se relaciona com o fato de que sempre conhecemos muito mais do que conseguimos explicitar em palavras. Muitos de nossos saberes permanecem tácitos, não encontramos palavras para expressá-los, mas eles subjazem a aquilo que somos capazes de explicitar e sustentam aquilo que conseguimos realizar. A competência também se expressa nessa capacidade de mobilizar esse conhecimento tácito de que dispomos, para realizar aquilo que explicitamente desejamos.
Quando nos referimos à capacidade de mobilização do que se sabe para realizar o que se deseja, claramente se desenham diante de nós situações em que alguém que sabe muito consegue mobilizar pouco, enquanto, por outro lado, alguém que sabe menos consegue mobilizar mais, sendo, em conseqüência, mais bem sucedido, do ponto de vista das realizações efetivas. Nada disso, no entanto, pode servir de base para uma mínima desvalorização daquilo que se sabe, do conteúdo, ou do conhecimento de que necessitamos para a realização de qualquer ação. Sem dúvida, a falta de conhecimento é o primeiro sintoma, e o mais efetivo, da caracterização da incompetência, e a competência consiste em combinar de modo eficaz a busca pelo conhecimento de que se necessita com as formas adequadas de mobilização do mesmo. O desvio que consiste na caracterização da competência unicamente pelo conhecimento de que se dispõe, ainda que inerte, não pode ser substituído pelo elogio de uma competência “esperta”, que se limita a explorar os parcos recursos que já temos à mão, desdenhando da necessidade, sempre crescente, de novos conhecimentos. Se a competência não pode se limitar a sua dimensão técnica, ao conhecimento efetivo, sempre carente de incremento, dos múltiplos temas associados a qualquer ação consciente que se pretenda realizar, também é verdade que sem tal dimensão técnica, sem tais conteúdos cognitivos, ela não passa de um balão retórico, prestes a explodir diante do mais inocente espinho.
É importante também mencionar que a necessidade do âmbito, inerente à idéia de competência, não significa uma subestimação da necessidade de abstração também inerente a tal idéia. Porque, sem dúvida, àquele que é capaz de realizar tarefas apenas quando estritamente vinculadas a determinado contexto, permanecendo imobilizado por uma alteração mínima no mesmo, falta, sem dúvida, competência. Quem sabe que 3 abacaxis + 4 abacaxis = 7 abacaxis, mas tem dúvidas sobre o resultado da adição de 3 bananas com 4 bananas, não aprendeu a somar 3 com 4, e é certamente incompetente. Se é o âmbito/contexto que dá vida à idéia de competência, também o é a capacidade de abstrair o contexto, de transportar-se o que se sabe para outros âmbitos, conservando-se a visão, ou a compreensão que possibilita um fazer consciente. É incompetente tanto quem não é capaz de contextuar o que conhece, viabilizando uma ação plena de significações, quanto quem não consegue alçar-se por sobre as peculiaridades do contexto, abstraindo os elementos irrelevantes para o fim almejado e atendo-se ao que realmente se considera fundamental. Abstrair, portanto, não é o oposto de contextuar, mas um elemento complementar do contínuo movimento contextuação/abstração; a falta de um dos elementos do par somente pode possibilitar um andar capenga, que limita a atuação de um ser humano competente.
Competência e pessoalidade
Ao situar a pessoalidade como um elemento fundamental da idéia de competência, convém mencionar um ponto crítico sem cuja consideração pode-se entrar em um desvio isolacionista, que contamina tal idéia. Trata-se do fato de que ninguém se constitui como pessoa sem os outros: permanentemente, agimos e representamos papéis socialmente prefigurados, para os outros e com os outros. Como sujeitos de uma ação consciente, atuamos segundo perspectivas pessoais, absolutamente idiossincráticas, perseguimos projetos, pessoais e coletivos, orientados por um cenário de valores socialmente partilhados, e necessariamente sujeitamo-nos (ou submetemo-nos) aos outros, no sentido de levar em consideração seus pontos de vista, seus argumentos, seus valores. Assim, um elemento complementar em relação à pessoalidade na constituição da idéia de competência é a integridade pessoal, tanto no sentido da pressuposição de um quadro de valores que se professa e que são efetivamente vivenciados, quanto no que se refere a uma integração com os outros, associada essencialmente a uma permanente abertura em tal quadro de valores para o diálogo, para a argumentação racional em busca de consensos. A idéia de integridade – a de manter-se inteiro como pessoa e, ao mesmo tempo, integrado ao corpo social em que se partilham valores e crenças – é um elemento fundamental para caracterizar a competência. Sem ela, a competência pode ser associada apenas a sua dimensão técnica, sendo confundida com o mero desempenho especializado, sem a referência a um quadro de valores socialmente acordados, sem compromisso com a articulação entre o interesse público e o privado, tão necessário para a vivência da plena cidadania. Parece-nos um completo contra-senso a pertinência da utilização da palavra competência para caracterizar as ações de um terrorista, de um torturador, ou do autor de um crime hediondo qualquer, realizado de maneira tecnicamente perfeita.
Vamos resumir o que se alinhavou até aqui. Em seu uso corrente, à palavra competência associa-se quase automaticamente o qualificativo pessoal, o que constitui um indício lingüístico forte da pessoalidade como elemento fundador da idéia de competência. Competentes ou incompetentes são os agentes, são as pessoas. O mercado não age, os computadores não agem, os animais não agem, os livros não agem, apenas as pessoas agem livremente, conscientemente, na busca da realização de seus projetos, caracterizando-se como competentes ou incompetentes. Como a noção de autoridade, a de competência traz consigo sempre a idéia de âmbito, de contexto: exerce-se uma autoridade ou uma competência sempre em determinado âmbito, não resistindo a uma análise mais densa uma suposta competência para o que der e vier. Toda competência pressupõe uma capacidade de mobilização de recursos, em busca da realização de seus desejos, de seus projetos. Quem nada deseja, nada projeta, quem vive a inapetência abre as portas para a vivência da incompetência. A competência pressupõe sempre a aderência a um contexto e, simultaneamente, a possibilidade de liberar-se dele, abstraindo suas peculiaridades não para distanciar-se de qualquer contexto, mas sim para abrir as portas para novas contextuações. Quanto maior a competência, maior a capacidade de se pôr em movimento o círculo abstração/contextuação. Embora constitua um desvio semântico grave a identificação da competência com o mero domínio de conteúdos técnicos em determinada área do conhecimento, o primeiro indício da falta de competência ocorre exatamente nesse terreno, dos conteúdos. É impossível conceber-se qualquer forma de competência que possa prescindir de conhecimentos específicos, de complexidade crescente, a cada dia. Não se trata necessariamente de conhecimento escolar, ou científico, ou formal em algum sistema de ensino: trata-se do conhecimento em sentido pleno, que pode incluir as disciplinas escolares, mas que certamente vai muito além delas, envolvendo as noções de conhecimento e de valor, e desembocando na idéia de sabedoria, ou do conhecimento relevante, do saber que tem valor. A noção de competência, finalmente, fiel a sua raiz etimológica, caracteriza-se plenamente como capacidade de pedir junto com os outros, de buscar-se coletivamente fins prefigurados, mantendo-se a integridade pessoal e a integração social.
Competência, autoridade, competição
Para concluir, uma proporção analógica: assim como existe certa contaminação semântica da idéia de autoridade pelo caráter indesejável do termo autoritarismo, sói ocorrer contaminação análoga da idéia de competência pela associação direta com a noção de competição: uma palavra final pode contribuir para uma descontaminação em ambos os casos. O exercício da autoridade é fundamental para a criação e/ou a manutenção da ordem legítima, construído sobre um arcabouço de normas socialmente acordadas. Toda autoridade, no entanto, tem um âmbito que lhe compete; extrapolá-lo é o passo em falso, às vezes sutil, para o ingresso no terreno minado do autoritarismo. Convém lembrar que cada pessoa constrói sua consciência na medida em que assume a responsabilidade pelos seus atos, e exerce uma autoridade sobre si mesmo, controlando suas volições de primeiro nível, meras vontades ou desejos nos limites de sua condição de animal, e elaborando as bases para as volições de segundo nível, os desejos de certos desejos e não de outros. Há em cada pessoa um âmbito em que ela é a maior autoridade sobre si mesma: ninguém pode invadir tal âmbito sem que se constitua uma arbitrariedade intolerável. O exercício pleno de tal autoridade nesse âmbito íntimo pressupõe, portanto, a vivência plena de uma responsabilidade radical. A assunção das responsabilidades inerentes ao papel que se desempenha nos limites da competência correspondente é o antídoto para a descontaminação do exercício da autoridade, sem medo de parecer-se autoritário.
No caso da idéia de competência, a associação direta com a noção de competição não pode ser temida por duas razões principais. Em primeiro lugar, há, na própria idéia de competição, uma ambivalência atenuante, uma vez que ela tanto significa rivalidade como acordo: naturalmente, tal acordo refere-se à plena aceitação das regras que regulam os processos competitivos, da justeza e do equilíbrio das mesmas. Mencione-se aqui, ainda que de passagem, que tal ambivalência semântica encontra-se presente em inúmeros termos latinos, como altus, por exemplo, que tanto significa alto como também profundo. Nos esportes, nas olimpíadas, por exemplo, as competições apresentam o sentido positivo resultante de tal aceitação: busca-se algo junto com os outros, a existência dos outros faz com que cada um cresça, supere seus próprios limites. A razão mais importante, no entanto, para a contigüidade semântica com a competição não contaminar a idéia de competência é a seguinte: buscar junto com os outros não significa necessariamente que se alguém fica com, os demais ficarão sem o objetivo pretendido; tudo depende do que se busca, do que se pretende. Se o objetivo colimado é um bem material, é um pote de ouro – ou uma medalha de ouro -, então é verdade que se alguém ganha, os outros têm que perder; se o que se busca, no entanto, é um bem comum, é o conhecimento, por exemplo, como ocorre na escola, então não mais ocorre tal situação. Quando se busca o conhecimento junto com os outros, todos podem ser – e em geral o são – legítimos vencedores, e a competência, ou a competição mostra sua face construtiva, sem restrições.
Bibliografia
D`ALLONNES, M. R. – Le pouvoir des commencements. Paris: Seuil, 2006
MACHADO, N. J.- Sobre a idéia de competência. In: PERRENOUD, P. et alii – Competências para ensinar
no século XXI. Porto Alegre: Artmed, 2002.
MACHADO, N. J. – Conhecimento e valor. São Paulo: Moderna, 2004
MACHADO, N. J. – Educação: competencia e qualidade. São Paulo: Escrituras, 2009.
MACHADO, N. J. – Educação – microensaios em mil toques (vol I, II, III). São Paulo: Escrituras, 2010
ORTEGA y GASSET, J. – Obras Completas Vols 1 e 2. Madrid: Alianza, 1987.
RAMOS, S. – Hacia un nuevo humanismo. México: Fondo de Cultura Económica, 1997.
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Sobre Direitos e Deveres
Nílson José Machado
SUMÁRIO
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1 – Direitos e Deveres
2 – Equilíbrio entre Direitos e Deveres
3 – Radicalismo e equilíbrio
4 – Deveres Humanos: Documentos
5 – Deveres Fundamentais
6 – Direitos/Deveres: Assimetria
7 – Voto: Direito ou dever?
8 – Liberdade e autonomia
9 – Liberdade positiva e negativa
10- Sobre a necessidade de Leis
11- Leis demais ou leis de menos?
12- Governo: Pergunta crucial
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1 – Direitos e deveres
A Declaração Universal de Direitos Humanos (1948) é um belo documento e todo professor deveria, um dia, apresentá-lo a seus alunos. É patente, no entanto, seu desequilíbrio no que se refere ao par Direitos/Deveres. Do Artigo 1º (“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos…”) até o trigésimo e último artigo, há um quase absoluto silêncio com relação aos deveres inerentes aos seres humanos.
O fato é compreensível, nas circunstâncias do período pós-guerra: a desordem institucional reinante foi determinante do teor de tal lista, cujo papel seria fundamental na reconstrução a ser iniciada. Mas não há como tergiversar: o equilíbrio entre direitos e deveres ainda está por ser equacionado.
Passados mais de 60 anos, o mundo carece de outro documento, para equilibrar o jogo, algo como uma “Declaração Universal dos Deveres Humanos”. Pois, se é dever do Estado a garantia dos direitos dos cidadãos, simetricamente, é direito do Estado que os cidadãos cumpram seus deveres.
2 – Equilíbrio entre Direitos e Deveres
A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem é um documento importante, apesar de pouco conhecido. Originado na IX Conferência Internacional de Estados Americanos, realizada em Bogotá/Colômbia, em 1948, tem como signatários Brasil, Estados Unidos, Chile, Argentina, Equador, Venezuela e mais 30 países.
Após o preâmbulo, a DUDDH é composta de dois capítulos. O primeiro trata dos direitos da pessoa e não difere do que está presente na conhecida DUDH. O segundo capítulo, inexistente na DUDH, é dedicado à explicitação dos deveres das pessoas em relação à sociedade. Buscar a educação básica, trabalhar, pagar os impostos devidos, cuidar das crianças e dos idosos, participar dos processos eleitorais, obedecer às leis em vigor são alguns dos deveres elencados.
Por óbvio que possa parecer, tal explicitação de deveres é crucial para o equilíbrio na organização social. A justa reivindicação dos direitos precisa ser equilibrada pelo necessário cumprimento dos deveres, ou a conta não fecha.
3 – Radicalismo e equilíbrio
Não há como enfrentar seriamente um problema sem ir até suas raízes, sem radicalizar a discussão. Inevitavelmente são encontradas, em tal nível de análise, fecundas oposições conceituais que transcendem escolhas binárias entre o bem e o mal, o certo e o errado. Mais cedo ou mais tarde, pensadores radicais depararam com situações em que a consciência os conduziu à busca do equilíbrio entre dois aparentes polos.
Ao examinar a permanente oscilação das ações educacionais entre intenções transformadoras e conservadoras, N. Postman afirma, 20 anos depois de ser coautor do livro Ensinar como uma atividade subversiva: deveria ter escrito outro livro, mais tarde: Ensinar como uma atividade conservativa.
De modo similar, ao analisar as relações entre direitos e deveres humanos, o pensador italiano Norberto Bobbio, autor de A era dos direitos, registra, pouco antes de sua morte, aos 94 anos: Se eu ainda tivesse alguns anos de vida, coisa que não terei, estaria tentado a escrever A era dos deveres.
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4 – Deveres Humanos: Documentos
A Declaração Universal de Direitos Humanos (1948) tem como parceira um documento fundamental, bem menos conhecido, intitulado Declaração dos Deveres Humanos e Responsabilidades, formulado pela UNESCO em 1998. Nele são associados direitos e deveres de modo inextricável. Por exemplo, o direito à vida e a responsabilidade pela preservação da natureza; a liberdade pessoal e o dever de combater a corrupção e construir uma sociedade ética; e assim por diante.
De modo similar, uma Declaração de Responsabilidades e Deveres Humanos foi divulgada pela Fundação Valência Terceiro Milênio, em 2002, em sintonia com a UNESCO e com diversas outras entidades representativas nos âmbitos da política, da ciência, da arte, entre outros. De estrutura idêntica ao documento anteriormente citado, a nova carta de princípios põe em evidência um fato há muito reconhecido nos terrenos da ética e da política: a absoluta banalização na reivindicação dos direitos sem que sejam assumidas as responsabilidades inerentes.
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5 – Deveres Fundamentais
Poucos filósofos exerceram tão plenamente a cidadania quanto Norberto Bobbio, pensador italiano e senador vitalício ao longo dos últimos 20 anos de sua fecunda existência. Refletiu intensamente sobre os direitos humanos e alertou para a necessidade do cultivo dos deveres, tanto do cidadão quanto do Estado.
Para Bobbio, o mais fundamental dos deveres do cidadão é o reconhecimento da necessidade dos laços com os outros. Superar o egoísmo, respeitar as diferenças, cultivar a tolerância são condições primordiais para a vida em sociedade.
Para o Estado, o primeiro dever é cultivar o bem comum, articular compromissos públicos e privados, não permitir que interesses pessoais dos governantes se sobreponham aos projetos coletivos.
Parece simples, mas não é. Por um lado, para o mais tolerante dos cidadãos, existe o intolerável; por outro, não compete ao Estado democrático determinar projetos coletivos, mas apenas administrar a diversidade de tendências e perspectivas nascidas no seio da sociedade.
6 – Direitos/Deveres: Assimetria
Ainda que direitos e deveres sempre estejam diretamente relacionados, existe certa assimetria entre os elementos desse par. Não se pode estabelecer uma relação de equivalência entre tais elementos. Em muitas situações, cumprir com o dever independe do fato de os direitos correspondentes estarem ou não assegurados.
De um profissional, por exemplo, espera-se que cumpra seus deveres independentemente do fato de seus direitos estarem a descoberto. Nem toda ocupação é uma profissão: a marca do profissionalismo é um senso do dever. Reivindicar direitos, incluindo os referentes aos salários, é perfeitamente justo e legítimo, mas exige outros fóruns. Um médico ou um professor não podem fugir às responsabilidades inerentes a sua função em razão de seus salários não estarem em dia. Kantianamente, os deveres profissionais estão acima de tudo. Tentar compensar um direito subtraído com um dever não cumprido é absolutamente indefensável. Uma disposição ética sempre pressupõe certo tipo de assimetria.
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7 – Voto: Direito ou dever
Há direitos que são inerentes a certos deveres. O direito ao voto parece ser dessa estirpe. Ele é um nobre instrumento por meio do qual o poder político é transferido temporariamente do povo a seus representantes. Assim como a palavra, o voto não deve ser comprado ou vendido. Para ser fiel a seu desígnio, deve circular de modo dadivoso, como uma manifestação de confiança, tecendo a imensa e vital rede de laços sociais.
Em sintonia com tal fato, o voto não deveria ser obrigatório. O índice de abstenção nas eleições é o primeiro e mais importante sintoma da saúde civil de uma sociedade. A consciência do valor do direito ao voto seria mais que suficiente para constranger cada cidadão a cumprir seu dever.
Observando os carros nas ruas, notamos que a livre escolha pessoal faz com que quase 90% deles sejam das cores preta, prata, cinza ou branca. Se, no entanto, uma lei nos proibir de escolher outra cor, muitos protestarão. De modo similar, a obrigação de votar também gera certo desconforto.
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8 – Liberdade e Autonomia
A ideia de liberdade como ausência de vínculos ou constrangimentos para nossa ação é uma ficção sem sentido. Somos sempre limitados pela presença do outro em nossas vidas; sujeito é quem se submete a isso e age em sintonia com tal fato.
As leis ordenam a vida em sociedade e nos constrangem a todos: somos iguais diante delas. Mas nós é que fazemos as leis que nos regulam, se não diretamente, por meio de nossos representantes. Quando consideramos justa uma lei, então a fazemos nossa, é como se a tivéssemos feito; quando a lei nos parece injusta, agimos no sentido de mudá-la. A ideia de justiça não é simples, mas nos acercamos dela por meio da percepção de seu oposto, a injustiça, mais fácil de ser apreendida.
Na vida cotidiana, liberdade não significa, pois, ausência de constrangimentos, mas existência de autonomia. Em grego, nomos é lei, e autonomia quer dizer obedecer a lei que nós fizemos ou que fizemos nossa.
Nas palavras de Octavio Paz, a liberdade consiste na escolha da necessidade.
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9 – Liberdade positiva e negativa
Segundo Montesquieu, a liberdade consiste em agir segundo as leis e poder fazer tudo o que elas não proíbem. Modernamente, pensadores como Berlin e Bobbio caracterizam dois tipos de liberdade: a positiva e a negativa. A liberdade negativa consistiria, respeitadas as leis vigentes, em não se poder obrigar alguém a fazer ou deixar de fazer algo; a liberdade positiva seria o direito de poder orientar as próprias vontades para objetivos específicos e tomar decisões pessoais, nos limites da lei. As duas se interceptam e pressupõem a existência de uma zona neutra, entre as prescrições e as proscrições, um território não regulamentado por leis em que prevalece o livre arbítrio.
De fato, nem tudo na vida pode ou deve ser regulado por leis. A estética e a religiosidade são exemplos de espaços em que não prevalecem prescrições ou proscrições. As leis regulam os espaços da igualdade; quem as cumpre, conquista o direito fundamental de alimentar diferenças pessoais e vivenciar a liberdade positiva.
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10 – Sobre a necessidade de Leis
Na vida cotidiana, algumas práticas são incorporadas como hábitos, certas proibições ou prescrições tornam-se tão naturais que esquecemos as motivações e os contextos que as geraram, e podemos até considerar desnecessárias as leis que as regulam. São bem conhecidas situações em que somente a consciência da perda relembra ou revela o valor do que, tacitamente, se desfrutava.
Sexto Empírico, médico e filósofo que viveu em Alexandria nos dois primeiros séculos da era cristã, descreve uma estratégia interessante dos antigos persas, para provocar uma reflexão sobre o sentido das leis. Quando morria um rei, promovia-se um interregno em que todas as leis eram temporariamente revogadas durante um período de cinco dias. Relata o filósofo que tal hiato era apavorante, uma espécie de vale tudo no qual o sentido de cada lei era revigorado. Ou não.
É difícil imaginar, nos dias atuais, uma medida semelhante. Uma experiência de pensamento, no entanto, já parece suficiente como reflexão sobre tal tema.
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11 – Leis demais ou Leis de menos?
A vida em sociedade pressupõe a existência de leis reguladoras. Uma questão interessante é se existem leis demais ou leis de menos. Numa discussão séria, nem a inexistência de leis, nem a meta de absoluta regulação parecem pertinentes. Uma vida ética exige um espaço de livre arbítrio.
Um tema similar é o das formas de governo. Em termos conceituais, o espaço de manobra iria da anarquia, ou a ausência de governo (em grego, arché é poder), até os modelos coletivistas, em que o Estado nos trata como formigas ou abelhas. Nenhum anarquista sério pretende a ausência de governo: o tamanho e as funções do Estado é que estão em questão. Uma obra clássica de R. Nozick (Anarquia, Estado e Utopia, 1974) pode ser suficiente para esclarecer tal fato.
A limitação no número de leis e no tamanho do Estado é fundamental para garantir um espaço de liberdade dos cidadãos, mas é preciso manter vivo o conselho de Einstein: Tudo deveria ser feito da maneira mais simples possível: não mais simples do que isso.
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12 – Governo: Pergunta crucial
Segundo M. Oakeshott, em A Política da Fé e a Política do Ceticismo (1996), o discurso político pode ser analisado a partir de duas questões fundamentais: a) Quem governará e como se legitima sua autoridade? b) Que fará o governo constituído, qualquer que seja a forma que o tenha legitimado?
Ainda que continuamente se entrelacem, tais questões podem ser tratadas de modo independente. É possível que a primeira delas atraia mais a atenção dos cidadãos, mas a ninguém é permitido desinteressar-se da segunda.
De fato, na política, um ponto realmente decisivo é a delimitação das funções do governo. Os polos que orientam tal questão são a leniência, de um lado, e o excesso de intromissão, do outro. Para alguns (muitos?), que não têm a correspondente vocação, a política é um terreno desagradável, eivado de temáticas eticamente delicadas. A todos, no entanto, a segunda questão é absolutamente crucial. Por mais legítima que tenha sido sua constituição, um governo onipotente é sinônimo de desgraça.
____________________________________________agosto/2013
A maioria sempre tem razão. Ou não.
Nilson José Machado
É uma velhacaria
O dever ou o querer
Concordar com a maioria
G. Carducci (poeta italiano, 1895)
A maioria tem muitos corações, mas lhe falta um coração.
Otto von Bismarck (estadista alemão, 1815-1897)
- Introdução: a maioria e a razão
A sensação de conforto resultante de estarmos de acordo com a maioria é simetricamente comparável ao desconforto associado à defesa de posições minoritárias; tais fatos, no entanto, não conduzem necessariamente ao elogio da máxima popular “a maioria sempre tem razão”. Muitas vezes, a razão passa ao largo de tais sensações, e o mero desejo de participação majoritária ou a consideração da inserção no lado mais forte como um dever a ser cumprido acriticamente não parecem racionalmente aceitáveis, ou constituem simples velhacaria, na ironia forte do poeta em epígrafe. Desde o século XVII, Pascal nos lembra da complexidade das relações entre as decisões lógicas e as emocionais, ao cunhar o inesquecível aforismo “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. A influência da maioria nas decisões pessoais parece muito mais emocional do que lógica; ao mesmo tempo, a regra da maioria como instrumento quantitativo para a tomada de decisões parece absolutamente legítima e democrática, assumindo mesmo as feições de um aparato lógico. Sabemos, no entanto, que por muitos séculos a maioria considerava a Terra plana; depois de admitida sua esfericidade, a maioria a situava no centro do Universo. Recordemos que, quando Mussolini passou uma lista de apoio incondicional a suas orientações políticas entre os professores das universidades italianas, em um universo de cerca de 1200 docentes, apenas 12 recusaram-se a assiná-la. E quando o trio de cônsules, encabeçado por Napoleão, submeteu aos franceses uma nova constituição, que prefigurava a transformação do primeiro cônsul (o próprio Napoleão) em um imperador todo poderoso, uma maioria de mais de 3 milhões de votantes aprovou entusiasticamente tal constituição, contra o voto de apenas cerca de 1500 franceses… Sem dúvida, numa perspectiva histórica, a maioria nem sempre tem razão. Mas tal constatação é inócua, é como “prever” o passado. A questão fundamental é como se orientar em ações/situações coletivas da ordem do projeto, ou voltadas para o futuro. Quando uma ação conjunta que não nos agrada pessoalmente aspira a ser mais do que a mera coação, qual o argumento, qual o aparato lógico que a legitima? Como estabelecer uma articulação consistente entre a expectativa de racionalidade nas ações ordinárias – no dia-a-dia, na política, na economia – e a aparente irracionalidade de certas atuações, sobretudo em decisões coletivas? Quem não se dispõe a submeter-se passivamente a uma ordem legal heterônoma, e busca o ideal da autonomia intelectual, da integridade pessoal, da liberdade de escolha de suas próprias vinculações e necessidades, quais as alternativas que encontra para as decisões fundadas na regra da maioria? Eis aí o terreno, arenoso, pantanoso, em que as reflexões que seguem tentarão se suster.
- Democracia e maioria
A associação imediata entre democracia e regra da maioria é muito freqüente, parece natural mas é de natureza espúria. Iniciaremos a conversa por essa distinção fundamental. De fato, na tripartição clássica das formas de governo levada a efeito por Aristóteles, o governo (arché) poderia ser exercido por um só – a monarquia, em sua dimensão positiva ou a tirania, em sua dimensão negativa; pela minoria, que seriam os melhores – a aristocracia (aristos = os melhores), em sua dimensão positiva ou a oligarquia (oligos = poucos, em geral os mais ricos), em sua dimensão negativa; ou pelo povo (demos), isto é, pela maioria, incluindo-se os mais pobres, que seria a democracia (kratos = poder). Complementa essa classificação a anarquia, que seria a descrença em qualquer forma de poder, o que sempre se revelou, ao longo dos séculos, uma perspectiva minoritária, ou um “luxo” de minorias. Nesse contexto, a associação entre democracia e maioria parece razoável, entendendo-se por maioria uma espécie de “sujeito coletivo” que exerce o poder político. Muitos mal entendidos, no entanto, subjazem a esta visão simplificada. Em primeiro lugar, uma regra processual de maioria pode indicar quantos governam, e não como governam. Assim, por um lado, existem governos não democráticos que tomam decisões baseadas na maioria, e por outro lado, nem todas as decisões tomadas em regimes democráticos decorrem de uma regra de maioria. Por exemplo, o Grande Conselho do Fascismo, que não era instrumento de um governo democrático, derrotou Mussolini com um voto de desconfiança aprovado pela maioria; um órgão aristocrático como o Senado romano, também funcionava segundo a regra da maioria. Simetricamente, numa democracia, existem contextos em que a autoridade e a hierarquia determinam os rumos das decisões coletivas, em procedimentos que se distanciam em muito da perspectiva majoritária. Um presidente, por exemplo, não decide manter ou demitir determinado ministro tendo por base a manifestação da maioria do ministério; sua opinião pessoal pode ser e em geral é decisiva em questões dessa estirpe.
Contribui ainda para a distinção entre as extensões dos conceitos de democracia e maioria o fato de que a própria idéia de povo tem-se modificado historicamente, bem como a inviabilidade prática da democracia direta, com a emergência da noção de representação. Se em Atenas, berço da democracia moderna, os cidadãos reuniam-se na praça, na ágora, e debatiam diretamente as questões polêmicas, isso era factível em razão do fato de existirem apenas alguns milhares (2000 a 5000) de cidadãos, com direito a voz e a voto; rapidamente, no entanto, tal expectativa de exercício direto do poder de decisão esvaiu-se completamente. A população transformou-se em uma massa imensa, cuja tradução em colegiados de representantes tornou-se necessária e pode obedecer a diferentes critérios de constituição. Ainda que a regra da maioria continue a vigorar em tais colegiados, pouco se pode afirmar sobre a justeza ou a correção das correspondentes decisões, sem o conhecimento dos correspondentes critérios fundadores.
3. Maioria e ação comum
A ação, como manifestação de uma vontade que se presume livre e consciente, é um fazer sempre pessoal, e toda tentativa de coação parece indesejável, ou apresenta uma conotação negativa. Nem toda coação, no entanto, é ilegítima: as normas associadas ao poder legitimamente constituído mapeiam os limites da coação legítima. A regra da maioria foi concebida como um procedimento de legitimação da busca da ação comum, na tomada de decisões coletivas. Se os seres humanos fossem desprovidos de consciência, agindo como se fossem elementos de um grande conjunto, sem interações constitutivas, como meros objetos, ou elementos, tudo funcionaria perfeitamente de acordo com tal regra. Seria natural a transformação de quantidade em qualidade, diretamente associada às decisões coletivas. Ocorre que a consciência pessoal torna as coisas um pouco mais complexas, e uma máxima oriental registra que um homem justo pode ser uma maioria de um só elemento. Como coadunar, então, as necessidades de obediência às normas socialmente acordadas, fundamentais para a viabilização das ações comuns e diante das quais todos deveriam portar-se igualmente, com a exigência de liberdade que caracteriza a manifestação da vontade livre e consciente de um ser humano? Qualquer resposta a tal questão passa, naturalmente, pela consideração da natureza da ação comum a ser realizada, o que conduz a uma bifurcação fundamental entre os universos e interesses públicos e privados.
Na esfera pública, a busca de instrumentos de ação comum conduz à explicitação das formas de governo, dos sistemas de representação, dos procedimentos eleitorais. A composição do conjunto dos votantes, por exemplo, é um tema pleno de controvérsias. Na Grécia antiga, ele não incluía as mulheres, o que permaneceu como regra por muitos séculos; o voto dos analfabetos também é recente. Composto o eleitorado, a maioria pode manifestar-se em eleições diretas, onde cada cabeça corresponde a um voto, em igualdade de condições, ou então em eleições indiretas, delegando-se o direito de votar e eleger os governantes a um colegiado de representantes. No funcionamento regular do sistema democrático, a Câmara de Deputados e o Senado Federal constituem amostras que representam a população segundo critérios distintos, onde a proporcionalidade é levada em consideração (parcial) no que se refere ao número de habitantes ou é igual para todos os Estados.
Mesmo nas eleições diretas, a identificação do funcionamento da democracia com a vigência da regra da maioria pode significar uma simplificação aguda: se não são estabelecidas as condições mínimas para a participação, se nem todos têm voz ou voto, se nem todas as vozes são ouvidas com a mesma atenção, a maioria pode representar muito pouco em termos da vontade coletiva, pode não passar da consolidação de uma deformação, ou de uma distorção endógena, radical, não percebida ou não-reconhecida. A regra da maioria somente se legitima quando sustentada por um sufrágio universal que raramente teve vez na história da humanidade, nos diversos contextos. O número de votantes e o número de candidatos constituem obstáculos quase sempre intransponíveis para isso. Um candidato eleito com 100% dos votos de um colégio eleitoral constituído por, digamos, 15% da população (como foi o caso da eleição de Abraham Lincoln), não foi eleito pela maioria da população que irá governar. E em eleições com mais de dois candidatos, mesmo que o colégio eleitoral constitua toda a população e que o mais votado tenha 49,9% dos votos, ele não terá tido a maioria da população ao seu lado. Como se pode depreender, no processo eleitoral, a idéia de maioria apresenta muitas faces distintas.
Na esfera privada, a regra da maioria constitui um instrumento para a articulação entre as idéias de igualdade e de liberdade, como veremos a seguir.
- Liberdade e igualdade
O valor distintivo da regra da maioria resulta simultaneamente tanto da pressuposição da ampla liberdade de participação de todos os envolvidos quanto do igual valor político de todos os votantes. Segundo Kelsen (1987), é precisamente tal regra que representa uma síntese entre as idéias de liberdade e de igualdade. De fato, constituem situações abstrusas tanto a ausência de representatividade dos votantes relativamente à totalidade da população quanto o fato de que determinada maioria se forme a partir de votos desiguais. Apenas a ação individual consciente garante uma articulação adequada entre a vontade pessoal e a coletiva. Quando o voto não resulta de uma liberdade de escolha, sendo condicionado por obrigações formais, por recompensas financeiras ou de qualquer outra espécie, a integridade do processo resulta inteiramente comprometida. Em outras palavras, é a regra da maioria que garante a articulação entre as idéias de cidadania e de pessoalidade.
De fato, ainda que a palavra cidadania costume ser associada apenas à garantia de direitos, seu cerne encontra-se precisamente na idéia de participação, de articulação entre os interesses, entre os projetos pessoais e os coletivos. Assim como não vivemos, como seres humanos, sem projetos pessoais, também não vivemos apenas de projetos pessoais: todos temos interesses sinceros de participar de projetos maiores, que envolvam interesses de outras pessoas, com quem temos sintonia. Essa articulação é regulada por normas, por leis que garantem direitos e estipulam deveres, que disciplinam a participação. E todos somos iguais perante as leis. Somos ou deveríamos ser, ou gostaríamos que fôssemos. Este é o âmbito da cidadania: o da igualdade. Todos somos iguais como cidadãos. Outro é o sentido da pessoalidade.
A cidadania é o núcleo duro da pessoalidade mas esta apresenta um âmbito muito mais abrangente, que inclui regiões idiossincráticas onde cada um de nós é a maior autoridade sobre si mesmo. Expressões como “motivos de ordem pessoal”, ou “decisão pessoal” são indiciárias da necessidade de se respeitar tais limites. Não tomamos decisões sobre questões relativas à fé, por exemplo, com base em leis, eleições, ou baseados em regras de maioria. Também não procedemos assim em temas que envolvem sentimentos. E decididamente, a formação moral e a construção do hábito de um procedimento ético não se limitam à construção de um arcabouço jurídico, a uma teia de normas que garantam direitos e estipulem deveres, mas transbordam os limites da cidadania, ingressando no terreno da pessoalidade.
Em uma palavra, a pessoalidade é o lugar das diferenças. Iguais como cidadãos, somos diferentes como pessoas. Todos somos diferentes, construindo ao longo da existência uma trajetória singular, plena de pormenores e circunstâncias pessoais, de ocorrências e significações absolutamente subjetivas. Enquanto pessoas, constituímo-nos como um espectro de competências, como um feixe único de características físicas, de estados emocionais, de modos de ser e agir. No seio da pessoalidade, só existem diferenças. Mesmo quando, na escola, somos enquadrados em classes de equivalência, somos tratados como iguais, submetidos aos mesmos currículos e obtendo as mesmas notas, esperamos sair dela para sermos diferentes na vida.
O nó górdio da questão, quando se examina o significado de uma regra como a da maioria é, então o seguinte: se ela parece plenamente adequada para o exercício da cidadania, ela resulta incompreensível no âmbito da pessoalidade. Em tal âmbito, não existe espaço para a contabilidade de votos e a consciência pessoal seguramente é muito mais decisiva. Voltaremos a este ponto, mais adiante.
5. Maioria e negociação
Segundo Aristóteles, a tirania representa a forma negativa, ou a corrupção da idéia do governo legítimo de um só, da monarquia. Analogamente, por mais que a regra da maioria possa justificar-se como instrumento de articulação entre os interesses pessoais e os coletivos, buscando sintetizar as idéias de liberdade e de igualdade, a corrupção de tal concepção pode conduzir a dois tipos de “tirania”: a da maioria e a da minoria. Especialmente visível em manifestações coletivas, a tirania da maioria caracteriza-se pelo cerceamento da palavra dissonante, pela intimidação de expressões contrárias ao fluxo hegemônico, pela submissão total às deliberações votadas, com o absoluto sufocamento dos ditames da consciência pessoal. De modo simétrico, por estranho que pareça, também é muito freqüente uma configuração que poderia ser caracterizada como uma “tirania da minoria”, uma espécie de “síndrome dos coitadinhos”. Nesses casos, costuma ocorrer um deslizamento sutil do âmbito da necessária tolerância para com posições minoritárias para um outro em que sobressai a aparência de vitimização dos envolvidos. Ilustrando tal desvio, a argúcia de Bernard Shaw registrou a seguinte boutade: “Não volto mais à Inglaterra. Na primeira vez em que lá estive, a homossexualidade era crime. Agora, na segunda, ela é amplamente permitida. Na próxima vez, poderá ser obrigatória…”
Ironias à parte, o fato é que o cerne mesmo da idéia de democracia situa-se na garantia de participação, muito mais do que na simples eleição por meio de alguma regra procedimental como a da maioria. E é perfeitamente possível perguntar-se, juntamente com Kelsen (1987), se seria mais “democrático” a submissão de todos ao princípio majoritário ou a livre negociação de compromissos que possibilitem a convivência harmônica de diferentes pontos de vista sobre um mesmo tema. Parece plenamente legítimo e defensável que minorias organizadas e devidamente representadas possam participar do exercício do poder por meio de uma negociação, de um acordo que leve em consideração seus interesses específicos, independentemente do fato de terem um pequeno número de representantes/votantes. Acordos e contratos que levem em consideração a diversidade de interesses e não signifiquem simplesmente a resignada capitulação das minorias podem conduzir a uma ação comum muito mais consciente, a uma harmonia mais duradoura. Naturalmente, assim como um princípio como o da maioria exige um sistema de representação adequado, que garanta a universalização do voto, mesmo de forma indireta, o princípio da negociação também exige que não se descure a construção do que Habermas caracteriza como uma “situação ideal de fala”. Não se pode pretender que o rato negocie com a ratoeira, ou a raposa com as galinhas: as vozes dissonantes precisam ser efetivamente ouvidas e se os caminhos principais são prefigurados pelas decisões hegemônicas, não se pode pretender impedir a coexistência de rotas alternativas que viabilizem a sobrevivência de pensamentos dissidentes eticamente defensáveis.
6. Irreversibilidade e fugacidade
Uma das maiores dificuldades teóricas enfrentadas pela justificativa das decisões coletivas fundadas na vontade da maioria é a freqüente volatilidade dos arranjos que a produzem. As circunstâncias e os cenários podem transformar-se como nuvens e o processo de auscultação da vontade coletiva não pode ser contínuo. As eleições, por exemplo, são realizadas periodicamente, em períodos variáveis em diferentes culturas, havendo dispositivos constitucionais, em alguns sistemas, para serem convocadas antes do tempo previsto, em função do voto de desconfiança de algum colegiado mediador. De qualquer forma, enquanto a nova consulta não é realizada, o desconforto provocado pela fugacidade da hegemonia somente pode ser compensado pelo consolo da perspectiva da alteração de rumo. Um fantasma, no entanto, ronda tal fugacidade: a irreversibilidade inerente a certas decisões. No caso específico da pena de morte, a complexidade da questão emerge com toda a força. Se a vida não pode ser restituída, em caso de erro de avaliação ou de transformações radicais nas circunstâncias – o que ocorre com uma freqüência nada desprezível – como poderia ser tirada? Como se sabe, a despeito de uma permanente polêmica, tal pena subsiste em diversos países, incluindo-se alguns estados americanos do norte.
Se a problemática da irreversibilidade estivesse restrita à vida em sentido biológico, o tema não seria tão complexo. O fato é que, de forma mais ou menos aguda, ela subsiste em praticamente todos os processos humanos. Heráclito já nos lembrava, vários séculos antes de Cristo, que não nos banhamos duas vezes no mesmo rio: quando lá voltamos, ele já não será o mesmo – nem nós. A entropia, ou a seta do tempo está continuamente a nos apontar a contínua degradação da energia disponível, e um grande e permanente esforço de racionalidade precisa ser realizado, até mesmo para permanecermos no mesmo lugar. Ainda que, no dia a dia, lidemos continuamente com o fazer e o refazer, o construir e o desconstruir, o ir e o voltar, a inexistência de critérios rígidos de demarcação do irreversível, associada à fugacidade das configurações majoritárias devem conduzir a reflexão a um ponto em que, o mínimo a fazer é pôr as barbas de molho.
7. Ciência e maioria
Um terreno em que a regra da maioria parece não ter guarida é o da Ciência. A ninguém ocorre que decisões sobre questões de natureza científica resultem de consultas desse tipo, e a autoridade de um só pode conduzir a uma reviravolta conceitual, desde que apoiada por evidências empíricas, ou por argumentações bem fundadas. A autoridade da Ciência decorre de tais formas de justificação. Não faz qualquer sentido decidir-se sobre a vigência ou a pertinência, por exemplo, da geometria euclidiana em determinado contexto com base na quantidade de pessoas que têm tal fato como verdadeiro. Freqüentemente, em temas científicos, a maioria pode estar enganada e as concepções revolucionárias têm origem tímida, sempre minoritária. Galileu teve que negar sua crença fundamentada de que a Terra se movia, sob a pressão e a tirania da maioria religiosa. Apesar de tudo, o processo e o percurso que conduzem da incipiência de uma idéia transformadora até sua estabilização paradigmática, quando esta de fato vem a ocorrer, no terreno científico, são profundamente iluminadores para outras áreas, menos solidamente estabelecidas do que a Ciência.
De fato, quando um conceito ou uma teoria começam a ser questionados, aqui e ali surgem uns poucos eventos/experimentos rebeldes, que desafiam as leis estabelecidas, numa espécie de “desobediência civil”. Olhados com desconfiança, no primeiro momento, são examinados mais detidamente, em caso de persistência, no bojo de um impulso que pode ser o de negação da existência do desvio teórico, mas suficientemente aberto ou tolerante, no sentido de abrir a guarda das idéias preconcebidas, em nome da coerência e da integridade da Ciência. O recurso à lógica e a força da argumentação constituem os instrumentos de verificação do desvio ou necessidade de correção de rumo e se já houve tempo em que se poderia morrer queimado por contestar as teorias hegemônicas, hoje tal risco inexiste, a menos que se considere a fogueira de vaidades ou a morte da reputação intelectual. Poder-se-ia afirmar que, de alguma forma, as teorias aceitas são referendadas pela maioria dos cientistas; entretanto, os procedimentos que conduzem a tal aceitação não se assemelham minimamente a processos eleitorais, e o argumento da autoridade legitimamente constituída é muito mais decisivo do que nas instâncias políticas, no exercício democrático.
8. Consciência e maioria
Não é somente em questões de natureza científica que a regra da maioria não encontra boa guarida. Na Grécia antiga, distinguiam-se temas referentes à doxa, à opinião, e ao logos, ou à episteme, associados ao conhecimento em sentido amplo, e se parece aceitável o recurso a critérios de maioria para as decisões relativas a opiniões, o mesmo não ocorre no terreno científico, conforme já se registrou anteriormente. Existem outros temas ainda, que não dizem respeito à doxa nem à Ciência, que não parecem negociáveis como as opiniões, nem passíveis de critérios de verificação pretensamente nítidos, como os de natureza científica: tratam-se dos princípios éticos, das questões que envolvem valores e a consciência pessoal. Por exemplo, não se delibera sobre a adoção ou não de uma religião por meio de eleições, ou de algum tipo de regra de maioria, por mais livres e diretas que sejam, por mais legitimamente representativo que seja o universo dos votantes. A propósito, a Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América proíbe tal associação entre o Estado e a Religião, qualquer que seja ela, como uma claúsula pétrea, como uma questão de princípio. Nenhuma lei, nenhuma regra poderá sobrepor-se a essa condição. Em âmbitos como esses, somente a consciência pessoal poderá balizar a decisão e cada pessoa é a maior autoridade sobre si mesma.
Existem outros âmbitos em que situações análogas ocorrem. Não escolhemos o time de futebol para o qual torcemos, nem estabelecemos relações afetivas com alguém submetendo-nos a normas jurídicas ou eleitorais. Também não o fazemos quando apreciamos uma obra de arte, assistimos a um filme, ouvimos uma música. Nesses casos, ainda que a voz da maioria muitas vezes se faça ouvir, influenciando a escolha daquilo que vai merecer nossa atenção, efetivamente, gostar ou não gostar do que vimos ou ouvimos é absolutamente pessoal, a menos que nos falte qualquer resquício de consciência e de integridade.
Especialmente no que se refere aos sentimentos mais profundos que caracterizam a natureza humana, aos valores mais perenes, que transcendem a diversidade cultural e se enraízam naquele fundo insubornável de que nos falou Ortega, que instaura a consciência pessoal em cada ser humano, normas externas ou regras como a da maioria pouco têm a oferecer. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu Artigo 1o, estabelece que “Todos os seres humanos nascem e permanecem livres e iguais em dignidades e direitos”. Tal sentimento, no entanto, brotou na alma humana, emergiu desse fundo orteguiano muito antes de se transformar em uma norma. E se por alguma abominável circunstância, um governante poderoso e alucinado estabelecer por decreto que os homens nascem diferentes, que os baixinhos e carecas são mais sábios e devem ter mais poder, ou outras estultices semelhantes, a consciência pessoal de cada um de nós falará mais alto e a resistência a tal decreto será absolutamente natural.
9. Desobediência civil
Infelizmente, aparentes absurdos como o que foi sugerido acima não são raros ou improváveis, na história da humanidade, e situações nitidamente injustas, do ponto de vista da consciência pessoal, têm conduzido a desapontamentos, desilusões, ou a revoltas e resistências de diferentes tipos. De modo geral, diante de uma lei, duas são as atitudes possíveis: cumpri-la ou modificá-la. Para mudá-la, são necessários instrumentos e procedimentos formais. Se eles não existem, é preciso criá-los, é necessário lançar as sementes para viabilizar a transformação, o que exige, sem dúvida, discernimento e paciência. A impaciência situa-se na raiz de quase todos os regimes políticos autoritários ou ditatoriais. Algumas vezes, em tais regimes, o governante tem a sincera convicção de que o projeto coletivo que tenta instaurar é o melhor para todos, e não tendo qualquer paciência para um imprescindível convencimento, parte para a violência. Filhas diletas da prudência, a paciência e a tolerância são como gêmeas siamesas. Diante de uma norma que consideramos injusta, não se justifica, portanto, a mera desobediência.
Existem, no entanto, situações coletivas em que uma lei nos parece decididamente injusta, injustificável, absurda e intolerável porque agridem ostensivamente os valores fundadores de nossa consciência pessoal, aquele fundo insubornável que nos caracteriza como seres humanos. Violências injustificadas, desrespeito à vida, violações da liberdade pessoal, agressões descabidas ao meio ambiente, preconceitos grotescos de natureza racial, social ou religiosa, discursos cínicos recobertos por argumentações caricatas, irracionais ou ilógicas etc, etc, etc serviram de motivo para reações não violentas de resistência a normas sociais consideradas inaceitáveis pela consciência pessoal. Henry Thoreau, em meados do século XIX, vivenciou situação desse tipo, ao reagir à cobrança de impostos nos Estados Unidos, que estavam empenhados numa guerra desigual que espoliou o México. Sua forma de resistência caracterizou-se por uma desconsideração consciente do que era classificado como injusto, uma proclamação pública do desacordo, uma argumentação consistente para justificar sua atitude, lançando as sementes de uma transformação no cenário, e, sobretudo, a aceitação resignada da punição pelo desrespeito consciente à lei. Tal atitude praticamente instituiu uma categoria especial de resistência, que passou a ser denominada “desobediência civil”, título de um dos livros publicados por Thoreau. De forma original, mas com inúmeros indícios de uma influência thoreauniana, no início do século XX, Gandhi resistiu pacificamente à dominação inglesa na Índia, simbolizando uma luta de David contra Golias, tendo como arma apenas o silêncio e a palavra, a conscientização e o convencimento. Ainda nos Estados Unidos, alguns anos mais tarde, Martin Luther King representou uma resistência semelhante contra o racismo que imperava, especialmente nos Estados do Sul. Em cada um dos casos, o não cumprimento da lei teve conseqüências, provocando punições, mas também lançando as sementes de novas concepções, de novos tempos. Com paciência e determinação, justas opiniões minoritárias enraizadas na consciência pessoal e fundamentadas na existência de um fundamento ontológico que transcende o simples cumprimento da vontade da maioria, expressa nas leis vigentes, caminharam, ao fim e ao cabo, rumo a transformações agudas que passaram a consolidar uma nova maioria.
10. Integridade e ontologia
A idéia de maioria encontra-se umbilicalmente ligada às idéias de totalidade e de integridade, bem como à pressuposição de uma ontologia em sentido forte, o que significa dizer que os seres humanos e os valores fundamentais que os constituem são um a priori relativamente às instituições e à cultura. Tentaremos explicitar tal ponto de vista a seguir.
Em sua origem, a idéia de maioria articula-se diretamente com a noção de totalidade. Segundo Bobbio (1996), “a regra da maioria foi concebida como o procedimento necessário, ou o mais idôneo, para a formulação de uma decisão coletiva nas universitates” (p.256). A palavra latina universitas, universitatis é uma criação do grande orador Cícero, cerca de um século antes de Cristo, para traduzir a palavra grega holótes, que significa totalidade, conjunto. Na Idade Média, a palavra universitas passou a ser usada como uma expressão para corporação, ou seja, para associações que partilhavam interesses comuns. Na Itália, no final do século XII, o termo passou a ser aplicado ao conjunto de professores e alunos de um estabelecimento de ensino (universitas magistrorum et scholarium). Em Portugal, o termo universidade encontra-se em uso desde o século XV, no sentido original de totalidade, em referência a um conjunto de pessoas que partilham interesses comuns. Naturalmente, os interesses que marcavam o sentido original eram marcadamente “universais”. Traços de tal significado permanecem presentes no uso atual da palavra “universidade”, ainda que uma expressão relativamente nova e etimologicamente pobre como “universidade corporativa” tenha sido utilizada com freqüência crescente. No sentido indicado por Bobbio, por “universitates” entende-se associações ou reuniões de pessoas que representam um universo, uma totalidade que recobre todos os elementos particulares envolvidos, que abrange interesses “universais” e competências que são comuns a todos. O sentido dessa comunhão não é fácil de explicitar, mas talvez possa ser vislumbrado por meio de alguns exemplos. Ninguém consideraria razoável a eleição direta, entre os presentes em determinado vôo, por meio de uma regra de maioria, daquele que deveria pilotar o avião: os presentes não constituem uma totalidade com as características das “universitates”. De fato, os passageiros têm interesses muito específicos, a função do piloto também exige uma competência técnica particular; os interesses em jogo estão longe de serem “universais”. No caso de uma cidade, de um estado, de um país, ao eleger-se um governante, se a totalidade da população é representada pelo universo dos votantes, se todos os interesses estão contemplados, se cada ser humano, cada cabeça pensante representa efetivamente um voto, se se acredita que cada um pode efetivamente ser eleito e exercer o poder, estamos diante de “universitates” e a regra da maioria constitui o procedimento mais idôneo para a articulação entre ações pessoais e ações coletivas, para a legitimação das ações comuns, da comunicação, das coações legítimas. A negação de tal procedimento significa automaticamente algum tipo de exclusão, ou a descaracterização da universalidade de capacidades e interesses. Para sublinhar a articulação entre as “universitates” e a regra da maioria, recordemos, no entanto, que mesmo no processo político democrático, o prefeito, o governador e o presidente são eleitos pelo voto direto da maioria, mas os ministros e os secretários são indicados pelos escolhidos nas urnas, em função de uma articulação entre a autoridade, o gosto pessoal e a competência específica.
De modo análogo, a idéia de maioria também está diretamente associada à idéia de integridade, tanto em sentido pessoal quanto na referência a sistemas ou coletividades organizadas. De fato, a idéia de integridade pressupõe uma integração entre o discurso e a ação, entre as partes e o todo, garantida por uma permanente abertura no cenário de valores, que viabiliza a alteração das regras do jogo, por meio do exercício racional da argumentação, da confiança na palavra. Entretanto, discursos eloqüentes sobre valores, desvinculados de uma prática consentânea, conduzem irremediavelmente ao descrédito, à sensação de desamparo, ou ao desenvolvimento de atitudes cínicas, que eivam perigosamente o terreno educacional e o político. Sem uma vivência efetiva da palavra que se professa, sem esse exercício cotidiano de fraternidade entre personalidades diversas em interesses, saberes e poderes, limitar-se a um discurso politicamente correto pode ser tão propício ao cultivo de valores quanto o seria a realização de um seminário ou de uma conferência para ensinar a platéia a andar de bicicleta.
Uma integração entre o discurso e a ação constitui um ingrediente fundamental, uma condição sine qua non da idéia de integridade tal como aqui pretendemos caracterizar. Sem ela, qualquer expectativa de autonomia moral esvai-se completamente nas ações da vida prática. Essa articulação entre duas das dimensões fundadoras da idéia de logos – a da palavra e a da ação – é uma meta a ser continuamente perseguida, um cristal bruto a ser permanentemente lapidado pelas ações educativas, na escola ou na vida, muitas vezes por meio de instrumentos claramente heterônomos, como os que resultam da autoridade legitimamente constituída.
Referida tanto a indivíduos quanto a grupos, do modo como aqui é entendida, a integridade exige três níveis de predicados. Em primeiro lugar, é necessário que se disponha de uma arquitetura de valores para instrumentar as ações, permitindo um discernimento autônomo do que se considera certo e do que se julga errado. Não é tão difícil estruturar-se um quadro de valores desse tipo no nível do discurso e muitas das iniciativas hoje consideradas absolutamente insanas foram justificadas, historicamente, em uma carta de princípios, uma explicitação coerente dos valores assumidos. Esse primeiro nível, ainda que fundamental, não basta para caracterizar a integridade. Um segundo nível de exigência diz respeito precisamente à necessidade de uma consonância entre as ações e o discurso, mesmo quando tal coerência possa produzir efeitos desagradáveis para os envolvidos. Um indivíduo íntegro não pode, por um lado, ter um perfeito discernimento dos temas que analisa e por outro lado, agir de modo dissonante do que considera correto, por razões de conveniência ou de interesse pessoal. Nada pode ser mais deletério para um estudante, por exemplo, do que uma convivência promíscua entre um discurso elaborado sobre a tolerância e uma prática opressiva nos processos escolares de avaliação. Nada parece menos íntegro do que o reconhecimento de que tal ou qual lei é injusta, mas, uma vez que ela nos favorece, procuramos tirar proveito dela.
A idéia de integridade, no entanto, exige que se vá além desses dois níveis iniciais, que podem caracterizar o conforto de uma ética da convicção, onde grande parte da integridade pessoal está garantida, mas que nos deixa sempre no limiar de uma ética da responsabilidade, onde assumimos responsabilidades públicas com aquilo que professamos. Um terceiro nível, sem o qual a integridade não se completa, diz respeito precisamente à disponibilidade dos atores, agentes individuais ou grupos sociais, para defender publicamente a razoabilidade de seus valores e de suas ações, argumentando de maneira lógica e assumindo as responsabilidades inerentes. A idéia de integridade não se completa sem essa abertura para o diálogo, para uma negociação de significados, em que não estamos dispostos a abdicar graciosamente de nossos princípios, mas aceitamos pô-los entre parênteses para examiná-los em outras perspectivas, e sobretudo, admitimos que podemos estar errados.
Em razão do que acima se afirmou, a integridade constitui o valor fundamental para a caracterização da humanidade do homem, tanto em sentido pessoal quanto na referência a sistemas ou coletividades organizadas. Certamente, o estatuto da integridade antecede a aceitação de qualquer regra procedimental, como a da maioria. A integridade faz parte de um quadro de valores definidores da natureza humana, cuja preservação é a principal responsabilidade de qualquer governo. A existência de um tal quadro de valores está diretamente associada a uma concepção de realidade, dos seres e das relações sociais, dos laços naturais e das convenções convenientes, dos princípios fundadores e dos contratos circunstanciais. Em uma palavra, a idéia de integridade pressupõe uma ontologia. E sem uma ontologia, a simples conformação a uma regra de maioria pode significar uma abdicação da consciência pessoal e da responsabilidade inerente ao livre arbítrio, o que parece absolutamente inaceitável. Afinal, segundo Sartre, “a única liberdade que não temos é a de não sermos livres”, e o próprio Código Civil suíço registra, em seu artigo 27, que “ninguém pode abdicar da sua liberdade”.
11. Epílogo: o povo e a fumaça
Um bordão de um programa humorístico (Renato Aragão) garante que “quando o povo fala, ou foi, ou é ou será…” Trata-se, aparentemente, de uma espécie de laicização do aforismo “a voz do povo é a voz de Deus”. Em ambos os casos, subjaz certa intenção/pretensão de sugerir que “a maioria sempre tem razão”. Combinando-se tais ingredientes com a etimologia estrita da palavra “democracia” (governo do povo), tudo se encaminha no sentido de consolidar uma opção decidida pela vigência de alguma versão da regra da maioria. Seja a simples, a absoluta, a qualificada ou qualquer outro avatar, pouca diferença conceitual subsistiria, nesse elogio tácito da maioria. Mas as coisas não são tão simples assim. Sem dúvida, é necessário ouvir a voz do povo, é preciso notar suas manifestações indiciárias mais sutis. Mas não é possível ignorar os resquícios de irracionalidade freqüentes em manifestações e decisões coletivas. A análise do fenômeno homem-massa, realizada por Ortega y Gasset em A rebelião das massas, traz, ainda hoje, elementos fundamentais para a compreensão das relações entre minorias e maiorias. A massa não atua por si mesma, carece de consciência, não se comporta como uma pessoa. Para que os apressados não rotulem tal ponto de vista como simples elitismo, recordemos que, nas palavras de Ortega (1962), “por massa não se entende especialmente o obreiro; não designa aqui uma classe social, mas uma classe ou modo de ser do homem que se dá hoje em todas as classes sociais” (p.170). E arremata, mordaz: “o homem de ciência atual é o protótipo do homem-massa”.
Concluindo, retornamos ao recado de Bismarck, na epígrafe deste trabalho: se a razão da maioria tem limites e conduz, muitas vezes, a aporias, seus múltiplos corações não compõem um verdadeiro coração. Levar em consideração a voz do povo significa, metaforicamente, prestar atenção aos sinais de fumaça representados pelas manifestações coletivas. Não se pode ignorá-los, por arrogância ou leniência, mas não nos é permitido, nunca, abdicar do exame de consciência e do juízo fundado na integridade pessoal. Se um livro ou um filme são lidos ou vistos por milhões de pessoas, isso não constitui atestado de qualidade, nem pode fundar um juízo de valor. O fenômeno merece ser estudado e a mensagem/fumaça deve ser interpretada. Mas “às vezes um charuto é apenas um charuto”, como nos lembrou Freud, um dia. E, rigorosamente, tudo o que se pode concluir da visão da fumaça é que “onde há fumaça, há fumaça”.
***SPaulo 12/8/04
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Lugares da Assimetria: Autoridade, Dádiva, Ética
Nilson José Machado
njmachad@usp.br
Resumo
“A cada ação corresponde uma reação de mesma intensidade e de sentido contrário”, garante o Princípio da Ação e Reação, uma das três leis de Newton para fundar a Mecânica. Se tal simetria é fundamental para a explicação do movimento em sentido físico, químico ou biológico, na construção das teorias científicas, ela é absolutamente imprópria quando referida às ações humanas. Na circulação de bens econômicos, por exemplo, a troca simétrica de equivalentes é o motor do funcionamento dos mercados, mas é uma assimetria radical que motiva a circulação dadivosa: o motor da dádiva é o laço social e o circuito dar, receber, retribuir situa-se muito distante do terreno das simetrias. Particularmente no que se refere à circulação do conhecimento como um valor, certamente a idéia de mercadoria mostra sua limitação e a dimensão dádiva revela-se imprescindível. De modo análogo, toda autoridade pressupõe uma assimetria: não se pode exercê-la sem assumir unilateralmente o peso das responsabilidades inerentes. Entretanto, se abdicar de todo exercício de autoridade pode ser uma tentação atraente e factível em micro-ambientes, ou em situações circunstanciais de homogeneidade incomum no que tange aos projetos e aos valores, toda extensão da ideia de anarquia para universos políticos e culturais mais abrangentes parece uma anomalia. Historicamente, a anarquia em sentido político parece não passar de um luxo de minorias. É no terreno da Ética, no entanto, que a ideia de simetria revela-se mais problemática: a ação virtuosa deve independer completamente de qualquer expectativa de reciprocidade. O caminho considerado eticamente defensável deve ser seguido mesmo que todos os demais sigam outro rumo. Ainda que princípios como a Regra de Ouro (“Não faças aos outros aquilo que não gostarias que fizessem a ti”), ou o imperativo categórico kantiano (“Age de modo tal que a razão da tua ação possa ser transformada em uma lei universal”), ou mesmo certas máximas religiosas (“Ama o próximo como a ti mesmo”; “Perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”) sugiram a prevalência da simetria, tal impressão não passa de um mal-entendido. O fato é que a simetria no que tange às ações humanas somente pode conduzir a encadeamentos do tipo “bateu/levou”, ou a uma cristalização da Lei de Talião: “Olho por olho, dente por dente”. Examinar a propriedade da assimetria em tais lugares – a dádiva, a autoridade, a Ética – é o objetivo principal deste texto. Em outros momentos já nos detivemos na caracterização da assimetria na dádiva (Conhecimento e valor, 2004) e na autoridade (Educação e autoridade, 2008); no presente ensaio, os esforços serão concentrados no terreno da Ética..
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Sumário
1. Vida, ação
2. Ação, coação
3. Ação, violência
4. Ação, paixão
5. Ação, criação
6. Reação, resposta
7. Repetição, criação
8. Liberdade, responsabilidade
9. Responsabilidade, autoridade
10. Autoridade, autoritarismo
11. Autoritarismo, reacionarismo
12. Autoridade, dimensões
13. Responsabilidade, julgamento
14. Resposta, dádiva
15. Dádiva, assimetria
16. Dádiva, conhecimento
17. Dádiva, civilidade
18. Religião, simetria
19. Religião, assimetria
20. Simetria, assimetria
21. Ética, Religião
22. Kant, simetria
23. Kant, assimetria
24. Habermas, fé
25. Habermas, lacunas
26. Habermas, valores
27. Pessoalidade, assimetria
28. Ciência, simetria
29. Ética, responsabilidade
30. Liberdade, responsabilidade
31. Ética, assimetria
32. Ética, fé
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LUGARES DA ASSIMETRIA: AUTORIDADE, DÁDIVA, ÉTICA
A moral não é nem um mercado nem um espelho.
André Comte-Sponville
Repetir repetir – até fazer diferente.
Repetir é um dom do estilo.
Manoel de Barros
1. Vida, ação.
A vida em sentido humano é ação: um fazer consciente, impregnado de significação. Tal fazer, sempre conjuminado com a palavra, pressupõe uma antecipação do que se intenta, uma reflexão sobre suas conseqüências. É a expressão de uma vontade livre, em busca de uma auto-regulação, ou seja, é a construção de uma volição de segundo nível, de uma vontade de ter certas vontades e não outras. Um fazer sem a palavra, sem consciência, é próprio do animal, que tem uma possibilidade limitada de antecipação e se deixa mobilizar pelos instintos, pelas vontades primárias. Simetricamente, a palavra mais plena de significado, que inspira a ação mas não se vincula inextricavelmente à mesma, é mais apropriadamente associada aos afazeres das divindades do que aos humanos: não é próprio dos deuses saírem por aí realizando ações, e já se disse, de modo emblemático, que os milagres resultariam da impaciência dos deuses.
2. Ação, coação
Um indício eloqüente de que a língua, em seu uso corrente, reconhece a riqueza semântica da palavra “ação” é o fato de que, ordinariamente, predomina na palavra “coação” uma conotação negativa, como a registrar a virtual incompatibilidade entre a idéia de coação e a de um fazer livre e consciente. Naturalmente, nem toda coação é negativa ou indesejável: é necessário distinguir a coação ilegítima, ou a coerção, da coação legítima, associada ao exercício de uma autoridade legitimamente constituída. Todos os que educam, sejam pais ou professores, têm necessidade de coagir, em certas circunstâncias. E o exercício da atividade política pela autoridade legitimamente estabelecida pressupõe que os governantes ajam pelos governados, nos limites da lei. Mas de modo geral, na maioria das situações ordinárias, todos preferem a ação, a manifestação de nossa vontade livre e consciente, à coação.
3. Ação, violência
A ação, o fazer com a palavra, constitui o antídoto para a violência, cuja eclosão sempre significa a falência da palavra. Em conseqüência, a expressão “ação violenta” soa como um verdadeiro oxímoro, como um “grito silencioso”, ou um “silêncio eloqüente”. Na verdade, a violência nunca tenta se justificar como uma ação, como a manifestação de uma vontade livre e consciente, mas sim como uma reação. Parece natural reagir a um assalto, ou a uma grosseria com outra grosseria, a uma agressão com outra agressão. Realmente, nesses casos, a reação é natural e é o modo próprio de atuar dos animais. Enquanto nos limitamos à dimensão animal que nos constitui, parece lógico viver de reações; para transcender esse nível, é necessário reconstituir a confiança na palavra. Somente a palavra pode quebrar a cadeia estímulo-reação. A palavra que perdoa, que doa perfeitamente, a palavra que compreende, que aceita explicações, que acredita em promessas.
4. Ação, paixão
Originariamente, o contrário da ação (actio, em latim) não é a reação, mas sim a paixão (passio, em latim), o oposto do agir é o sentir, é o padecer, ser paciente. O verbo agere sequer existe no latim clássico. O dualismo cartesiano associou a paixão à alma e a ação ao corpo, de modo assimétrico. Ao escrever “As paixões da alma”, Descartes procurou explicitar as condições para as ações humanas, fundadas no “cogito”, não serem perturbadas pela irracionalidade das paixões. A assimetria corpo/alma é a marca do dualismo cartesiano. Os monismos de todas as estirpes, fundados na Biologia, como em Haeckel, ou na Política, como em Hobbes, sempre superestimaram o significado das reações, desconfiando das palavras e das causas finais. O mundo humano resumir-se-ia ao complexo de reações físico-químicas, a um materialismo extremo em que a vida consistiria em uma permanente interação em que as quantidades de movimentos seriam trocadas simetricamente, como previsto pelas leis de Newton. De modo geral, todo monismo representa uma expectativa de simetria. A questão da causa inicial do primeiro movimento é deixada de lado; daí para frente, o princípio da ação e reação explicaria tudo.
5. Ação, criação
Ocorre, no entanto, que a vida humana parece complexa demais para se deixar traduzir em mero encadeamento ação-reação-reação-reação…, em que a assimetria se resumiria ao ponto de partida, ao verdadeiro gesto criador, tudo o mais decorrendo de interações newtonianas. Na verdade, vivemos enquanto criamos e criamos continuamente, enquanto estamos vivos. E a criação é sempre assimétrica, o criador sempre aumenta o mundo. O verbo latino augere, que significa aumentar, está na origem da palavra autor (ou aumentador). Se a uma ação corresponde uma reação, certamente a tal reação não esgota o significado da ação, não é a imagem espelhada da mesma, pelo menos em sentido humano. O par indissociável da ação humana é a resposta (responsa, em latim), que pode transcender em muito a mera reação e que pertence efetivamente ao terreno da responsabilidade. A ação humana, a ação consciente, é uma ação responsável. Somos humanos na medida em que respondemos por nossas ações; constituímo-nos como pessoas na medida em que assumimos a responsabilidade pelos nossos atos, e enfrentamos as conseqüências que deles advierem.
6. Reação, resposta
A idéia de resposta é, pois, muito mais abrangente do que a de mera reação. Nos animais, as reações esgotam o sentido das respostas a estímulos; em termos humanos, uma resposta pode limitar-se a uma simples reação, mas de modo geral, ela representa um novo início, uma nova ação/criação. E todo início é a revelação de uma autoria, é a realização de uma assimetria. Não existe, portanto, uma dissociação completa entre os elementos do par reação/resposta, assim como não existe a possibilidade de dissociação plena entre a ação racional, consciente, marca da natureza humana, e as reações emocionais, que expressam corporalmente os sentimentos mais profundos do ser humano. O dualismo cartesiano corpo/mente foi fundamental como antídoto às reduções monistas da vida humana tanto ao corpo material quanto ao espírito imaterial. Mas o próprio Descartes enfrentou a questão da relação entre os elementos do par corpo/mente, ao propor que a interação entre tais elementos realizar-se-ia por meio da glândula pineal. Hoje, tal proposição pode parecer tão esdrúxula quanto a que afirmava que o sangue circulava em razão de uma chama que o aquecia, no peito, no coração de cada um de nós. Sabemos que tal proposição, apesar de ter inspirado muita poesia, não corresponde à realidade. No caso da glândula pineal, no entanto, podemos ver um atestado eloqüente da percepção da inseparabilidade das dimensões razão/sentimento na constituição do ser humano.
7. Repetição, criação
Para evidenciar a mútua alimentação entre os elementos dos pares acima referidos, detenhamo-nos um pouco no caso da produção textual, ou artística em sentido amplo, em que a cópia/repetição representa a expressão máxima da simetria, enquanto a criação/autoria é expressão pura da assimetria. Em todos os contextos, no entanto, é plenamente reconhecido que a inspiração requer muita transpiração, que a apresentação de uma peça musical exige um longo período de treinamento repetitivo, que a construção de um estilo pessoal somente se dá após muita imitação, explícita ou tácita, que o caminho para a diferença cruza longamente o território da igualdade. O poema de Manoel de Barros, em epígrafe, matiza magistralmente tal separação: repetir é o caminho para construir a diferença, a cópia é pré-condição da criação, o estilo pessoal somente pode surgir como resultado de uma submissão temporária, consciente ou não, a algum tipo de autoridade e a submissão/repetição é veículo/instrumento de doação. Uma conseqüência natural de tal fato é que o elogio da assimetria como marca da ação humana não pode significar uma simples exclusão da simetria de nossas considerações.
8. Liberdade, responsabilidade
Assumir a responsabilidade pelos nossos atos pressupõe a existência de liberdade, de possibilidade de escolha. Se nossas ações fossem inteiramente condicionadas pelo contexto, se não fosse possível exigir-se de nós procedimento distinto do que efetivamente realizamos não se pode falar de liberdade, nem de responsabilidade em sentido próprio. Sem liberdade, não se poderia falar de moral, nem de princípios éticos, mas apenas de condicionamento, de submissão acrítica. Naturalmente, a idéia de liberdade que subjaz é a que tão bem expressa o poeta Octávio Paz: a liberdade consiste na escolha da necessidade. Somos livres se nos limitamos por meio de restrições que escolhemos conscientemente, se nos submetemos a regras cujo significado nos foi explicado, se obedecemos a leis que criamos, quase sempre indiretamente, por meio de nossos representantes. Toda liberdade significa, portanto, essencialmente, autonomia (nomos é lei, em grego).
9. Responsabilidade, autoridade
A idéia de responsabilidade também se encontra indissociavelmente ligada à de autoridade. Duas são as vertentes principais de tal interdependência. Por um lado, a responsabilidade somente pode ser encontrada onde existe uma fonte de ações conscientes, ou seja, uma pessoa; e uma pessoa somente pode ser caracterizada por meio de um núcleo fundamental, um fundo insubornável, na feliz caracterização de Ortega y Gasset, no qual ela é a maior autoridade sobre si mesma, assumindo as responsabilidades correspondentes. Por outro lado, todo exercício de uma autoridade está inevitavelmente associado à assunção de responsabilidades, no sentido de responder pelos atos de outras pessoas: quem não deseja tal encargo, não pode exercer qualquer tipo de autoridade. Além de responder pelas ações dos outros, à autoridade compete ainda uma classe de coação legítima, da efetiva ação pelos outros, associada ao exercício do poder legitimamente constituído. Quando elegemos governantes, por exemplo, esperamos que eles ajam por nós, dentro dos limites e dos âmbitos das autoridades que exercem, nunca ameaçando ou invadindo o fundo pessoal insubornável de que falou Ortega.do pessoal insuborn que exercem, nunca ameaçando ou invadindo o r nessoas. uma pessoamos, quase sempre indiretamente, por me
10. Autoridade, autoritarismo
As palavras auctoritas e auctor derivam do mesmo verbo latino augere (aumentar). Tal como o autor, aquele que cria, que inicia algo novo, a autoridade representa a criação ou a manutenção da ordem instituída. O exercício da autoridade sempre está, então, associado à idéia de assimetria. É próprio de quem exerce autoridade tomar iniciativas, iniciar ações coletivas, fomentar legítimas coações, assumir responsabilidades por si e pelos outros. Um desvio semântico freqüente consiste em associar o exercício da autoridade com a idéia de autoritarismo. Trata-se, naturalmente, de um mal-entendido. Em termos teóricos, é perfeitamente legítimo imaginar-se uma convivência em que se possa abdicar de qualquer autoridade – tal é a via da constituição da anarquia (arché = governo). Historicamente, no entanto, tal possibilidade parece esbarrar numa intransponível questão de escala, permanecendo no horizonte como um luxo destinado a minorias. Não é possível, portanto, identificar o necessário exercício de uma autoridade legitimamente constituída com o sempre indesejável autoritarismo. O que distingue as duas noções é um fato simples: toda autoridade legítima é exercida em determinado âmbito e tem limites que não pode ultrapassar. Não existe uma autoridade legítima para todos os âmbitos possíveis, ou que não respeite os limites que constituem a marca da pessoalidade, de cada ser humano. O autoritarismo é sempre uma extrapolação de âmbitos, um desrespeito de limites.
11. Autoritarismo, reacionarismo
A conotação negativa do exercício da autoridade, pela associação direta com o mero autoritarismo, encontra uma correspondência caprichosa com a similar conotação da palavra “reacionário”, muitas vezes associada a quem não responde de modo consciente às ações externas, limitando-se apenas a reagir a elas. No fundo, no entanto, nem o autoritarismo é detestável pela sua assimetria, nem o reacionarismo pela sua simetria. Assim como a simples reação não basta para caracterizar as ações humanas, a ação mais criativa que invade âmbitos pessoais ou configura manifestações de intolerância, mesmo em defesa de fins considerados valiosos, também não pode ser considerada aceitável como exercício legítimo da autoridade. Em todas as suas formas de manifestação, a autoridade representa a assimetria, assim como a criação, a doação, ou a atitude diante das normas, numa configuração social de valores. A autoridade é exercida a serviço da manutenção de uma ordem que se supõe justa, o que exige uma ação permanente, continuada, inerentemente assimétrica, que conflita tanto com a dinâmica da troca de equivalentes do mercado quanto com a simetria das reações que apenas se espelham em ações alheias. No universo dos valores, tal assimetria é fundamental. A epígrafe de Comte-Sponville traduz com perfeição o que se pretende aqui afirmar: A moral não é um mercado, nem um espelho.
12. Autoridade, dimensões
A noção de autoridade é múltipla e complexa. Segundo Kojève, no entanto, em qualquer manifestação específica, ela inclui quatro componentes básicas, quatro tipos “puros” que se combinam numa mistura altamente dependente do contexto: a autoridade do pai (que tem origem na autoria), a autoridade do chefe (que tem origem na hierarquia), a autoridade do mestre (que tem origem na sabedoria) e a autoridade do juiz (que tem origem na idéia de justiça). Cada um dos tipos corresponde a um espaço, a um tempo, a uma forma de atuação. A autoridade do pai é similar à do autor sobre sua obra, à dos mais velhos sobre os mais jovens, à da tradição sobre a inovação, à do passado sobre o presente. A autoridade do chefe, do superior hierárquico, está diretamente relacionada à realização efetiva da ação que se intenta, e seu tempo é o presente: em algum momento, é necessário decidir, dar a ordem de marcha, dizer “é agora!”. A autoridade do mestre é similar à do professor sobre o aluno, à de quem é capaz de antecipar, de projetar o futuro, à do condutor sobre o conduzido: uma das dimensões da Educação é justamente a associada ao verbo latino ducere, que significa conduzir. A autoridade do juiz é a do árbitro, a de quem conhece as leis, acredita na justiça como um valor maior e é capaz de situar-se acima dos interesses pessoais dos envolvidos: sua perspectiva temporal não é a do imediatismo do chefe, nem a do passado (pai), nem a do futuro (mestre), mas a da eternidade, a da permanência dos valores.
13. Responsabilidade, julgamento
Como se pode depreender, as ações do pai, do mestre, do chefe, do juiz são sempre fundadas em uma configuração e uma hierarquia de valores. Como nos lembra Steiner, em sentido próprio, não pode haver valor sem hierarquia. E em qualquer forma de manifestação de autoridade, em qualquer combinação das componentes básicas, transparece com nitidez a absoluta vinculação entre a autoridade e a responsabilidade. Assumem responsabilidades os pais, que “criam” os filhos como pessoas; os chefes, que coordenam a diversidade de ações pessoais e conduzem as ações coletivas; os mestres, que não podem ter projetos pelos discípulos, mas que alimentam e orientam os projetos dos outros; e os juízes, aos quais compete julgar processos, isentos de interesses pessoais e alicerçados apenas numa idéia profunda e atemporal de justiça, proferindo juízos de valor que decidem os cursos das ações. O princípio simétrico, aparentemente correto, de que não devemos julgar para também não sermos julgados, é plenamente válido apenas quando não se exerce qualquer tipo de autoridade, quando não se assume qualquer responsabilidade pelas ações dos outros. Essa linha de argumentação é examinada e desenvolvida até as últimas conseqüências por Hannah Arendt, em seu fundamental livro Responsabilidade e julgamento.
14. Resposta, dádiva
Antes de prosseguir, retornemos rapidamente ao início de nosso percurso. Já vimos que, em termos humanos, cada ação está associada a uma resposta, que lhe “co-responde”, e que pode transcender em muito – e em geral transcende – as características de mera reação. A resposta a uma ação inclui o germe de uma nova ação, de um novo princípio, de uma outra iniciativa. Ao automatismo do encadeamento ação-reação-reação-reação…, em que a criação restringe-se ao movimento inicial, contrapõe-se o fluxo vital de ação-resposta/ação-resposta/ação…, em que uma nova palavra de ordem torna-se fundamental: a interação. Por interação entendemos toda troca afetiva, verbal, corporal, simbólica, que resulta dos laços sociais ou visa a construí-los. Trata-se de um evento essencialmente assimétrico, que alterna continuamente os componentes da relação hierárquica que se estabelece entre os agentes. A interação é condição de possibilidade de agirmos juntos com os outros, de vivenciarmos uma coação legítima, associada ao exercício de uma autoridade. A autoridade é exercida de modo naturalmente assimétrico, ainda que vise a ordenar os espaços e os tempos para viabilizar a simetria nas relações interpessoais. Algo similar ocorre no fenômeno da dádiva, da doação, que é localmente assimétrica, em cada ocorrência, mas que viabiliza a inserção em uma teia de relações sociais que conduz a uma simetria, ou a um equilíbrio global.
15. Dádiva, assimetria
A dádiva é um fenômeno extremamente interessante para a observação do lugar da assimetria nas relações sociais. No âmbito do mercado, a circulação de valores baseia-se na troca simétrica de equivalentes, não semeando, em princípio, qualquer laço social entre os que dela participam. Algo muito distinto ocorre com a circulação dadivosa. O ato de dar é sempre uma manifestação de superioridade do doador, enquanto o recebedor situa-se em posição de inferioridade. Aquele que recebe um presente, diz: “obrigado”, ou seja, “sinto-me obrigado em relação a você”; ao mesmo tempo em que o doador retruca: “de nada”, ou seja, “não se sinta obrigado a coisa alguma”, fechando o ciclo da expressão de generosidade, que cria o laço social. Naturalmente, a aceitação da dádiva gera o imperativo da retribuição, na ocorrência da circunstância adequada, para restabelecer o equilíbrio nas relações. Tal retribuição, no entanto, não pode ter as características de uma reação, simétrica em relação ao gesto doador inicial, o que anularia o efeito da ação dadivosa. É fundamental a dissimulação generosa, o tempo e a circunstância adequados para caracterizar a retribuição como uma nova ação. Também é importante lembrar que a retribuição não precisa ser – e em geral não é – tópica, localizada, podendo, em vez disso, instaurar uma rede de relações amistosas em que cada um dá a vários e recebe de muitos. Numa perspectiva abrangente, a circulação dadivosa conduz a um equilíbrio global, a uma espécie de simetria nos fluxos de doação e recepção.
16. Dádiva, conhecimento
Duas situações parecem especialmente adequadas para caracterizar a assimetria na circulação dadivosa: a produção/circulação do conhecimento e o cultivo das relações de civilidade. Existem muitas razões que tornam o tratamento do conhecimento dentro dos estritos limites da simetria do mercado absolutamente inviável. Não se trata de limitações éticas, ou de exigências formais, mas de questões de ordem prática. Porque o conhecimento é um “bem” de que não se pode falar em estoque; é um “material” que quanto mais usamos, mais novo fica; é um “produto” que podemos dar, vender ou trocar sem ficar sem ele; é uma “riqueza” pela qual podemos competir (com + petere), ou seja, pedir juntamente com os outros, sem a má consciência decorrente das competições por bens materiais, como um pote de ouro, em que para alguém ficar com é preciso que alguém fique sem… Por mais que o conhecimento possa ser negociado, comprado ou vendido em transações comerciais, como pagamento de direitos autorais, por exemplo, a produção/transmissão/circulação do conhecimento sempre apresentará as características de uma doação, de uma dádiva. Sem a consideração de tal dimensão, é virtualmente impossível compreender a natureza das relações entre professores e alunos, entre orientadores e orientandos, e, de modo geral, toda a rede de motivações que caracteriza o funcionamento da Educação. Ainda que existam elementos de simetria na relação professor-aluno, no que tange, por exemplo, à necessidade do diálogo, da argumentação, da sensibilização para a percepção de relações significativas, numa perspectiva global, a relação professor-aluno é certamente assimétrica.
17. Dádiva, civilidade
No caso do cultivo das relações de civilidade, que constituem os micro-laços na construção do tecido social, também é marcante a assimetria existente. A cordialidade, os cumprimentos, as pequenas gentilezas, a generosidade nas filas ou no trânsito etc. são exemplos de tais relações, que constituem uma verdadeira “etiqueta”, no sentido de uma “micro-ética”, ou ainda, uma condição vestibular para o ingresso no terreno dos valores, para a Ética em sentido estrito. Em tais ações, a iniciativa é absolutamente fundamental: nos cumprimentos, por exemplo, ela desarma os espíritos, em situações de animosidade, abrindo as portas para uma interação amistosa. A generosidade é sempre manifestação de superioridade, ao mesmo tempo em que oferece espaços para a retribuição, que somente re-equilibra os laços se vai muito além da mera reação, constituindo uma resposta, uma nova ação, um novo ponto de partida na construção dos laços sociais. Em circunstâncias adequadas, ceder o lugar na fila, oferecer a vez no uso da palavra, dar a passagem no trânsito constituem gestos singelos, pequenas ações impregnadas de assimetria que semeiam aquilo que para Kant era o único valor absoluto: a boa vontade. Por outro lado, a irritação com atitudes agressivas de motoristas grosseiros, ou ainda a busca de revide, ou de se re-equilibrar localmente da injustiça de que se foi vítima, ainda que cobertas de razões do ponto de vista das reações animais, constituem uma expectativa de simetria absolutamente indevida, que somente pode conduzir à Lei de Talião: olho por olho, dente por dente, o que é certamente insuficiente para fundar uma Ética.
18. Religião, simetria
Ingressemos, então, no terreno da Ética, que pretendemos demonstrar ser, ainda que não o pareça, um lugar da assimetria por excelência. De fato, em quase todas as tradições religiosas, encontramos um princípio fundador que pode ser facilmente associado à idéia de simetria. No confucionismo, estabelece-se que
Aquilo que não desejas para ti,não desejasnão desejas para ti, para naçam, não o faças também aos outros;
no Islamismo, encontramos a máxima
Nenhum de vós é um crente enquanto não deseja para seu irmão o que deseja para si mesmo;
no Hinduísmo,registra-se que
Não devemos nos comportar em relação aos outros de uma maneira que para nós é desagradável; esta é a essência da moral;
um dos ensinamentos do Budismo é expresso pelo princípio
Uma situação que não é agradável ou satisfatória para mim, também não há de sê-lo para o outro;
nos ensinamentos de Cristo, estão presentes exortações à ação do tipo
Tudo o que desejais que os homens vos façam, fazei vós a eles;
Ama o próximo como a vós mesmos;
Perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido;
e assim por diante. Em todos os preceitos citados, transparece uma expectativa de condicionamento, de simetria nas ações intentadas. Mas a situação não é tão simples assim.
19. Religião, assimetria
No próprio terreno religioso é possível encontrar-se registros que parecem sugerir o oposto das perspectivas anteriormente referidas. Também constituem máximas cristãs os seguintes preceitos
Se amais os que vos amam, que gratidão mereceis? … Amai os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai sem nada esperar em compensação;
ou ainda,
A quem te bate numa face, oferece ainda a outra. A quem te toma o manto, não recuses também a tua túnica. Dá a quem te peça, e a quem te toma o teu bem, não o reclames.
Tais princípios, no entanto, constituem verdadeiras derivações para o terreno da dádiva, da graça, da não-reação, da assimetria. De modo geral, toda expectativa de simetria expressa anteriormente parece situar-se apenas na ante-sala da busca de uma resposta adequada aos efeitos de uma ação que se sofre, ou de que se é paciente. Não se trata de um elogio das reações automáticas, carentes de consciência, dentro dos limites da atuação dos animais. Os preceitos simétricos apenas preparam o terreno para o nascimento de uma ação consciente, refletida, para uma verdadeira ação criadora, ou uma nova iniciação, que não pode se limitar ao mimetismo de uma simples reação.
20. Simetria, assimetria
Para corroborar tal afirmação, observemos que dois dos preceitos aparentemente contraditórios citados anteriormente foram extraídos do mesmo texto religioso – o Evangelho segundo São Lucas. De fato, em Lucas (6, 31), encontramos
Tudo o que desejais que os homens vos façam, fazei vós a eles;
já em Lucas (6, 32-37), como a prevenir uma interpretação simplesmente reativa do preceito anterior, a complementação necessária é registrada:
Se amais os que vos amam, que gratidão mereceis? Até os pecadores emprestam aos pecadores para que lhes restituam o equivalente. Mas amai os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai sem nada esperar em compensação. Então a vossa recompensa será grande, e vós sereis filhos do Altíssimo, pois ele é bom para os ingratos e para os maus. Podemos perceber, então, que a meta final situa-se muito além da simetria. A mensagem subjacente é que, assim como os pecadores são amados – assimétrica e generosamente – por Deus, nós também devemos amar o próximo, como a nós mesmos, como nós mesmos gostaríamos de ser amados. Uma interpretação análoga pode ser dada ao fragmento da oração cristã do Pai-Nosso, anteriormente referida. O pedido a Deus para perdoar as nossas ofensas assim como nós perdoamos aqueles que nos têm ofendido não traduz a simetria sugerida pela primeira leitura, mas sim uma assimetria radical: Deus nos perdoa – generosa e assimetricamente – porque é bom; assim como ele, nós também devemos perdoar – generosa e assimetricamente – nossos semelhantes.
21. Ética, Religião
O terreno religioso é especialmente complexo no que se refere ao par simetria-assimetria. Toda religião tem como ponto de partida princípios dogmáticos a partir dos quais é possível fundar uma Ética; entretanto, a opção inicial – a fé – é certamente uma ação assimétrica, não-racional, da qual decorre uma racionalização da vida. Toda simetria que resultaria do cumprimento rigoroso dos preceitos doutrinários teria em sua origem, portanto, uma assimetria radical, resultante da fé. Além disso, se agirmos corretamente na relação com os outros, se fizermos o bem em razão de uma estrita obediência aos preceitos religiosos apenas pelo temor da resposta divina, se não existir um espaço mínimo de liberdade para um exercício efetivo da consciência, então não se poderá falar propriamente em Moral ou em Ética, mas apenas em submissão ou em medo. A grande questão que subjaz, no entanto, é a da possibilidade da fundação de uma Ética sem recurso à Religião. Nesse deslizamento da Religião para a Filosofia, sobressai o pensamento de Immanuel Kant.
22. Kant, simetria
Em sua Fundamentação para a metafísica dos costumes, Kant formulou as duas premissas básicas para fundar uma Ética. A primeira delas é o imperativo categórico conhecido como a Regra de Ouro: Age apenas segundo a máxima que faz com que possas querer, ao mesmo tempo, que ela se torne uma lei universal. Em outras palavras, nossa ação é legítima apenas na condição de poder ser universalizável: se todos quiserem agir como nós, nada há a reclamar. Trata-se de um princípio operacional que visa à regulação da ação de modo geral, sem adentrar o conteúdo específico da mesma. Ele pressupõe uma simetria que, dependendo do modo como se analisa, pode até representar uma desconsideração da infinita diversidade das pessoas, que abrigam uma imensa variedade nos desejos, na amplitude dos projetos. A abstração da hipótese de “se todos agissem igual a mim, nada teria a contestar” chega mesmo a tangenciar uma sutil manifestação de intolerância, do mesmo tipo daquela representada pela ação de um pai que dá a um filho um presente que ele, o pai, gostaria de ter recebido, quando criança… A esse respeito, numa de suas mais inspiradas boutades, Bernard Shaw afirmou, certa vez: Não faça aos outros aquilo que gostarias que fizessem a ti; eles são diferentes de ti e podem não gostar…
23. Kant, assimetria
A segunda premissa kantiana, tal como a segunda parte do trecho anteriormente citado do Evangelho de São Lucas, recoloca a assimetria no cenário: Age de tal maneira que trates a humanidade tanto em tua pessoa quanto na pessoa de qualquer outro ao mesmo tempo como fim e jamais simplesmente como um meio. De fato, tratar uma pessoa como meio para se atingir um fim exterior a ela é verdadeiramente abominável em todos os contextos, da subserviência à prostituição. Parece inimaginável fundar uma Ética na qual o ser humano, a pessoa não seja o valor maior, o fim supremo para cuja realização devem convergir todos os meios. Em Desenvolvimento como liberdade, Amartya Sen, um economista indiano que ganhou o Prêmio Nobel em 1998, argumenta competentemente para demonstrar que o problema fundamental da economia mundial, que ele considera definitivamente atrelada à Ética, é o fato de que o desenvolvimento econômico, que deveria ser um meio para a promoção da liberdade das pessoas, tornou-se um fim em si mesmo. E transformar as pessoas apenas em meio para promover o desenvolvimento é tão aceitável quanto o seria dizimar a metade da população de um país, tendo em vista dobrar o PIB per capita… Se as pessoas não são o fundamento último de todos os valores, estão criadas as condições suficientes para o florescimento da escravidão. Afinal, para Aristóteles, escravo era aquele que não tinha projetos, constituindo apenas um meio para a realização dos projetos dos outros.
24. Habermas, fé
Em tempos mais recentes, uma nova leitura dos princípios kantianos é oferecida nos trabalhos de K. O. Appel e, sobretudo, de Jürgen Habermas. O fundamento da Ética Discursiva é um princípio similar ao imperativo categórico, matizado pela confiança na força da palavra, na idéia de ação em seu sentido mais fecundo – a ação comunicativa. Segundo Habermas, as normas válidas, a serem seguidas por todos, devem ser objeto de um consenso, resultante de uma prática discursiva em que vigore uma situação ideal de fala: a todos é dada a palavra, sem formatações desmedidas, e a racionalidade argumentativa, aliada com a sinceridade de propósitos na busca da verdade encarregar-se-á do resto. O critério de universalização das normas – chamado de Princípio U – é expresso pela seguinte proposição: Todas as normas válidas precisam atender à condição de que as conseqüências e efeitos colaterais que presumivelmente resultarão da observância geral dessas normas para a satisfação dos interesses de cada indivíduo possam ser aceitas não coercitivamente por todos os envolvidos. Em vez de se pretender a possibilidade de universalização da ação de cada pessoa, busca-se agora o acordo, ou a aceitação cordial por todos os envolvidos das ações intentadas. Não parecem existir registros, na história da humanidade de períodos ou circunstâncias em que tais condições ou procedimentos tenham vigorado. Certamente, a aceitação do Princípio U envolve uma fé, talvez infinita, na humanidade do homem. O que pode não constituir um problema, mas sim um caminho para a solução dos problemas humanos, como examinaremos a seguir.
25. Habermas, lacunas
O imperativo habermasiano apresenta um leque muito amplo de questões diretamente associadas ao tema da simetria-assimetria nas ações humanas. Em relação à formulação kantiana, duas observações parecem imediatas: em primeiro lugar, a expectativa de simetria do primeiro princípio kantiano é matizada pela consideração das diferenças pessoais, que deveriam ser vivenciadas e administradas por meio de uma argumentação sincera e competente; em segundo lugar, a explicitação da assimetria do segundo princípio kantiano, ao situar a pessoa como o valor fim de todos os valores, permanece tácita na formulação habermasiana. De fato, a busca do acordo por meio do discurso repousa, em última instância, na esperança na boa-vontade humana, o que nos faz recair em Kant, para quem tal valor – a boa-vontade – era o único bem absolutamente exigível para todos os que se pautam por um agir ético. Assim, se por um lado, Habermas supostamente eliminou o mínimo resquício de intolerância presente na universalização kantiana, por outro lado, ele prudentemente silenciou na explicitação da pessoa como o valor fim de todos os valores, evitando imiscuir-se em temas como a caracterização da natureza humana, ou em questões como a do papel da liderança na busca dos almejados consensos. Em Habermas, a confiança na força da palavra é, a um tempo, admirável e tímida: admirável pela força que confere à idéia de ação comunicativa, que enriquece e atualiza as fecundas elaborações de Hannah Arendt em A condição humana; tímida, na medida em que não adentra o terreno verdadeiramente delicado da natureza humana do enunciador, das motivações maiores da enunciação, da aparentemente inevitável referência à transcendência em todos os que se debruçam sobre o significado da vida em sentido humano.
26. Habermas, valores
A confiança na força da palavra escrita fez com que Habermas dedicasse grande parte de sua obra à busca da construção de um arcabouço internacional de normas e tribunais que coagissem legitimamente as nações, na busca de uma paz mundial. Inspirado, talvez, no sucesso da Declaração Universal dos Direitos Humanos, um documento fundamental na regulação das relações sociais, na fixação das condições mínimas de igualdade no exercício da cidadania, necessárias para a vivência da infinita diferença em termos de relações pessoais, Habermas busca estabelecer condições similares, nas relações internacionais, para que as “pessoas coletivas” que as nações representam vivenciem sua diversidade sem abrirem as portas para os encadeamentos reativos sem fim, que apenas alimentam e disseminam a violência. Ainda que seu trabalho possa ser interpretado dessa forma, no referencial teórico habermasiano são raros e tópicos os registros e reflexões sobre a idéia de pessoa e praticamente inexistem referências à natureza humana ou ao sentido da vida. Toda a simetria que emerge de seu Princípio U decorre dessa limitação ao terreno dos meios das ações – comunicação, diálogo, argumentação em busca de consensos. Uma reflexão sobre os valores norteadores, sobre os fins a serem perseguidos, sobre a centralidade da noção de pessoa recolocaria a assimetria inevitavelmente no cenário, uma vez que ela parece inerente a tais questões.
27. Pessoalidade, assimetria
Chegamos, então ao ponto que parece crucial, quando se trata da fundamentação da Ética: a idéia de pessoa. Nossas ações nos caracterizam como pessoa. A sociedade consiste em um vasto sistema de distribuição de papéis e constituímo-nos como pessoas representando papéis em diferentes âmbitos, em múltiplos contextos: na família, no trabalho, na política etc. As ações que realizamos no desempenho de tais papéis nos caracterizam como pessoas. Somos, ao mesmo tempo, atores e autores da peça que representamos. A consciência pessoal, que nos torna humanos, consiste, simultaneamente, em memória e projeto. É a memória que possibilita a construção da narrativa pessoal, de nossa história de vida; e são os projetos em que nos lançamos, no cenário de valores que nos orienta, que nos mantêm vivos. É o par memória/projeto que nos insere no tempo: somos seres humanos no tempo, enquanto construímos nossa história, e se não temos projetos, nada somos; Heidegger, em Ser e Tempo, e Sartre, em O Ser e o Nada levaram tais asserções até as últimas conseqüências. Na vivência das ações, a diversidade é a regra, a diferença é o tônus vital, a assimetria é o princípio básico. A personalidade – que é a plena realização da pessoalidade – é um dever, é um imperativo do caráter. Assumir a responsabilidade pelas suas ações, ser fiel a si mesmo, transformar-se sem perder o rumo, mantendo-se fiel a si mesmo, atender a sua vocação, respondendo a seu destino são imperativos categóricos da pessoalidade. A esse respeito, Nicolai Hartmann chegou mesmo a subverter o imperativo kantiano, propondo sua imagem invertida: Age de maneira que a máxima que conduz a tua ação não possa converter-se em lei universal de conduta. Porque, como pessoas, não buscamos as mesmas metas, não partilhamos a mesma configuração de valores, não constituímos uma massa indiferenciada de animais. A simetria da igualdade como cidadãos é complementada e enriquecida pela necessária assimetria de nossas diferenças como pessoas.
28. Ciência, simetria
Como se evidenciou desde o início, a simetria de princípios como o da ação e reação pode ser suficiente para fundar a ciência, irradiando pressuposições de equivalência a partir da dinâmica das trocas de quantidade de movimento entre partículas “individuais”, sem a consciência inerente à pessoa humana. Pode ser adequada para explicar o funcionamento da economia, em que a troca de equivalentes é o motor da circulação de bens. No âmbito do próprio mercado, no entanto, hipóteses tácitas sobre a motivação das ações humanas (egoísmo, maximização da utilidade ou do prazer etc.) a importância da circulação dadivosa nunca foi desprezada, ainda que de forma dissimulada ou corrompida (Dia dos Pais, Dia das Mães, Cartões de Fidelidade etc). Já no que se refere à Ética, a assimetria da construção pessoal é absolutamente fundamental, e os princípios científicos limitados a cadeias de ações/reações, estímulos/respostas (aqui entendidas como meras reações) rapidamente revelam suas limitações. Como bem frisou Wittgenstein em uma célebre conferência sobre o tema, a Ética, na medida em surge do desejo de dizer algo sobre o sentido último da vida, sobre o absolutamente bom, o absolutamente valioso, não pode ser uma ciência. Ao pretender traduzir todo o conhecimento em linguagem científica, ou se atende ao aforismo wittgensteiniano (O que não se pode falar, deve-se calar), ou então adentra-se o terreno minado do cientificismo (ou cientismo), que, simetricamente, não passa de uma reação arrogante da ciência contra sua imagem especular, originada em ações dos que filosofam ignorando o conhecimento científico.
29. Ética, responsabilidade
Um dos indícios mais notáveis do cientismo são certas ilações associadas ao pensamento de Darwin, como se a idéia de adaptação homem/meio constituísse um vetor com origem no meio: ao homem caberia adaptar-se ao ambiente, ou não sobreviveria. Nada parece mais falso. Continuamente, ao longo da História, o que se observa é uma relação homem/meio muito mais próxima do vetor com o sentido inverso do pretendido pelos darwinistas, ou seja, o meio é que se transforma para adaptar-se aos projetos e aos valores do ser humano. Não se trata de negar as influências do meio sobre o homem, mas sim de assumir a imensa responsabilidade que nos cabe pelas transformações que impomos ao meio ambiente. No âmbito da Biologia, Hans Jonas tem sido uma voz importante a clamar por uma carta de princípios ecológicos que tentam fundamentar a chamada Ética da Responsabilidade. Em sintonia com Jonas, mas transcendendo em muito uma perspectiva apenas biológica, conjuminando de modo fecundo a Religião e a Filosofia, Hans Küng aposta todas as fichas em sua Ética Global, também fundada em um princípio de responsabilidade. O fato é que a idéia de responsabilidade nos remete imediatamente à de resposta: não existe Ética sem liberdade de ação, e o dever implícito de responder pelos nossos atos.
30. Liberdade, responsabilidade
Uma história relatada pelo jornalista Heródoto Barbeiro pode servir de mote para nossa conclusão. Certa vez, um Tribunal de um estado americano recebeu uma consulta de um interessado solicitando autorização para criar um site para pôr em circulação idéias sobre pedofilia e temas afins; o Tribunal respondeu autorizando a criação. Tão logo o interessado pôs o site na rede, veio a Polícia e o prendeu. Ao argumentar que tinha a autorização do Tribunal para editar o site, recebeu a informação óbvia: a liberdade de expressão lhe é concedida pela lei; mas assumir a responsabilidade pelos seus atos também é determinado por ela. Infelizmente, são muito freqüentes episódios do tipo citado, sobretudo envolvendo questões religiosas. Uma charge satirizando uma divindade, ou uma autoridade religiosa pode dar margens a reações – aparentemente desproporcionais mas essencialmente simétricas -, em que a eclosão da violência culmina com o sacrifício da dádiva mais preciosa: a vida humana. Existem problemas a serem equacionados, nesses casos, tanto na ação inicial quanto na reação simétrica. A ação pode parecer ingênua, desprovida de intenções agressivas, mas a intolerância e o desrespeito são recíprocos, são absolutamente simétricos. O verbo latino respícere, do qual se origina respeitar, significa ver com atenção, examinar, velar por, proteger. Respeitar não é apenas ver, é voltar os olhos para o outro, ponderar, sentir-se responsável, sentir em si as dores do outro, sentir junto com o outro, que é sentido próprio da com-paixão. As dores do mundo são nossas dores, ainda que não as tenhamos provocado pela nossa ação direta. Todo respeito é assimétrico. Se somente respeitamos aquele que nos respeita, então não o respeitamos verdadeiramente, apenas negociamos com ele uma trégua, um equilíbrio sempre precário entre duas ações desrespeitosas. Afinal, a paz não é a ausência de guerra, mas sim a vivência da justiça e do respeito mútuo.
31. Ética, assimetria A Ética situa-se, pois, muito além das leis científicas ou das normas jurídicas, incluindo valores fundamentais na constituição da pessoalidade como a integridade e a fraternidade, ou o amor ao próximo. Valores como esses traduzem assimetrias radicais, nem sempre suficientemente explicitadas: se a justiça pode pretender a igualdade, a simetria (Todos são iguais perante a lei), a fraternidade é essencialmente assimétrica, como o são o amor, o cumprimento do dever e a prática do bem. Fazer o bem e não olhar a quem é uma máxima popular que traduz fielmente a assimetria inerente a uma ação humana eticamente defensável. Cumprir com os deveres associados aos correspondentes direitos, resultantes de normas legítimas é apenas uma parte das nossas obrigações, e é justamente a parte reativa. Existem deveres, no entanto, que não decorrem de direitos, que estão associados a uma idéia de pessoa – um valor fim em si mesmo – e uma concepção de natureza humana. O reconhecimento pessoal de tais deveres, independentemente de os outros o fazerem, constitui uma condição de possibilidade de fundação de uma Ética.
32. Ética,fé A ação humana eticamente fundada decorre, portanto, de um ato de fé. Explícita ou tacitamente, a confiança na potencialidade do ser humano constitui uma verdadeira fé, que é difícil de caracterizar, que certamente é distinta da fé religiosa, mas que é igualmente dogmática. Não nos é permitido duvidar de tal pressuposto, sob pena de abrirmos as portas para radicalismos e desequilíbrios de vários matizes, que nos afastam irremediavelmente do terreno do humanismo, fundado da autonomia e na autoridade da pessoa. Nenhuma Ética sobrevive se não se enraíza nesse terreno. A desconfiança na força da palavra, a anarquia, os niilismos de todas as estirpes sempre constituirão um luxo de minorias, uma agressão inaceitável aos imperativos kantianos, o que abre, inexoravelmente, as portas para a emergência da violência. Crer no ser humano e na ação, ou no casamento indissolúvel entre o fazer e a palavra, é o resultado de uma decisão incondicional e assimétrica, ainda que o mundo inteiro esteja em chamas.
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Matemática nas Eleições: significado do Teorema de Arrow
Nílson José Machado
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Roteiro/QUESTÕES
I – Democracia é sinônimo de regra da maioria?
II – Quem vota?
III – O que significa um voto?
IV – Contar os votos basta?
IV – Como Sistemas eleitorais funcionam?
V – Teorema de Arrow
EXCERTOS/ANEXOS/Bibliografia
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- Democracia e eleições
Diz-se que “a democracia é o pior dos regimes, excetuando-se todos os outros”. As eleições são a marca da democracia. Os eleitores votam em um candidato, de um elenco X, Y, Z… Na escolha do vencedor, diversos critérios podem ser acordados. Um sistema eleitoral é o elenco de critérios considerados justos para definir o candidato eleito. Um critério que associa o conjunto dos votos individuais a uma escolha coletiva é chamado Função de Bem-Estar Social.
Kenneth Arrow (Nobel de Economia/1972) construiu um conjunto mínimo de exigências consideradas razoáveis para uma tal função. Surpreendentemente, demonstrou, em 1951, um teorema segundo o qual, simplificadamente, não existem funções que satisfaçam simultaneamente os critérios desejáveis, ou seja, não existem sistemas eleitorais perfeitos.
O Teorema da Impossibilidade (Arrow) é tão intrigante quanto o Teorema da Indecidibilidade (Gödel) ou o Princípio da Incerteza (Heisenberg).
Compreendê-lo é fundamental para a compreensão do funcionamento da democracia.
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2 – Eleições e Maioria
É comum associar-se eleições à regra da maioria, mas isso seria natural apenas em embates com apenas dois candidatos, em universo de eleitores em que cada cabeça é um voto.
Se há mais do que dois candidatos, a situação é mais complexa; o mais votado pode ter menos votos que a maioria. Por outro lado, há situações em que os votantes têm diferentes pesos, sem que isso configure um procedimento antidemocrático. O Presidente dos EUA é eleito em um Colégio de Delegados, representantes dos Estados da união. Cada Estado tem um número de delegados correspondente a seu peso político. O candidato mais votado no Estado fica com a totalidade de votos dos delegados do Estado. Assim, os Estados são os verdadeiros eleitores, e eles têm diferentes pesos no processo.
Mesmo em eleições majoritárias regidas pela regra da maioria, os cargos mais importantes na gestão do Estado – os de Ministros, por exemplo – são preenchidos, ou deveriam sê-lo, com base na competência técnica e não pela regra da maioria.
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3 – Significado do Voto
Na escolha de um entre dois candidatos, o significado do voto como expressão da preferência pessoal é simples e a regra da maioria resolve. Quando há mais que dois candidatos, escolher um e ignorar os outros empobrece o significado da eleição. Para ser justo, seria necessário examinar todos os candidatos e ordená-los segundo nossa preferência. Se concorrem A, B, C e D, por exemplo, um voto seria um quarteto ordenado CBAD: o candidato C é o preferido, seguido do B, do A e do D.
Existem sistemas eleitorais, em uso em diversos países, em que votar significa ordenar os candidatos. Naturalmente, a apuração dos resultados torna-se mais complexa. Diferentes critérios, todos com alto grau de plausibilidade e aparência de justiça, podem conduzir a diferentes ganhadores das eleições. Um dos mais simples é o seguinte: o primeiro lugar no voto ganha 3 pontos, o segundo, 2, o terceiro, 1 e o quarto, 0. Seria algo parecido com a pontuação dos pilotos na Fórmula 1. É insólito, mas não parece injusto.
4 – Democracia e sistemas eleitorais
Um sistema eleitoral é uma regra que associa um conjunto de votos de um universo de eleitores a um candidato vencedor. Se cada cabeça é um voto, e há mais do que dois candidatos, a regra da maioria não dá conta da escolha.
Se cada voto é uma ordenação dos candidatos, existem diferentes sistemas que conduzem do conjunto das ordenações ao resultado da eleição. Um dos mais considerados é o seguinte: verifica-se o candidato menos votado em primeiro lugar, que é eliminado; os votos são, então, reordenados, sem o tal candidato; verifica-se novamente o candidato menos votado em primeiro lugar, que é eliminado; prosseguindo-se assim, chega-se ao confronto direto de apenas dois candidatos, que é decidido pela regra da maioria.
Outro sistema, similar ao anterior, e que parece igualmente justo, é o de eliminações sucessivas do candidato mais votado em último lugar. É desconcertante, no entanto, o fato de que, em situações específicas, os dois sistemas descritos podem conduzir a diferentes eleitos.
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5 – Democracia: Teorema de Arrow
Algumas características parecem desejáveis a todos os sistemas eleitorais: universalidade, independência das alternativas, unanimidade e ausência de ditadores são quatro delas.
Universalidade significa que todas as ordenações possíveis dos candidatos são votos aceitáveis. Independência das alternativas quer dizer que a preferência entre dois candidatos A e B não depende da participação ou não na eleição de outro candidato. A unanimidade quer dizer que, se em todos os votos, A está à frente de B, então no resultado final, A deve estar à frente de B. E a ausência de ditadores é a garantia de que não existe um eleitor (ditador) que, sozinho, com sua ordenação, determine o resultado da eleição.
Em 1951, o economista Kenneth Arrow publicou um texto (Social Choice and Individual Values) que o levaria a ganhar o Prêmio Nobel de Economia. Nele demonstrou o seguinte teorema: não existe sistema eleitoral que apresente simultaneamente as quatro qualidades supracitadas.
É, no mínimo, desconcertante.
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6. Democracia: Arrow e Popper
O avanço da ciência por meio da construção de sistemas formais cada vez mais abrangentes, consistentes e completos, foi um sonho que durou até Gödel, no início dos anos 1930: as limitações intrínsecas aos formalismos são, hoje, amplamente conhecidas. Popper já nos alertara, em seu conhecimento objetivo, que teorias formais nunca podem ser rotuladas como verdadeiras: são sobreviventes ao falseamento a que a realidade continuamente as expõe. Passado o abalo inicial, tais fatos foram assimilados e a ciência continuou a prosperar.
Ao anunciar os limites inerentes aos sistemas eleitorais de diferentes estirpes, Arrow provocou um abalo semelhante, mas que não pode significar uma diminuição na importância da democracia. Descrer da democracia pode ser apenas estimulante provocação. À moda da falseabilidade popperiana, a democracia é melhor de todos os sistemas, pois é o único que permite a correção de erros circunstanciais e inevitáveis nas escolhas de maneira pacífica, por meio das eleições.
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EXCERTOS
- Democracia e Regra da Maioria: BOBBIO
“A Regra da Maioria não é exclusiva dos sistemas democráticos, nem as decisões em tais sistemas são tomadas exclusivamente mediante tal regra… Esta errônea identificação deriva de uma interpretação equivocada da definição clássica da democracia como governo da maioria… A maioria indica quantos governam e não como governam. … O que caracteriza um sistema político democrático não é o princípio da maioria, mas sim o sufrágio universal. … Desafortunadamente, com muita frequência, as maiorias não se compõem dos mais livres, mas sim dos mais conformistas.”
“Ao falar dos limites de aplicação da regra da maioria, entende-se os limites que derivam da existência de matérias às quais tal regra não se aplica… São matérias em que a tomada de decisões confiada à regra do maior número apareceria como inoportuna, não adequada a seu fim, ou inclusive injusta. … Os valores, os princípios, os postulados éticos e naturalmente também os direitos fundamentais não estão sujeitos a opinião, nem são negociáveis. … Também escapam a seu escopo questões de natureza religiosa, científica, ou que envolvam a irreversibilidade. Podemos submeter a um referendo a escolha entre a monarquia e a república, mas não entre o cristianismo e o ateísmo…”
BOBBIO, Norberto – El filósofo y la política (Antología). México: Fondo de Cultura Económica, 1996
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2. O caso dos EUA
“Procura-se esconder (na Europa poderia parecer vergonhoso, caso conhecido), que a maioria dos cidadãos com direito a voto nos EUA não exercita tal direito. O mecanismo é simples. O título eleitoral não é entregue a cada um dos cidadãos, como acontece na Europa: os cidadãos é que devem tomar a iniciativa de requerê-lo, agindo como solicitante. E uma grande maioria não o faz…”
Luciano Canfora, em Crítica da Retórica Democrática, p. 28.
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3. O caso dos persas
… Têm o hábito (os persas) de deliberar sobre os negócios mais sérios depois de beberem muito; mas, no dia seguinte, o dono da casa onde estiverem reunidos traz novamente à baila a questão, antes de começarem a beber de novo. Se aprovam, ela passa; se não, abandonam o assunto. Às vezes, entretanto, dá-se o contrário: o que decidiram antes de beber passam a discutir novamente durante a embriaguez.
Heródoto (484-425 aC, Livro I Clio CXXXIII)
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4. Sistemas de Votação (FUNÇÕES DE BEM ESTAR SOCIAL)
MAIORIA
O vencedor será o candidato que tiver a maioria absoluta (50% + 1) dos votos.
PLURALIDADE
O vencedor será o candidato que tiver a maioria simples dos votos.
PONDERAÇÃO
Se o número de candidatos é igual a k, então, em cada voto, o primeiro lugar em cada ordenação tem k – 1 pontos, o segundo, k – 2 pontos, … o último, zero pontos; o vencedor será o candidato com o maior total de pontos. (Excetuando a diferença na pontuação, é o critério adotado na Fórmula 1.)
CONFRONTO DIRETO
Se um candidato ganhar o confronto direto com todos os outros, então ele será o vencedor.
ELIMINAÇÃO/PREFERÊNCIA
Após a votação/ordenação inicial, elimina-se o candidato com o menor número de 1ºs lugares, e reordenam-se os votos. Após a reordenação, elimina-se o candidato com o menor número de 1ºs lugares; e assim por diante, até o último sobrevivente, que será o vencedor.
*(Segundo Hodge e Klima, vale na Austrália, na Irlanda e na prefeitura de Londres)
ELIMINAÇÃO/REJEIÇÃO
Após a votação/ordenação inicial, elimina-se o candidato com o maior número de última colocação (mais rejeitado), e reordenam-se os votos. Após a reordenação, elimina-se o candidato mais rejeitado, e assim por diante, até o último sobrevivente, que será o vencedor.
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ANEXO
Um Exemplo: Candidatos A, B, C, D; 13 eleitores
PLURALIDADE MAIORIA
A | B | C | D | A | B | C | D | ||
1 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
2 | 2 | 3 | 1 | 4 | |||||
3 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
4 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
5 | 1 | 3 | 2 | 4 | |||||
6 | 3 | 1 | 4 | 2 | |||||
7 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
8 | 3 | 4 | 2 | 1 | |||||
9 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
10 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
11 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
12 | 2 | 1 | 3 | 4 | |||||
13 | 3 | 4 | 1 | 2 |
PONDERAÇÃO
A | B | C | D | A | B | C | D | ||
1 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
2 | 2 | 3 | 1 | 4 | |||||
3 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
4 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
5 | 1 | 3 | 2 | 4 | |||||
6 | 3 | 1 | 4 | 2 | |||||
7 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
8 | 3 | 4 | 2 | 1 | |||||
9 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
10 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
11 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
12 | 2 | 1 | 3 | 4 | |||||
13 | 3 | 4 | 1 | 2 |
REJEIÇÃO
A | B | C | D | A | B | C | D | ||
1 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
2 | 2 | 3 | 1 | 4 | |||||
3 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
4 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
5 | 1 | 3 | 2 | 4 | |||||
6 | 3 | 1 | 4 | 2 | |||||
7 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
8 | 3 | 4 | 2 | 1 | |||||
9 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
10 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
11 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
12 | 2 | 1 | 3 | 4 | |||||
13 | 3 | 4 | 1 | 2 |
PREFERÊNCIA
A | B | C | D | A | B | C | D | ||
1 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
2 | 2 | 3 | 1 | 4 | |||||
3 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
4 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
5 | 1 | 3 | 2 | 4 | |||||
6 | 3 | 1 | 4 | 2 | |||||
7 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
8 | 3 | 4 | 2 | 1 | |||||
9 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
10 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
11 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
12 | 2 | 1 | 3 | 4 | |||||
13 | 3 | 4 | 1 | 2 |
Pluralidade: Maioria: Ponderação: Rejeição: Preferência:
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Bibliografia
BOBBIO, Norberto – El filósofo y la política (Antología). México: Fondo de Cultura Económica, 1996.
BOBBIO, Norberto – El tercero ausente. Madrid: Cátedra, 1989.
BUCHANAN, James M., TULLOCK, Gordon – The Calculus of Consent – Logical Foundations of Constitucional Democracy. Indianapolis: Liberty Fund Inc., 2004.
CANFORA, Luciano – Crítica da Retórica Democrática. São Paulo: Estação Liberdade, 2007.
DAHL, Robert A. – Sobre a Democracia. Brasília: Editora UnB, 2009.
D´ALLONNES, M. R. – Pourquoi nous n’aimons pás La démocracie. Paris: Seuil, 2010.
ELIAS, Norbert – A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
EPSTEIN, Isaac – O paradoxo de Condorcet e a crise da democracia representativa. São Paulo: Estudos Avançados, V. 11, Nº 30 Maio-Agosto/1997.
HABERMAS, Jürgen – Facticidad y validez. Madrid: Trotta, 1998.
HERÓDOTO – História. Rio de Janeiro: EDIOURO, s/d.
HODGE, Jonathan K., KLIMA, Richard E. – The Mathematics of Voting and Elections: A Hands-On Approach. Rhode Island/EUA: American Mathematical Society, 2005.
KELSEN, Hans – Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
MORROW, John – History of Political Thought. London: Macmillan, 1998.
OAKESHOTT, Michael – El racionalismo en la política. México: Fondo de Cultura Económica, 2000.
ORTEGA Y GASSET, José – A rebelião das massas. Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1962.
ORTEGA Y GASSET, José – Obras Completas, v. 1 e 2. Madrid: Alianza, 1987.
PALLAZZI, F., FILIPPI, S. S. – El Libro de los 1000 sábios. Madrid: Editorial Dossat, 1984.
SARTORI, Giovanni – A Teoria da Democracia Revisitada. São Paulo: Ática, 1994.
THOREAU, Henry – Desobedecendo. São Paulo: Círculo do Livro, 1987.
VIVANTI, C. – Maioria/minoria. In: EINAUDI, V.22 Política, Tolerância, Intolerância. Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1996.
Universidade de São Paulo/Faculdade de Educação
EDM 5129 Tópicos de ÉTICA E EDUCAÇÃO 2º semestre/2017
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MATEMÁTICA DAS ELEIÇÕES: TEOREMA DE ARROW
Nílson José Machado
www.nilsonjosemachado.net
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Roteiro/QUESTÕES
I – Democracia é sinônimo de regra da maioria?
II – Quem vota?
III – O que significa um voto?
IV – Contar os votos basta?
IV – Como Sistemas eleitorais funcionam?
V – Teorema de Arrow
EXCERTOS/ANEXOS/Bibliografia
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- Democracia e eleições
Diz-se que “a democracia é o pior dos regimes, excetuando-se todos os outros”. As eleições são a marca da democracia. Os eleitores votam em um candidato, de um elenco X, Y, Z… Na escolha do vencedor, diversos critérios podem ser acordados. Um sistema eleitoral é o elenco de critérios considerados justos para definir o candidato eleito. Um critério que associa o conjunto dos votos individuais a uma escolha coletiva é chamado Função de Bem-Estar Social.
Kenneth Arrow (Nobel de Economia/1972) construiu um conjunto mínimo de exigências consideradas razoáveis para uma tal função. Surpreendentemente, demonstrou, em 1951, um teorema segundo o qual, simplificadamente, não existem funções que satisfaçam simultaneamente os critérios desejáveis, ou seja, não existem sistemas eleitorais perfeitos.
O Teorema da Impossibilidade (Arrow) é tão intrigante quanto o Teorema da Indecidibilidade (Gödel) ou o Princípio da Incerteza (Heisenberg).
Compreendê-lo é fundamental para a compreensão do funcionamento da democracia.
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2 – Eleições e Maioria
É comum associar-se eleições à regra da maioria, mas isso seria natural apenas em embates com apenas dois candidatos, em universo de eleitores em que cada cabeça é um voto.
Se há mais do que dois candidatos, a situação é mais complexa; o mais votado pode ter menos votos que a maioria. Por outro lado, há situações em que os votantes têm diferentes pesos, sem que isso configure um procedimento antidemocrático. O Presidente dos EUA é eleito em um Colégio de Delegados, representantes dos Estados da união. Cada Estado tem um número de delegados correspondente a seu peso político. O candidato mais votado no Estado fica com a totalidade de votos dos delegados do Estado. Assim, os Estados são os verdadeiros eleitores, e eles têm diferentes pesos no processo.
Mesmo em eleições majoritárias regidas pela regra da maioria, os cargos mais importantes na gestão do Estado – os de Ministros, por exemplo – são preenchidos, ou deveriam sê-lo, com base na competência técnica e não pela regra da maioria.
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3 – Significado do Voto
Na escolha de um entre dois candidatos, o significado do voto como expressão da preferência pessoal é simples e a regra da maioria resolve. Quando há mais que dois candidatos, escolher um e ignorar os outros empobrece o significado da eleição. Para ser justo, seria necessário examinar todos os candidatos e ordená-los segundo nossa preferência. Se concorrem A, B, C e D, por exemplo, um voto seria um quarteto ordenado CBAD: o candidato C é o preferido, seguido do B, do A e do D.
Existem sistemas eleitorais, em uso em diversos países, em que votar significa ordenar os candidatos. Naturalmente, a apuração dos resultados torna-se mais complexa. Diferentes critérios, todos com alto grau de plausibilidade e aparência de justiça, podem conduzir a diferentes ganhadores das eleições. Um dos mais simples é o seguinte: o primeiro lugar no voto ganha 3 pontos, o segundo, 2, o terceiro, 1 e o quarto, 0. Seria algo parecido com a pontuação dos pilotos na Fórmula 1. É insólito, mas não parece injusto.
4 – Democracia e sistemas eleitorais
Um sistema eleitoral é uma regra que associa um conjunto de votos de um universo de eleitores a um candidato vencedor. Se cada cabeça é um voto, e há mais do que dois candidatos, a regra da maioria não dá conta da escolha.
Se cada voto é uma ordenação dos candidatos, existem diferentes sistemas que conduzem do conjunto das ordenações ao resultado da eleição. Um dos mais considerados é o seguinte: verifica-se o candidato menos votado em primeiro lugar, que é eliminado; os votos são, então, reordenados, sem o tal candidato; verifica-se novamente o candidato menos votado em primeiro lugar, que é eliminado; prosseguindo-se assim, chega-se ao confronto direto de apenas dois candidatos, que é decidido pela regra da maioria.
Outro sistema, similar ao anterior, e que parece igualmente justo, é o de eliminações sucessivas do candidato mais votado em último lugar. É desconcertante, no entanto, o fato de que, em situações específicas, os dois sistemas descritos podem conduzir a diferentes eleitos.
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5 – Democracia: Teorema de Arrow
Algumas características parecem desejáveis a todos os sistemas eleitorais: universalidade, independência das alternativas, unanimidade e ausência de ditadores são quatro delas.
Universalidade significa que todas as ordenações possíveis dos candidatos são votos aceitáveis. Independência das alternativas quer dizer que a preferência entre dois candidatos A e B não depende da participação ou não na eleição de outro candidato. A unanimidade quer dizer que, se em todos os votos, A está à frente de B, então no resultado final, A deve estar à frente de B. E a ausência de ditadores é a garantia de que não existe um eleitor (ditador) que, sozinho, com sua ordenação, determine o resultado da eleição.
Em 1951, o economista Kenneth Arrow publicou um texto (Social Choice and Individual Values) que o levaria a ganhar o Prêmio Nobel de Economia. Nele demonstrou o seguinte teorema: não existe sistema eleitoral que apresente simultaneamente as quatro qualidades supracitadas.
É, no mínimo, desconcertante.
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6. Democracia: Arrow e Popper
O avanço da ciência por meio da construção de sistemas formais cada vez mais abrangentes, consistentes e completos, foi um sonho que durou até Gödel, no início dos anos 1930: as limitações intrínsecas aos formalismos são, hoje, amplamente conhecidas. Popper já nos alertara, em seu conhecimento objetivo, que teorias formais nunca podem ser rotuladas como verdadeiras: são sobreviventes ao falseamento a que a realidade continuamente as expõe. Passado o abalo inicial, tais fatos foram assimilados e a ciência continuou a prosperar.
Ao anunciar os limites inerentes aos sistemas eleitorais de diferentes estirpes, Arrow provocou um abalo semelhante, mas que não pode significar uma diminuição na importância da democracia. Descrer da democracia pode ser apenas estimulante provocação. À moda da falseabilidade popperiana, a democracia é melhor de todos os sistemas, pois é o único que permite a correção de erros circunstanciais e inevitáveis nas escolhas de maneira pacífica, por meio das eleições.
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EXCERTOS
- Democracia e Regra da Maioria: BOBBIO
“A Regra da Maioria não é exclusiva dos sistemas democráticos, nem as decisões em tais sistemas são tomadas exclusivamente mediante tal regra… Esta errônea identificação deriva de uma interpretação equivocada da definição clássica da democracia como governo da maioria… A maioria indica quantos governam e não como governam. … O que caracteriza um sistema político democrático não é o princípio da maioria, mas sim o sufrágio universal. … Desafortunadamente, com muita frequência, as maiorias não se compõem dos mais livres, mas sim dos mais conformistas.”
“Ao falar dos limites de aplicação da regra da maioria, entende-se os limites que derivam da existência de matérias às quais tal regra não se aplica… São matérias em que a tomada de decisões confiada à regra do maior número apareceria como inoportuna, não adequada a seu fim, ou inclusive injusta. … Os valores, os princípios, os postulados éticos e naturalmente também os direitos fundamentais não estão sujeitos a opinião, nem são negociáveis. … Também escapam a seu escopo questões de natureza religiosa, científica, ou que envolvam a irreversibilidade. Podemos submeter a um referendo a escolha entre a monarquia e a república, mas não entre o cristianismo e o ateísmo…”
BOBBIO, Norberto – El filósofo y la política (Antología). México: Fondo de Cultura Económica, 1996
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2. O caso dos EUA
“Procura-se esconder (na Europa poderia parecer vergonhoso, caso conhecido), que a maioria dos cidadãos com direito a voto nos EUA não exercita tal direito. O mecanismo é simples. O título eleitoral não é entregue a cada um dos cidadãos, como acontece na Europa: os cidadãos é que devem tomar a iniciativa de requerê-lo, agindo como solicitante. E uma grande maioria não o faz…”
Luciano Canfora, em Crítica da Retórica Democrática, p. 28.
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3. O caso dos persas
… Têm o hábito (os persas) de deliberar sobre os negócios mais sérios depois de beberem muito; mas, no dia seguinte, o dono da casa onde estiverem reunidos traz novamente à baila a questão, antes de começarem a beber de novo. Se aprovam, ela passa; se não, abandonam o assunto. Às vezes, entretanto, dá-se o contrário: o que decidiram antes de beber passam a discutir novamente durante a embriaguez.
Heródoto (484-425 aC, Livro I Clio CXXXIII)
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4. Sistemas de Votação (FUNÇÕES DE BEM ESTAR SOCIAL)
MAIORIA
O vencedor será o candidato que tiver a maioria absoluta (50% + 1) dos votos.
PLURALIDADE
O vencedor será o candidato que tiver a maioria simples dos votos.
PONDERAÇÃO
Se o número de candidatos é igual a k, então, em cada voto, o primeiro lugar em cada ordenação tem k – 1 pontos, o segundo, k – 2 pontos, … o último, zero pontos; o vencedor será o candidato com o maior total de pontos. (Excetuando a diferença na pontuação, é o critério adotado na Fórmula 1.)
CONFRONTO DIRETO
Se um candidato ganhar o confronto direto com todos os outros, então ele será o vencedor.
ELIMINAÇÃO/PREFERÊNCIA
Após a votação/ordenação inicial, elimina-se o candidato com o menor número de 1ºs lugares, e reordenam-se os votos. Após a reordenação, elimina-se o candidato com o menor número de 1ºs lugares; e assim por diante, até o último sobrevivente, que será o vencedor.
*(Segundo Hodge e Klima, vale na Austrália, na Irlanda e na prefeitura de Londres)
ELIMINAÇÃO/REJEIÇÃO
Após a votação/ordenação inicial, elimina-se o candidato com o maior número de última colocação (mais rejeitado), e reordenam-se os votos. Após a reordenação, elimina-se o candidato mais rejeitado, e assim por diante, até o último sobrevivente, que será o vencedor.
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ANEXO
Um Exemplo: Candidatos A, B, C, D; 13 eleitores
PLURALIDADE MAIORIA
A | B | C | D | A | B | C | D | ||
1 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
2 | 2 | 3 | 1 | 4 | |||||
3 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
4 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
5 | 1 | 3 | 2 | 4 | |||||
6 | 3 | 1 | 4 | 2 | |||||
7 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
8 | 3 | 4 | 2 | 1 | |||||
9 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
10 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
11 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
12 | 2 | 1 | 3 | 4 | |||||
13 | 3 | 4 | 1 | 2 |
PONDERAÇÃO
A | B | C | D | A | B | C | D | ||
1 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
2 | 2 | 3 | 1 | 4 | |||||
3 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
4 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
5 | 1 | 3 | 2 | 4 | |||||
6 | 3 | 1 | 4 | 2 | |||||
7 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
8 | 3 | 4 | 2 | 1 | |||||
9 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
10 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
11 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
12 | 2 | 1 | 3 | 4 | |||||
13 | 3 | 4 | 1 | 2 |
REJEIÇÃO
A | B | C | D | A | B | C | D | ||
1 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
2 | 2 | 3 | 1 | 4 | |||||
3 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
4 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
5 | 1 | 3 | 2 | 4 | |||||
6 | 3 | 1 | 4 | 2 | |||||
7 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
8 | 3 | 4 | 2 | 1 | |||||
9 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
10 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
11 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
12 | 2 | 1 | 3 | 4 | |||||
13 | 3 | 4 | 1 | 2 |
PREFERÊNCIA
A | B | C | D | A | B | C | D | ||
1 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
2 | 2 | 3 | 1 | 4 | |||||
3 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
4 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
5 | 1 | 3 | 2 | 4 | |||||
6 | 3 | 1 | 4 | 2 | |||||
7 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
8 | 3 | 4 | 2 | 1 | |||||
9 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
10 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
11 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
12 | 2 | 1 | 3 | 4 | |||||
13 | 3 | 4 | 1 | 2 |
Pluralidade: Maioria: Ponderação: Rejeição: Preferência:
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Bibliografia
BOBBIO, Norberto – El filósofo y la política (Antología). México: Fondo de Cultura Económica, 1996.
BOBBIO, Norberto – El tercero ausente. Madrid: Cátedra, 1989.
BUCHANAN, James M., TULLOCK, Gordon – The Calculus of Consent – Logical Foundations of Constitucional Democracy. Indianapolis: Liberty Fund Inc., 2004.
CANFORA, Luciano – Crítica da Retórica Democrática. São Paulo: Estação Liberdade, 2007.
DAHL, Robert A. – Sobre a Democracia. Brasília: Editora UnB, 2009.
D´ALLONNES, M. R. – Pourquoi nous n’aimons pás La démocracie. Paris: Seuil, 2010.
ELIAS, Norbert – A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
EPSTEIN, Isaac – O paradoxo de Condorcet e a crise da democracia representativa. São Paulo: Estudos Avançados, V. 11, Nº 30 Maio-Agosto/1997.
HABERMAS, Jürgen – Facticidad y validez. Madrid: Trotta, 1998.
HERÓDOTO – História. Rio de Janeiro: EDIOURO, s/d.
HODGE, Jonathan K., KLIMA, Richard E. – The Mathematics of Voting and Elections: A Hands-On Approach. Rhode Island/EUA: American Mathematical Society, 2005.
KELSEN, Hans – Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
MORROW, John – History of Political Thought. London: Macmillan, 1998.
OAKESHOTT, Michael – El racionalismo en la política. México: Fondo de Cultura Económica, 2000.
ORTEGA Y GASSET, José – A rebelião das massas. Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1962.
ORTEGA Y GASSET, José – Obras Completas, v. 1 e 2. Madrid: Alianza, 1987.
PALLAZZI, F., FILIPPI, S. S. – El Libro de los 1000 sábios. Madrid: Editorial Dossat, 1984.
SARTORI, Giovanni – A Teoria da Democracia Revisitada. São Paulo: Ática, 1994.
THOREAU, Henry – Desobedecendo. São Paulo: Círculo do Livro, 1987.
VIVANTI, C. – Maioria/minoria. In: EINAUDI, V.22 Política, Tolerância, Intolerância. Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1996.
****spout2017
Universidade de São Paulo/Faculdade de Educação
EDM 5129 Tópicos de ÉTICA E EDUCAÇÃO 2º semestre/2017
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MATEMÁTICA DAS ELEIÇÕES: TEOREMA DE ARROW
Nílson José Machado
www.nilsonjosemachado.net
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Roteiro/QUESTÕES
I – Democracia é sinônimo de regra da maioria?
II – Quem vota?
III – O que significa um voto?
IV – Contar os votos basta?
IV – Como Sistemas eleitorais funcionam?
V – Teorema de Arrow
EXCERTOS/ANEXOS/Bibliografia
_____________________________________________
- Democracia e eleições
Diz-se que “a democracia é o pior dos regimes, excetuando-se todos os outros”. As eleições são a marca da democracia. Os eleitores votam em um candidato, de um elenco X, Y, Z… Na escolha do vencedor, diversos critérios podem ser acordados. Um sistema eleitoral é o elenco de critérios considerados justos para definir o candidato eleito. Um critério que associa o conjunto dos votos individuais a uma escolha coletiva é chamado Função de Bem-Estar Social.
Kenneth Arrow (Nobel de Economia/1972) construiu um conjunto mínimo de exigências consideradas razoáveis para uma tal função. Surpreendentemente, demonstrou, em 1951, um teorema segundo o qual, simplificadamente, não existem funções que satisfaçam simultaneamente os critérios desejáveis, ou seja, não existem sistemas eleitorais perfeitos.
O Teorema da Impossibilidade (Arrow) é tão intrigante quanto o Teorema da Indecidibilidade (Gödel) ou o Princípio da Incerteza (Heisenberg).
Compreendê-lo é fundamental para a compreensão do funcionamento da democracia.
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2 – Eleições e Maioria
É comum associar-se eleições à regra da maioria, mas isso seria natural apenas em embates com apenas dois candidatos, em universo de eleitores em que cada cabeça é um voto.
Se há mais do que dois candidatos, a situação é mais complexa; o mais votado pode ter menos votos que a maioria. Por outro lado, há situações em que os votantes têm diferentes pesos, sem que isso configure um procedimento antidemocrático. O Presidente dos EUA é eleito em um Colégio de Delegados, representantes dos Estados da união. Cada Estado tem um número de delegados correspondente a seu peso político. O candidato mais votado no Estado fica com a totalidade de votos dos delegados do Estado. Assim, os Estados são os verdadeiros eleitores, e eles têm diferentes pesos no processo.
Mesmo em eleições majoritárias regidas pela regra da maioria, os cargos mais importantes na gestão do Estado – os de Ministros, por exemplo – são preenchidos, ou deveriam sê-lo, com base na competência técnica e não pela regra da maioria.
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3 – Significado do Voto
Na escolha de um entre dois candidatos, o significado do voto como expressão da preferência pessoal é simples e a regra da maioria resolve. Quando há mais que dois candidatos, escolher um e ignorar os outros empobrece o significado da eleição. Para ser justo, seria necessário examinar todos os candidatos e ordená-los segundo nossa preferência. Se concorrem A, B, C e D, por exemplo, um voto seria um quarteto ordenado CBAD: o candidato C é o preferido, seguido do B, do A e do D.
Existem sistemas eleitorais, em uso em diversos países, em que votar significa ordenar os candidatos. Naturalmente, a apuração dos resultados torna-se mais complexa. Diferentes critérios, todos com alto grau de plausibilidade e aparência de justiça, podem conduzir a diferentes ganhadores das eleições. Um dos mais simples é o seguinte: o primeiro lugar no voto ganha 3 pontos, o segundo, 2, o terceiro, 1 e o quarto, 0. Seria algo parecido com a pontuação dos pilotos na Fórmula 1. É insólito, mas não parece injusto.
4 – Democracia e sistemas eleitorais
Um sistema eleitoral é uma regra que associa um conjunto de votos de um universo de eleitores a um candidato vencedor. Se cada cabeça é um voto, e há mais do que dois candidatos, a regra da maioria não dá conta da escolha.
Se cada voto é uma ordenação dos candidatos, existem diferentes sistemas que conduzem do conjunto das ordenações ao resultado da eleição. Um dos mais considerados é o seguinte: verifica-se o candidato menos votado em primeiro lugar, que é eliminado; os votos são, então, reordenados, sem o tal candidato; verifica-se novamente o candidato menos votado em primeiro lugar, que é eliminado; prosseguindo-se assim, chega-se ao confronto direto de apenas dois candidatos, que é decidido pela regra da maioria.
Outro sistema, similar ao anterior, e que parece igualmente justo, é o de eliminações sucessivas do candidato mais votado em último lugar. É desconcertante, no entanto, o fato de que, em situações específicas, os dois sistemas descritos podem conduzir a diferentes eleitos.
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5 – Democracia: Teorema de Arrow
Algumas características parecem desejáveis a todos os sistemas eleitorais: universalidade, independência das alternativas, unanimidade e ausência de ditadores são quatro delas.
Universalidade significa que todas as ordenações possíveis dos candidatos são votos aceitáveis. Independência das alternativas quer dizer que a preferência entre dois candidatos A e B não depende da participação ou não na eleição de outro candidato. A unanimidade quer dizer que, se em todos os votos, A está à frente de B, então no resultado final, A deve estar à frente de B. E a ausência de ditadores é a garantia de que não existe um eleitor (ditador) que, sozinho, com sua ordenação, determine o resultado da eleição.
Em 1951, o economista Kenneth Arrow publicou um texto (Social Choice and Individual Values) que o levaria a ganhar o Prêmio Nobel de Economia. Nele demonstrou o seguinte teorema: não existe sistema eleitoral que apresente simultaneamente as quatro qualidades supracitadas.
É, no mínimo, desconcertante.
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6. Democracia: Arrow e Popper
O avanço da ciência por meio da construção de sistemas formais cada vez mais abrangentes, consistentes e completos, foi um sonho que durou até Gödel, no início dos anos 1930: as limitações intrínsecas aos formalismos são, hoje, amplamente conhecidas. Popper já nos alertara, em seu conhecimento objetivo, que teorias formais nunca podem ser rotuladas como verdadeiras: são sobreviventes ao falseamento a que a realidade continuamente as expõe. Passado o abalo inicial, tais fatos foram assimilados e a ciência continuou a prosperar.
Ao anunciar os limites inerentes aos sistemas eleitorais de diferentes estirpes, Arrow provocou um abalo semelhante, mas que não pode significar uma diminuição na importância da democracia. Descrer da democracia pode ser apenas estimulante provocação. À moda da falseabilidade popperiana, a democracia é melhor de todos os sistemas, pois é o único que permite a correção de erros circunstanciais e inevitáveis nas escolhas de maneira pacífica, por meio das eleições.
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EXCERTOS
- Democracia e Regra da Maioria: BOBBIO
“A Regra da Maioria não é exclusiva dos sistemas democráticos, nem as decisões em tais sistemas são tomadas exclusivamente mediante tal regra… Esta errônea identificação deriva de uma interpretação equivocada da definição clássica da democracia como governo da maioria… A maioria indica quantos governam e não como governam. … O que caracteriza um sistema político democrático não é o princípio da maioria, mas sim o sufrágio universal. … Desafortunadamente, com muita frequência, as maiorias não se compõem dos mais livres, mas sim dos mais conformistas.”
“Ao falar dos limites de aplicação da regra da maioria, entende-se os limites que derivam da existência de matérias às quais tal regra não se aplica… São matérias em que a tomada de decisões confiada à regra do maior número apareceria como inoportuna, não adequada a seu fim, ou inclusive injusta. … Os valores, os princípios, os postulados éticos e naturalmente também os direitos fundamentais não estão sujeitos a opinião, nem são negociáveis. … Também escapam a seu escopo questões de natureza religiosa, científica, ou que envolvam a irreversibilidade. Podemos submeter a um referendo a escolha entre a monarquia e a república, mas não entre o cristianismo e o ateísmo…”
BOBBIO, Norberto – El filósofo y la política (Antología). México: Fondo de Cultura Económica, 1996
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2. O caso dos EUA
“Procura-se esconder (na Europa poderia parecer vergonhoso, caso conhecido), que a maioria dos cidadãos com direito a voto nos EUA não exercita tal direito. O mecanismo é simples. O título eleitoral não é entregue a cada um dos cidadãos, como acontece na Europa: os cidadãos é que devem tomar a iniciativa de requerê-lo, agindo como solicitante. E uma grande maioria não o faz…”
Luciano Canfora, em Crítica da Retórica Democrática, p. 28.
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3. O caso dos persas
… Têm o hábito (os persas) de deliberar sobre os negócios mais sérios depois de beberem muito; mas, no dia seguinte, o dono da casa onde estiverem reunidos traz novamente à baila a questão, antes de começarem a beber de novo. Se aprovam, ela passa; se não, abandonam o assunto. Às vezes, entretanto, dá-se o contrário: o que decidiram antes de beber passam a discutir novamente durante a embriaguez.
Heródoto (484-425 aC, Livro I Clio CXXXIII)
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4. Sistemas de Votação (FUNÇÕES DE BEM ESTAR SOCIAL)
MAIORIA
O vencedor será o candidato que tiver a maioria absoluta (50% + 1) dos votos.
PLURALIDADE
O vencedor será o candidato que tiver a maioria simples dos votos.
PONDERAÇÃO
Se o número de candidatos é igual a k, então, em cada voto, o primeiro lugar em cada ordenação tem k – 1 pontos, o segundo, k – 2 pontos, … o último, zero pontos; o vencedor será o candidato com o maior total de pontos. (Excetuando a diferença na pontuação, é o critério adotado na Fórmula 1.)
CONFRONTO DIRETO
Se um candidato ganhar o confronto direto com todos os outros, então ele será o vencedor.
ELIMINAÇÃO/PREFERÊNCIA
Após a votação/ordenação inicial, elimina-se o candidato com o menor número de 1ºs lugares, e reordenam-se os votos. Após a reordenação, elimina-se o candidato com o menor número de 1ºs lugares; e assim por diante, até o último sobrevivente, que será o vencedor.
*(Segundo Hodge e Klima, vale na Austrália, na Irlanda e na prefeitura de Londres)
ELIMINAÇÃO/REJEIÇÃO
Após a votação/ordenação inicial, elimina-se o candidato com o maior número de última colocação (mais rejeitado), e reordenam-se os votos. Após a reordenação, elimina-se o candidato mais rejeitado, e assim por diante, até o último sobrevivente, que será o vencedor.
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ANEXO
Um Exemplo: Candidatos A, B, C, D; 13 eleitores
PLURALIDADE MAIORIA
A | B | C | D | A | B | C | D | ||
1 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
2 | 2 | 3 | 1 | 4 | |||||
3 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
4 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
5 | 1 | 3 | 2 | 4 | |||||
6 | 3 | 1 | 4 | 2 | |||||
7 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
8 | 3 | 4 | 2 | 1 | |||||
9 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
10 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
11 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
12 | 2 | 1 | 3 | 4 | |||||
13 | 3 | 4 | 1 | 2 |
PONDERAÇÃO
A | B | C | D | A | B | C | D | ||
1 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
2 | 2 | 3 | 1 | 4 | |||||
3 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
4 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
5 | 1 | 3 | 2 | 4 | |||||
6 | 3 | 1 | 4 | 2 | |||||
7 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
8 | 3 | 4 | 2 | 1 | |||||
9 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
10 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
11 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
12 | 2 | 1 | 3 | 4 | |||||
13 | 3 | 4 | 1 | 2 |
REJEIÇÃO
A | B | C | D | A | B | C | D | ||
1 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
2 | 2 | 3 | 1 | 4 | |||||
3 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
4 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
5 | 1 | 3 | 2 | 4 | |||||
6 | 3 | 1 | 4 | 2 | |||||
7 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
8 | 3 | 4 | 2 | 1 | |||||
9 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
10 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
11 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
12 | 2 | 1 | 3 | 4 | |||||
13 | 3 | 4 | 1 | 2 |
PREFERÊNCIA
A | B | C | D | A | B | C | D | ||
1 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
2 | 2 | 3 | 1 | 4 | |||||
3 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
4 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
5 | 1 | 3 | 2 | 4 | |||||
6 | 3 | 1 | 4 | 2 | |||||
7 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
8 | 3 | 4 | 2 | 1 | |||||
9 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
10 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
11 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
12 | 2 | 1 | 3 | 4 | |||||
13 | 3 | 4 | 1 | 2 |
Pluralidade: Maioria: Ponderação: Rejeição: Preferência:
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Bibliografia
BOBBIO, Norberto – El filósofo y la política (Antología). México: Fondo de Cultura Económica, 1996.
BOBBIO, Norberto – El tercero ausente. Madrid: Cátedra, 1989.
BUCHANAN, James M., TULLOCK, Gordon – The Calculus of Consent – Logical Foundations of Constitucional Democracy. Indianapolis: Liberty Fund Inc., 2004.
CANFORA, Luciano – Crítica da Retórica Democrática. São Paulo: Estação Liberdade, 2007.
DAHL, Robert A. – Sobre a Democracia. Brasília: Editora UnB, 2009.
D´ALLONNES, M. R. – Pourquoi nous n’aimons pás La démocracie. Paris: Seuil, 2010.
ELIAS, Norbert – A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
EPSTEIN, Isaac – O paradoxo de Condorcet e a crise da democracia representativa. São Paulo: Estudos Avançados, V. 11, Nº 30 Maio-Agosto/1997.
HABERMAS, Jürgen – Facticidad y validez. Madrid: Trotta, 1998.
HERÓDOTO – História. Rio de Janeiro: EDIOURO, s/d.
HODGE, Jonathan K., KLIMA, Richard E. – The Mathematics of Voting and Elections: A Hands-On Approach. Rhode Island/EUA: American Mathematical Society, 2005.
KELSEN, Hans – Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
MORROW, John – History of Political Thought. London: Macmillan, 1998.
OAKESHOTT, Michael – El racionalismo en la política. México: Fondo de Cultura Económica, 2000.
ORTEGA Y GASSET, José – A rebelião das massas. Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1962.
ORTEGA Y GASSET, José – Obras Completas, v. 1 e 2. Madrid: Alianza, 1987.
PALLAZZI, F., FILIPPI, S. S. – El Libro de los 1000 sábios. Madrid: Editorial Dossat, 1984.
SARTORI, Giovanni – A Teoria da Democracia Revisitada. São Paulo: Ática, 1994.
THOREAU, Henry – Desobedecendo. São Paulo: Círculo do Livro, 1987.
VIVANTI, C. – Maioria/minoria. In: EINAUDI, V.22 Política, Tolerância, Intolerância. Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1996.
****spout2017
Universidade de São Paulo/Faculdade de Educação
EDM 5129 Tópicos de ÉTICA E EDUCAÇÃO 2º semestre/2017
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MATEMÁTICA DAS ELEIÇÕES: TEOREMA DE ARROW
Nílson José Machado
www.nilsonjosemachado.net
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Roteiro/QUESTÕES
I – Democracia é sinônimo de regra da maioria?
II – Quem vota?
III – O que significa um voto?
IV – Contar os votos basta?
IV – Como Sistemas eleitorais funcionam?
V – Teorema de Arrow
EXCERTOS/ANEXOS/Bibliografia
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- Democracia e eleições
Diz-se que “a democracia é o pior dos regimes, excetuando-se todos os outros”. As eleições são a marca da democracia. Os eleitores votam em um candidato, de um elenco X, Y, Z… Na escolha do vencedor, diversos critérios podem ser acordados. Um sistema eleitoral é o elenco de critérios considerados justos para definir o candidato eleito. Um critério que associa o conjunto dos votos individuais a uma escolha coletiva é chamado Função de Bem-Estar Social.
Kenneth Arrow (Nobel de Economia/1972) construiu um conjunto mínimo de exigências consideradas razoáveis para uma tal função. Surpreendentemente, demonstrou, em 1951, um teorema segundo o qual, simplificadamente, não existem funções que satisfaçam simultaneamente os critérios desejáveis, ou seja, não existem sistemas eleitorais perfeitos.
O Teorema da Impossibilidade (Arrow) é tão intrigante quanto o Teorema da Indecidibilidade (Gödel) ou o Princípio da Incerteza (Heisenberg).
Compreendê-lo é fundamental para a compreensão do funcionamento da democracia.
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2 – Eleições e Maioria
É comum associar-se eleições à regra da maioria, mas isso seria natural apenas em embates com apenas dois candidatos, em universo de eleitores em que cada cabeça é um voto.
Se há mais do que dois candidatos, a situação é mais complexa; o mais votado pode ter menos votos que a maioria. Por outro lado, há situações em que os votantes têm diferentes pesos, sem que isso configure um procedimento antidemocrático. O Presidente dos EUA é eleito em um Colégio de Delegados, representantes dos Estados da união. Cada Estado tem um número de delegados correspondente a seu peso político. O candidato mais votado no Estado fica com a totalidade de votos dos delegados do Estado. Assim, os Estados são os verdadeiros eleitores, e eles têm diferentes pesos no processo.
Mesmo em eleições majoritárias regidas pela regra da maioria, os cargos mais importantes na gestão do Estado – os de Ministros, por exemplo – são preenchidos, ou deveriam sê-lo, com base na competência técnica e não pela regra da maioria.
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3 – Significado do Voto
Na escolha de um entre dois candidatos, o significado do voto como expressão da preferência pessoal é simples e a regra da maioria resolve. Quando há mais que dois candidatos, escolher um e ignorar os outros empobrece o significado da eleição. Para ser justo, seria necessário examinar todos os candidatos e ordená-los segundo nossa preferência. Se concorrem A, B, C e D, por exemplo, um voto seria um quarteto ordenado CBAD: o candidato C é o preferido, seguido do B, do A e do D.
Existem sistemas eleitorais, em uso em diversos países, em que votar significa ordenar os candidatos. Naturalmente, a apuração dos resultados torna-se mais complexa. Diferentes critérios, todos com alto grau de plausibilidade e aparência de justiça, podem conduzir a diferentes ganhadores das eleições. Um dos mais simples é o seguinte: o primeiro lugar no voto ganha 3 pontos, o segundo, 2, o terceiro, 1 e o quarto, 0. Seria algo parecido com a pontuação dos pilotos na Fórmula 1. É insólito, mas não parece injusto.
4 – Democracia e sistemas eleitorais
Um sistema eleitoral é uma regra que associa um conjunto de votos de um universo de eleitores a um candidato vencedor. Se cada cabeça é um voto, e há mais do que dois candidatos, a regra da maioria não dá conta da escolha.
Se cada voto é uma ordenação dos candidatos, existem diferentes sistemas que conduzem do conjunto das ordenações ao resultado da eleição. Um dos mais considerados é o seguinte: verifica-se o candidato menos votado em primeiro lugar, que é eliminado; os votos são, então, reordenados, sem o tal candidato; verifica-se novamente o candidato menos votado em primeiro lugar, que é eliminado; prosseguindo-se assim, chega-se ao confronto direto de apenas dois candidatos, que é decidido pela regra da maioria.
Outro sistema, similar ao anterior, e que parece igualmente justo, é o de eliminações sucessivas do candidato mais votado em último lugar. É desconcertante, no entanto, o fato de que, em situações específicas, os dois sistemas descritos podem conduzir a diferentes eleitos.
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5 – Democracia: Teorema de Arrow
Algumas características parecem desejáveis a todos os sistemas eleitorais: universalidade, independência das alternativas, unanimidade e ausência de ditadores são quatro delas.
Universalidade significa que todas as ordenações possíveis dos candidatos são votos aceitáveis. Independência das alternativas quer dizer que a preferência entre dois candidatos A e B não depende da participação ou não na eleição de outro candidato. A unanimidade quer dizer que, se em todos os votos, A está à frente de B, então no resultado final, A deve estar à frente de B. E a ausência de ditadores é a garantia de que não existe um eleitor (ditador) que, sozinho, com sua ordenação, determine o resultado da eleição.
Em 1951, o economista Kenneth Arrow publicou um texto (Social Choice and Individual Values) que o levaria a ganhar o Prêmio Nobel de Economia. Nele demonstrou o seguinte teorema: não existe sistema eleitoral que apresente simultaneamente as quatro qualidades supracitadas.
É, no mínimo, desconcertante.
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6. Democracia: Arrow e Popper
O avanço da ciência por meio da construção de sistemas formais cada vez mais abrangentes, consistentes e completos, foi um sonho que durou até Gödel, no início dos anos 1930: as limitações intrínsecas aos formalismos são, hoje, amplamente conhecidas. Popper já nos alertara, em seu conhecimento objetivo, que teorias formais nunca podem ser rotuladas como verdadeiras: são sobreviventes ao falseamento a que a realidade continuamente as expõe. Passado o abalo inicial, tais fatos foram assimilados e a ciência continuou a prosperar.
Ao anunciar os limites inerentes aos sistemas eleitorais de diferentes estirpes, Arrow provocou um abalo semelhante, mas que não pode significar uma diminuição na importância da democracia. Descrer da democracia pode ser apenas estimulante provocação. À moda da falseabilidade popperiana, a democracia é melhor de todos os sistemas, pois é o único que permite a correção de erros circunstanciais e inevitáveis nas escolhas de maneira pacífica, por meio das eleições.
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EXCERTOS
- Democracia e Regra da Maioria: BOBBIO
“A Regra da Maioria não é exclusiva dos sistemas democráticos, nem as decisões em tais sistemas são tomadas exclusivamente mediante tal regra… Esta errônea identificação deriva de uma interpretação equivocada da definição clássica da democracia como governo da maioria… A maioria indica quantos governam e não como governam. … O que caracteriza um sistema político democrático não é o princípio da maioria, mas sim o sufrágio universal. … Desafortunadamente, com muita frequência, as maiorias não se compõem dos mais livres, mas sim dos mais conformistas.”
“Ao falar dos limites de aplicação da regra da maioria, entende-se os limites que derivam da existência de matérias às quais tal regra não se aplica… São matérias em que a tomada de decisões confiada à regra do maior número apareceria como inoportuna, não adequada a seu fim, ou inclusive injusta. … Os valores, os princípios, os postulados éticos e naturalmente também os direitos fundamentais não estão sujeitos a opinião, nem são negociáveis. … Também escapam a seu escopo questões de natureza religiosa, científica, ou que envolvam a irreversibilidade. Podemos submeter a um referendo a escolha entre a monarquia e a república, mas não entre o cristianismo e o ateísmo…”
BOBBIO, Norberto – El filósofo y la política (Antología). México: Fondo de Cultura Económica, 1996
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2. O caso dos EUA
“Procura-se esconder (na Europa poderia parecer vergonhoso, caso conhecido), que a maioria dos cidadãos com direito a voto nos EUA não exercita tal direito. O mecanismo é simples. O título eleitoral não é entregue a cada um dos cidadãos, como acontece na Europa: os cidadãos é que devem tomar a iniciativa de requerê-lo, agindo como solicitante. E uma grande maioria não o faz…”
Luciano Canfora, em Crítica da Retórica Democrática, p. 28.
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3. O caso dos persas
… Têm o hábito (os persas) de deliberar sobre os negócios mais sérios depois de beberem muito; mas, no dia seguinte, o dono da casa onde estiverem reunidos traz novamente à baila a questão, antes de começarem a beber de novo. Se aprovam, ela passa; se não, abandonam o assunto. Às vezes, entretanto, dá-se o contrário: o que decidiram antes de beber passam a discutir novamente durante a embriaguez.
Heródoto (484-425 aC, Livro I Clio CXXXIII)
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4. Sistemas de Votação (FUNÇÕES DE BEM ESTAR SOCIAL)
MAIORIA
O vencedor será o candidato que tiver a maioria absoluta (50% + 1) dos votos.
PLURALIDADE
O vencedor será o candidato que tiver a maioria simples dos votos.
PONDERAÇÃO
Se o número de candidatos é igual a k, então, em cada voto, o primeiro lugar em cada ordenação tem k – 1 pontos, o segundo, k – 2 pontos, … o último, zero pontos; o vencedor será o candidato com o maior total de pontos. (Excetuando a diferença na pontuação, é o critério adotado na Fórmula 1.)
CONFRONTO DIRETO
Se um candidato ganhar o confronto direto com todos os outros, então ele será o vencedor.
ELIMINAÇÃO/PREFERÊNCIA
Após a votação/ordenação inicial, elimina-se o candidato com o menor número de 1ºs lugares, e reordenam-se os votos. Após a reordenação, elimina-se o candidato com o menor número de 1ºs lugares; e assim por diante, até o último sobrevivente, que será o vencedor.
*(Segundo Hodge e Klima, vale na Austrália, na Irlanda e na prefeitura de Londres)
ELIMINAÇÃO/REJEIÇÃO
Após a votação/ordenação inicial, elimina-se o candidato com o maior número de última colocação (mais rejeitado), e reordenam-se os votos. Após a reordenação, elimina-se o candidato mais rejeitado, e assim por diante, até o último sobrevivente, que será o vencedor.
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ANEXO
Um Exemplo: Candidatos A, B, C, D; 13 eleitores
PLURALIDADE MAIORIA
A | B | C | D | A | B | C | D | ||
1 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
2 | 2 | 3 | 1 | 4 | |||||
3 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
4 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
5 | 1 | 3 | 2 | 4 | |||||
6 | 3 | 1 | 4 | 2 | |||||
7 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
8 | 3 | 4 | 2 | 1 | |||||
9 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
10 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
11 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
12 | 2 | 1 | 3 | 4 | |||||
13 | 3 | 4 | 1 | 2 |
PONDERAÇÃO
A | B | C | D | A | B | C | D | ||
1 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
2 | 2 | 3 | 1 | 4 | |||||
3 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
4 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
5 | 1 | 3 | 2 | 4 | |||||
6 | 3 | 1 | 4 | 2 | |||||
7 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
8 | 3 | 4 | 2 | 1 | |||||
9 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
10 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
11 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
12 | 2 | 1 | 3 | 4 | |||||
13 | 3 | 4 | 1 | 2 |
REJEIÇÃO
A | B | C | D | A | B | C | D | ||
1 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
2 | 2 | 3 | 1 | 4 | |||||
3 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
4 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
5 | 1 | 3 | 2 | 4 | |||||
6 | 3 | 1 | 4 | 2 | |||||
7 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
8 | 3 | 4 | 2 | 1 | |||||
9 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
10 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
11 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
12 | 2 | 1 | 3 | 4 | |||||
13 | 3 | 4 | 1 | 2 |
PREFERÊNCIA
A | B | C | D | A | B | C | D | ||
1 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
2 | 2 | 3 | 1 | 4 | |||||
3 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
4 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
5 | 1 | 3 | 2 | 4 | |||||
6 | 3 | 1 | 4 | 2 | |||||
7 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
8 | 3 | 4 | 2 | 1 | |||||
9 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
10 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
11 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
12 | 2 | 1 | 3 | 4 | |||||
13 | 3 | 4 | 1 | 2 |
Pluralidade: Maioria: Ponderação: Rejeição: Preferência:
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Bibliografia
BOBBIO, Norberto – El filósofo y la política (Antología). México: Fondo de Cultura Económica, 1996.
BOBBIO, Norberto – El tercero ausente. Madrid: Cátedra, 1989.
BUCHANAN, James M., TULLOCK, Gordon – The Calculus of Consent – Logical Foundations of Constitucional Democracy. Indianapolis: Liberty Fund Inc., 2004.
CANFORA, Luciano – Crítica da Retórica Democrática. São Paulo: Estação Liberdade, 2007.
DAHL, Robert A. – Sobre a Democracia. Brasília: Editora UnB, 2009.
D´ALLONNES, M. R. – Pourquoi nous n’aimons pás La démocracie. Paris: Seuil, 2010.
ELIAS, Norbert – A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
EPSTEIN, Isaac – O paradoxo de Condorcet e a crise da democracia representativa. São Paulo: Estudos Avançados, V. 11, Nº 30 Maio-Agosto/1997.
HABERMAS, Jürgen – Facticidad y validez. Madrid: Trotta, 1998.
HERÓDOTO – História. Rio de Janeiro: EDIOURO, s/d.
HODGE, Jonathan K., KLIMA, Richard E. – The Mathematics of Voting and Elections: A Hands-On Approach. Rhode Island/EUA: American Mathematical Society, 2005.
KELSEN, Hans – Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
MORROW, John – History of Political Thought. London: Macmillan, 1998.
OAKESHOTT, Michael – El racionalismo en la política. México: Fondo de Cultura Económica, 2000.
ORTEGA Y GASSET, José – A rebelião das massas. Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1962.
ORTEGA Y GASSET, José – Obras Completas, v. 1 e 2. Madrid: Alianza, 1987.
PALLAZZI, F., FILIPPI, S. S. – El Libro de los 1000 sábios. Madrid: Editorial Dossat, 1984.
SARTORI, Giovanni – A Teoria da Democracia Revisitada. São Paulo: Ática, 1994.
THOREAU, Henry – Desobedecendo. São Paulo: Círculo do Livro, 1987.
VIVANTI, C. – Maioria/minoria. In: EINAUDI, V.22 Política, Tolerância, Intolerância. Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1996.
****spout2017
Universidade de São Paulo/Faculdade de Educação
EDM 5129 Tópicos de ÉTICA E EDUCAÇÃO 2º semestre/2017
___________________________________________________
MATEMÁTICA DAS ELEIÇÕES: TEOREMA DE ARROW
Nílson José Machado
www.nilsonjosemachado.net
______________________________________________
Roteiro/QUESTÕES
I – Democracia é sinônimo de regra da maioria?
II – Quem vota?
III – O que significa um voto?
IV – Contar os votos basta?
IV – Como Sistemas eleitorais funcionam?
V – Teorema de Arrow
EXCERTOS/ANEXOS/Bibliografia
_____________________________________________
- Democracia e eleições
Diz-se que “a democracia é o pior dos regimes, excetuando-se todos os outros”. As eleições são a marca da democracia. Os eleitores votam em um candidato, de um elenco X, Y, Z… Na escolha do vencedor, diversos critérios podem ser acordados. Um sistema eleitoral é o elenco de critérios considerados justos para definir o candidato eleito. Um critério que associa o conjunto dos votos individuais a uma escolha coletiva é chamado Função de Bem-Estar Social.
Kenneth Arrow (Nobel de Economia/1972) construiu um conjunto mínimo de exigências consideradas razoáveis para uma tal função. Surpreendentemente, demonstrou, em 1951, um teorema segundo o qual, simplificadamente, não existem funções que satisfaçam simultaneamente os critérios desejáveis, ou seja, não existem sistemas eleitorais perfeitos.
O Teorema da Impossibilidade (Arrow) é tão intrigante quanto o Teorema da Indecidibilidade (Gödel) ou o Princípio da Incerteza (Heisenberg).
Compreendê-lo é fundamental para a compreensão do funcionamento da democracia.
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2 – Eleições e Maioria
É comum associar-se eleições à regra da maioria, mas isso seria natural apenas em embates com apenas dois candidatos, em universo de eleitores em que cada cabeça é um voto.
Se há mais do que dois candidatos, a situação é mais complexa; o mais votado pode ter menos votos que a maioria. Por outro lado, há situações em que os votantes têm diferentes pesos, sem que isso configure um procedimento antidemocrático. O Presidente dos EUA é eleito em um Colégio de Delegados, representantes dos Estados da união. Cada Estado tem um número de delegados correspondente a seu peso político. O candidato mais votado no Estado fica com a totalidade de votos dos delegados do Estado. Assim, os Estados são os verdadeiros eleitores, e eles têm diferentes pesos no processo.
Mesmo em eleições majoritárias regidas pela regra da maioria, os cargos mais importantes na gestão do Estado – os de Ministros, por exemplo – são preenchidos, ou deveriam sê-lo, com base na competência técnica e não pela regra da maioria.
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3 – Significado do Voto
Na escolha de um entre dois candidatos, o significado do voto como expressão da preferência pessoal é simples e a regra da maioria resolve. Quando há mais que dois candidatos, escolher um e ignorar os outros empobrece o significado da eleição. Para ser justo, seria necessário examinar todos os candidatos e ordená-los segundo nossa preferência. Se concorrem A, B, C e D, por exemplo, um voto seria um quarteto ordenado CBAD: o candidato C é o preferido, seguido do B, do A e do D.
Existem sistemas eleitorais, em uso em diversos países, em que votar significa ordenar os candidatos. Naturalmente, a apuração dos resultados torna-se mais complexa. Diferentes critérios, todos com alto grau de plausibilidade e aparência de justiça, podem conduzir a diferentes ganhadores das eleições. Um dos mais simples é o seguinte: o primeiro lugar no voto ganha 3 pontos, o segundo, 2, o terceiro, 1 e o quarto, 0. Seria algo parecido com a pontuação dos pilotos na Fórmula 1. É insólito, mas não parece injusto.
4 – Democracia e sistemas eleitorais
Um sistema eleitoral é uma regra que associa um conjunto de votos de um universo de eleitores a um candidato vencedor. Se cada cabeça é um voto, e há mais do que dois candidatos, a regra da maioria não dá conta da escolha.
Se cada voto é uma ordenação dos candidatos, existem diferentes sistemas que conduzem do conjunto das ordenações ao resultado da eleição. Um dos mais considerados é o seguinte: verifica-se o candidato menos votado em primeiro lugar, que é eliminado; os votos são, então, reordenados, sem o tal candidato; verifica-se novamente o candidato menos votado em primeiro lugar, que é eliminado; prosseguindo-se assim, chega-se ao confronto direto de apenas dois candidatos, que é decidido pela regra da maioria.
Outro sistema, similar ao anterior, e que parece igualmente justo, é o de eliminações sucessivas do candidato mais votado em último lugar. É desconcertante, no entanto, o fato de que, em situações específicas, os dois sistemas descritos podem conduzir a diferentes eleitos.
___________________________________________________
5 – Democracia: Teorema de Arrow
Algumas características parecem desejáveis a todos os sistemas eleitorais: universalidade, independência das alternativas, unanimidade e ausência de ditadores são quatro delas.
Universalidade significa que todas as ordenações possíveis dos candidatos são votos aceitáveis. Independência das alternativas quer dizer que a preferência entre dois candidatos A e B não depende da participação ou não na eleição de outro candidato. A unanimidade quer dizer que, se em todos os votos, A está à frente de B, então no resultado final, A deve estar à frente de B. E a ausência de ditadores é a garantia de que não existe um eleitor (ditador) que, sozinho, com sua ordenação, determine o resultado da eleição.
Em 1951, o economista Kenneth Arrow publicou um texto (Social Choice and Individual Values) que o levaria a ganhar o Prêmio Nobel de Economia. Nele demonstrou o seguinte teorema: não existe sistema eleitoral que apresente simultaneamente as quatro qualidades supracitadas.
É, no mínimo, desconcertante.
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6. Democracia: Arrow e Popper
O avanço da ciência por meio da construção de sistemas formais cada vez mais abrangentes, consistentes e completos, foi um sonho que durou até Gödel, no início dos anos 1930: as limitações intrínsecas aos formalismos são, hoje, amplamente conhecidas. Popper já nos alertara, em seu conhecimento objetivo, que teorias formais nunca podem ser rotuladas como verdadeiras: são sobreviventes ao falseamento a que a realidade continuamente as expõe. Passado o abalo inicial, tais fatos foram assimilados e a ciência continuou a prosperar.
Ao anunciar os limites inerentes aos sistemas eleitorais de diferentes estirpes, Arrow provocou um abalo semelhante, mas que não pode significar uma diminuição na importância da democracia. Descrer da democracia pode ser apenas estimulante provocação. À moda da falseabilidade popperiana, a democracia é melhor de todos os sistemas, pois é o único que permite a correção de erros circunstanciais e inevitáveis nas escolhas de maneira pacífica, por meio das eleições.
_____________________________________________________
EXCERTOS
- Democracia e Regra da Maioria: BOBBIO
“A Regra da Maioria não é exclusiva dos sistemas democráticos, nem as decisões em tais sistemas são tomadas exclusivamente mediante tal regra… Esta errônea identificação deriva de uma interpretação equivocada da definição clássica da democracia como governo da maioria… A maioria indica quantos governam e não como governam. … O que caracteriza um sistema político democrático não é o princípio da maioria, mas sim o sufrágio universal. … Desafortunadamente, com muita frequência, as maiorias não se compõem dos mais livres, mas sim dos mais conformistas.”
“Ao falar dos limites de aplicação da regra da maioria, entende-se os limites que derivam da existência de matérias às quais tal regra não se aplica… São matérias em que a tomada de decisões confiada à regra do maior número apareceria como inoportuna, não adequada a seu fim, ou inclusive injusta. … Os valores, os princípios, os postulados éticos e naturalmente também os direitos fundamentais não estão sujeitos a opinião, nem são negociáveis. … Também escapam a seu escopo questões de natureza religiosa, científica, ou que envolvam a irreversibilidade. Podemos submeter a um referendo a escolha entre a monarquia e a república, mas não entre o cristianismo e o ateísmo…”
BOBBIO, Norberto – El filósofo y la política (Antología). México: Fondo de Cultura Económica, 1996
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2. O caso dos EUA
“Procura-se esconder (na Europa poderia parecer vergonhoso, caso conhecido), que a maioria dos cidadãos com direito a voto nos EUA não exercita tal direito. O mecanismo é simples. O título eleitoral não é entregue a cada um dos cidadãos, como acontece na Europa: os cidadãos é que devem tomar a iniciativa de requerê-lo, agindo como solicitante. E uma grande maioria não o faz…”
Luciano Canfora, em Crítica da Retórica Democrática, p. 28.
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3. O caso dos persas
… Têm o hábito (os persas) de deliberar sobre os negócios mais sérios depois de beberem muito; mas, no dia seguinte, o dono da casa onde estiverem reunidos traz novamente à baila a questão, antes de começarem a beber de novo. Se aprovam, ela passa; se não, abandonam o assunto. Às vezes, entretanto, dá-se o contrário: o que decidiram antes de beber passam a discutir novamente durante a embriaguez.
Heródoto (484-425 aC, Livro I Clio CXXXIII)
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4. Sistemas de Votação (FUNÇÕES DE BEM ESTAR SOCIAL)
MAIORIA
O vencedor será o candidato que tiver a maioria absoluta (50% + 1) dos votos.
PLURALIDADE
O vencedor será o candidato que tiver a maioria simples dos votos.
PONDERAÇÃO
Se o número de candidatos é igual a k, então, em cada voto, o primeiro lugar em cada ordenação tem k – 1 pontos, o segundo, k – 2 pontos, … o último, zero pontos; o vencedor será o candidato com o maior total de pontos. (Excetuando a diferença na pontuação, é o critério adotado na Fórmula 1.)
CONFRONTO DIRETO
Se um candidato ganhar o confronto direto com todos os outros, então ele será o vencedor.
ELIMINAÇÃO/PREFERÊNCIA
Após a votação/ordenação inicial, elimina-se o candidato com o menor número de 1ºs lugares, e reordenam-se os votos. Após a reordenação, elimina-se o candidato com o menor número de 1ºs lugares; e assim por diante, até o último sobrevivente, que será o vencedor.
*(Segundo Hodge e Klima, vale na Austrália, na Irlanda e na prefeitura de Londres)
ELIMINAÇÃO/REJEIÇÃO
Após a votação/ordenação inicial, elimina-se o candidato com o maior número de última colocação (mais rejeitado), e reordenam-se os votos. Após a reordenação, elimina-se o candidato mais rejeitado, e assim por diante, até o último sobrevivente, que será o vencedor.
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ANEXO
Um Exemplo: Candidatos A, B, C, D; 13 eleitores
PLURALIDADE MAIORIA
A | B | C | D | A | B | C | D | ||
1 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
2 | 2 | 3 | 1 | 4 | |||||
3 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
4 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
5 | 1 | 3 | 2 | 4 | |||||
6 | 3 | 1 | 4 | 2 | |||||
7 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
8 | 3 | 4 | 2 | 1 | |||||
9 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
10 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
11 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
12 | 2 | 1 | 3 | 4 | |||||
13 | 3 | 4 | 1 | 2 |
PONDERAÇÃO
A | B | C | D | A | B | C | D | ||
1 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
2 | 2 | 3 | 1 | 4 | |||||
3 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
4 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
5 | 1 | 3 | 2 | 4 | |||||
6 | 3 | 1 | 4 | 2 | |||||
7 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
8 | 3 | 4 | 2 | 1 | |||||
9 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
10 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
11 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
12 | 2 | 1 | 3 | 4 | |||||
13 | 3 | 4 | 1 | 2 |
REJEIÇÃO
A | B | C | D | A | B | C | D | ||
1 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
2 | 2 | 3 | 1 | 4 | |||||
3 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
4 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
5 | 1 | 3 | 2 | 4 | |||||
6 | 3 | 1 | 4 | 2 | |||||
7 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
8 | 3 | 4 | 2 | 1 | |||||
9 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
10 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
11 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
12 | 2 | 1 | 3 | 4 | |||||
13 | 3 | 4 | 1 | 2 |
PREFERÊNCIA
A | B | C | D | A | B | C | D | ||
1 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
2 | 2 | 3 | 1 | 4 | |||||
3 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
4 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
5 | 1 | 3 | 2 | 4 | |||||
6 | 3 | 1 | 4 | 2 | |||||
7 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
8 | 3 | 4 | 2 | 1 | |||||
9 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
10 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
11 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
12 | 2 | 1 | 3 | 4 | |||||
13 | 3 | 4 | 1 | 2 |
Pluralidade: Maioria: Ponderação: Rejeição: Preferência:
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Bibliografia
BOBBIO, Norberto – El filósofo y la política (Antología). México: Fondo de Cultura Económica, 1996.
BOBBIO, Norberto – El tercero ausente. Madrid: Cátedra, 1989.
BUCHANAN, James M., TULLOCK, Gordon – The Calculus of Consent – Logical Foundations of Constitucional Democracy. Indianapolis: Liberty Fund Inc., 2004.
CANFORA, Luciano – Crítica da Retórica Democrática. São Paulo: Estação Liberdade, 2007.
DAHL, Robert A. – Sobre a Democracia. Brasília: Editora UnB, 2009.
D´ALLONNES, M. R. – Pourquoi nous n’aimons pás La démocracie. Paris: Seuil, 2010.
ELIAS, Norbert – A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
EPSTEIN, Isaac – O paradoxo de Condorcet e a crise da democracia representativa. São Paulo: Estudos Avançados, V. 11, Nº 30 Maio-Agosto/1997.
HABERMAS, Jürgen – Facticidad y validez. Madrid: Trotta, 1998.
HERÓDOTO – História. Rio de Janeiro: EDIOURO, s/d.
HODGE, Jonathan K., KLIMA, Richard E. – The Mathematics of Voting and Elections: A Hands-On Approach. Rhode Island/EUA: American Mathematical Society, 2005.
KELSEN, Hans – Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
MORROW, John – History of Political Thought. London: Macmillan, 1998.
OAKESHOTT, Michael – El racionalismo en la política. México: Fondo de Cultura Económica, 2000.
ORTEGA Y GASSET, José – A rebelião das massas. Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1962.
ORTEGA Y GASSET, José – Obras Completas, v. 1 e 2. Madrid: Alianza, 1987.
PALLAZZI, F., FILIPPI, S. S. – El Libro de los 1000 sábios. Madrid: Editorial Dossat, 1984.
SARTORI, Giovanni – A Teoria da Democracia Revisitada. São Paulo: Ática, 1994.
THOREAU, Henry – Desobedecendo. São Paulo: Círculo do Livro, 1987.
VIVANTI, C. – Maioria/minoria. In: EINAUDI, V.22 Política, Tolerância, Intolerância. Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1996.
****spout2017
Universidade de São Paulo/Faculdade de Educação
EDM 5129 Tópicos de ÉTICA E EDUCAÇÃO 2º semestre/2017
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MATEMÁTICA DAS ELEIÇÕES: TEOREMA DE ARROW
Nílson José Machado
www.nilsonjosemachado.net
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Roteiro/QUESTÕES
I – Democracia é sinônimo de regra da maioria?
II – Quem vota?
III – O que significa um voto?
IV – Contar os votos basta?
IV – Como Sistemas eleitorais funcionam?
V – Teorema de Arrow
EXCERTOS/ANEXOS/Bibliografia
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- Democracia e eleições
Diz-se que “a democracia é o pior dos regimes, excetuando-se todos os outros”. As eleições são a marca da democracia. Os eleitores votam em um candidato, de um elenco X, Y, Z… Na escolha do vencedor, diversos critérios podem ser acordados. Um sistema eleitoral é o elenco de critérios considerados justos para definir o candidato eleito. Um critério que associa o conjunto dos votos individuais a uma escolha coletiva é chamado Função de Bem-Estar Social.
Kenneth Arrow (Nobel de Economia/1972) construiu um conjunto mínimo de exigências consideradas razoáveis para uma tal função. Surpreendentemente, demonstrou, em 1951, um teorema segundo o qual, simplificadamente, não existem funções que satisfaçam simultaneamente os critérios desejáveis, ou seja, não existem sistemas eleitorais perfeitos.
O Teorema da Impossibilidade (Arrow) é tão intrigante quanto o Teorema da Indecidibilidade (Gödel) ou o Princípio da Incerteza (Heisenberg).
Compreendê-lo é fundamental para a compreensão do funcionamento da democracia.
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2 – Eleições e Maioria
É comum associar-se eleições à regra da maioria, mas isso seria natural apenas em embates com apenas dois candidatos, em universo de eleitores em que cada cabeça é um voto.
Se há mais do que dois candidatos, a situação é mais complexa; o mais votado pode ter menos votos que a maioria. Por outro lado, há situações em que os votantes têm diferentes pesos, sem que isso configure um procedimento antidemocrático. O Presidente dos EUA é eleito em um Colégio de Delegados, representantes dos Estados da união. Cada Estado tem um número de delegados correspondente a seu peso político. O candidato mais votado no Estado fica com a totalidade de votos dos delegados do Estado. Assim, os Estados são os verdadeiros eleitores, e eles têm diferentes pesos no processo.
Mesmo em eleições majoritárias regidas pela regra da maioria, os cargos mais importantes na gestão do Estado – os de Ministros, por exemplo – são preenchidos, ou deveriam sê-lo, com base na competência técnica e não pela regra da maioria.
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3 – Significado do Voto
Na escolha de um entre dois candidatos, o significado do voto como expressão da preferência pessoal é simples e a regra da maioria resolve. Quando há mais que dois candidatos, escolher um e ignorar os outros empobrece o significado da eleição. Para ser justo, seria necessário examinar todos os candidatos e ordená-los segundo nossa preferência. Se concorrem A, B, C e D, por exemplo, um voto seria um quarteto ordenado CBAD: o candidato C é o preferido, seguido do B, do A e do D.
Existem sistemas eleitorais, em uso em diversos países, em que votar significa ordenar os candidatos. Naturalmente, a apuração dos resultados torna-se mais complexa. Diferentes critérios, todos com alto grau de plausibilidade e aparência de justiça, podem conduzir a diferentes ganhadores das eleições. Um dos mais simples é o seguinte: o primeiro lugar no voto ganha 3 pontos, o segundo, 2, o terceiro, 1 e o quarto, 0. Seria algo parecido com a pontuação dos pilotos na Fórmula 1. É insólito, mas não parece injusto.
4 – Democracia e sistemas eleitorais
Um sistema eleitoral é uma regra que associa um conjunto de votos de um universo de eleitores a um candidato vencedor. Se cada cabeça é um voto, e há mais do que dois candidatos, a regra da maioria não dá conta da escolha.
Se cada voto é uma ordenação dos candidatos, existem diferentes sistemas que conduzem do conjunto das ordenações ao resultado da eleição. Um dos mais considerados é o seguinte: verifica-se o candidato menos votado em primeiro lugar, que é eliminado; os votos são, então, reordenados, sem o tal candidato; verifica-se novamente o candidato menos votado em primeiro lugar, que é eliminado; prosseguindo-se assim, chega-se ao confronto direto de apenas dois candidatos, que é decidido pela regra da maioria.
Outro sistema, similar ao anterior, e que parece igualmente justo, é o de eliminações sucessivas do candidato mais votado em último lugar. É desconcertante, no entanto, o fato de que, em situações específicas, os dois sistemas descritos podem conduzir a diferentes eleitos.
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5 – Democracia: Teorema de Arrow
Algumas características parecem desejáveis a todos os sistemas eleitorais: universalidade, independência das alternativas, unanimidade e ausência de ditadores são quatro delas.
Universalidade significa que todas as ordenações possíveis dos candidatos são votos aceitáveis. Independência das alternativas quer dizer que a preferência entre dois candidatos A e B não depende da participação ou não na eleição de outro candidato. A unanimidade quer dizer que, se em todos os votos, A está à frente de B, então no resultado final, A deve estar à frente de B. E a ausência de ditadores é a garantia de que não existe um eleitor (ditador) que, sozinho, com sua ordenação, determine o resultado da eleição.
Em 1951, o economista Kenneth Arrow publicou um texto (Social Choice and Individual Values) que o levaria a ganhar o Prêmio Nobel de Economia. Nele demonstrou o seguinte teorema: não existe sistema eleitoral que apresente simultaneamente as quatro qualidades supracitadas.
É, no mínimo, desconcertante.
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6. Democracia: Arrow e Popper
O avanço da ciência por meio da construção de sistemas formais cada vez mais abrangentes, consistentes e completos, foi um sonho que durou até Gödel, no início dos anos 1930: as limitações intrínsecas aos formalismos são, hoje, amplamente conhecidas. Popper já nos alertara, em seu conhecimento objetivo, que teorias formais nunca podem ser rotuladas como verdadeiras: são sobreviventes ao falseamento a que a realidade continuamente as expõe. Passado o abalo inicial, tais fatos foram assimilados e a ciência continuou a prosperar.
Ao anunciar os limites inerentes aos sistemas eleitorais de diferentes estirpes, Arrow provocou um abalo semelhante, mas que não pode significar uma diminuição na importância da democracia. Descrer da democracia pode ser apenas estimulante provocação. À moda da falseabilidade popperiana, a democracia é melhor de todos os sistemas, pois é o único que permite a correção de erros circunstanciais e inevitáveis nas escolhas de maneira pacífica, por meio das eleições.
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EXCERTOS
- Democracia e Regra da Maioria: BOBBIO
“A Regra da Maioria não é exclusiva dos sistemas democráticos, nem as decisões em tais sistemas são tomadas exclusivamente mediante tal regra… Esta errônea identificação deriva de uma interpretação equivocada da definição clássica da democracia como governo da maioria… A maioria indica quantos governam e não como governam. … O que caracteriza um sistema político democrático não é o princípio da maioria, mas sim o sufrágio universal. … Desafortunadamente, com muita frequência, as maiorias não se compõem dos mais livres, mas sim dos mais conformistas.”
“Ao falar dos limites de aplicação da regra da maioria, entende-se os limites que derivam da existência de matérias às quais tal regra não se aplica… São matérias em que a tomada de decisões confiada à regra do maior número apareceria como inoportuna, não adequada a seu fim, ou inclusive injusta. … Os valores, os princípios, os postulados éticos e naturalmente também os direitos fundamentais não estão sujeitos a opinião, nem são negociáveis. … Também escapam a seu escopo questões de natureza religiosa, científica, ou que envolvam a irreversibilidade. Podemos submeter a um referendo a escolha entre a monarquia e a república, mas não entre o cristianismo e o ateísmo…”
BOBBIO, Norberto – El filósofo y la política (Antología). México: Fondo de Cultura Económica, 1996
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2. O caso dos EUA
“Procura-se esconder (na Europa poderia parecer vergonhoso, caso conhecido), que a maioria dos cidadãos com direito a voto nos EUA não exercita tal direito. O mecanismo é simples. O título eleitoral não é entregue a cada um dos cidadãos, como acontece na Europa: os cidadãos é que devem tomar a iniciativa de requerê-lo, agindo como solicitante. E uma grande maioria não o faz…”
Luciano Canfora, em Crítica da Retórica Democrática, p. 28.
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3. O caso dos persas
… Têm o hábito (os persas) de deliberar sobre os negócios mais sérios depois de beberem muito; mas, no dia seguinte, o dono da casa onde estiverem reunidos traz novamente à baila a questão, antes de começarem a beber de novo. Se aprovam, ela passa; se não, abandonam o assunto. Às vezes, entretanto, dá-se o contrário: o que decidiram antes de beber passam a discutir novamente durante a embriaguez.
Heródoto (484-425 aC, Livro I Clio CXXXIII)
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4. Sistemas de Votação (FUNÇÕES DE BEM ESTAR SOCIAL)
MAIORIA
O vencedor será o candidato que tiver a maioria absoluta (50% + 1) dos votos.
PLURALIDADE
O vencedor será o candidato que tiver a maioria simples dos votos.
PONDERAÇÃO
Se o número de candidatos é igual a k, então, em cada voto, o primeiro lugar em cada ordenação tem k – 1 pontos, o segundo, k – 2 pontos, … o último, zero pontos; o vencedor será o candidato com o maior total de pontos. (Excetuando a diferença na pontuação, é o critério adotado na Fórmula 1.)
CONFRONTO DIRETO
Se um candidato ganhar o confronto direto com todos os outros, então ele será o vencedor.
ELIMINAÇÃO/PREFERÊNCIA
Após a votação/ordenação inicial, elimina-se o candidato com o menor número de 1ºs lugares, e reordenam-se os votos. Após a reordenação, elimina-se o candidato com o menor número de 1ºs lugares; e assim por diante, até o último sobrevivente, que será o vencedor.
*(Segundo Hodge e Klima, vale na Austrália, na Irlanda e na prefeitura de Londres)
ELIMINAÇÃO/REJEIÇÃO
Após a votação/ordenação inicial, elimina-se o candidato com o maior número de última colocação (mais rejeitado), e reordenam-se os votos. Após a reordenação, elimina-se o candidato mais rejeitado, e assim por diante, até o último sobrevivente, que será o vencedor.
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ANEXO
Um Exemplo: Candidatos A, B, C, D; 13 eleitores
PLURALIDADE MAIORIA
A | B | C | D | A | B | C | D | ||
1 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
2 | 2 | 3 | 1 | 4 | |||||
3 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
4 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
5 | 1 | 3 | 2 | 4 | |||||
6 | 3 | 1 | 4 | 2 | |||||
7 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
8 | 3 | 4 | 2 | 1 | |||||
9 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
10 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
11 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
12 | 2 | 1 | 3 | 4 | |||||
13 | 3 | 4 | 1 | 2 |
PONDERAÇÃO
A | B | C | D | A | B | C | D | ||
1 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
2 | 2 | 3 | 1 | 4 | |||||
3 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
4 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
5 | 1 | 3 | 2 | 4 | |||||
6 | 3 | 1 | 4 | 2 | |||||
7 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
8 | 3 | 4 | 2 | 1 | |||||
9 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
10 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
11 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
12 | 2 | 1 | 3 | 4 | |||||
13 | 3 | 4 | 1 | 2 |
REJEIÇÃO
A | B | C | D | A | B | C | D | ||
1 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
2 | 2 | 3 | 1 | 4 | |||||
3 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
4 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
5 | 1 | 3 | 2 | 4 | |||||
6 | 3 | 1 | 4 | 2 | |||||
7 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
8 | 3 | 4 | 2 | 1 | |||||
9 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
10 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
11 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
12 | 2 | 1 | 3 | 4 | |||||
13 | 3 | 4 | 1 | 2 |
PREFERÊNCIA
A | B | C | D | A | B | C | D | ||
1 | 3 | 4 | 1 | 2 | |||||
2 | 2 | 3 | 1 | 4 | |||||
3 | 2 | 4 | 3 | 1 | |||||
4 | 2 | 1 | 4 | 3 | |||||
5 | 1 | 3 | 2 | 4 | |||||
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Pluralidade: Maioria: Ponderação: Rejeição: Preferência:
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Bibliografia
BOBBIO, Norberto – El filósofo y la política (Antología). México: Fondo de Cultura Económica, 1996.
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DAHL, Robert A. – Sobre a Democracia. Brasília: Editora UnB, 2009.
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O “homem comum”: perspectivas
Nílson José Machado njmachad@usp.br
Sumário
1- Animais, pessoas, massas
2- O hábito, o monge, a massa
3- Meio, médio, medíocre
4- Totalitarismos antigos e modernos
5- Democracia e Educação
6- Voto: direito ou dever?
7- O homem “comum”
8- Ortega e as massas
9- Canetti e as massas
10- Consciente, inconsciente, massa
11- O anonimato e a massa
12- Elite e massa
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1 – Animais, pessoas, massas
O animal satisfaz suas vontades imediatas; os seres humanos buscam a construção de uma consciência moral, uma vontade de ter certas vontades e não outras. A consciência pessoal é o final de um percurso que se inicia na heteronomia, na obediência a normas estabelecidas por outros, e que culmina com a autonomia, a obediência a normas que criamos, ou que aceitamos como nossas por considerarmos legítimas.
A reunião de muitas pessoas com metas racionalmente difusas, unidas apenas por emoções ou paixões coletivas, revela que a multipessoalidade transmuta-se facilmente em multidão, e a pessoalidade regride para a heteronomia: está constituído o fenômeno da massa. As massas são naturalmente heterônomas: basta um grito, uma incitação e a explosão é decretada.
Quaisquer que sejam seus componentes, as massas não articulam as consciências pessoais, mas agregam as animalidades. Anestesiada a consciência pessoal, uma assembléia de sábios ou uma reunião de imbecis pode conduzir aos mesmos resultados.
2 – O hábito, o monge, a massa
O hábito não faz o monge, mas ternos ou vestidos longos não são convenientes para a praia, nem sungas ou biquínis para as salas de aula. Certos ambientes sugerem vestimentas e comportamentos adequados, ou se instala uma dissonância. Se o tema é regulado por normas, quem as viola deve ser responsabilizado; sem normas explícitas, o dissonante deve ser alertado sobre o significado de seu ato, na expectativa do restabelecimento da harmonia.
Imaginemos que vestes inadequadas de um(a) aluno(a) provoquem uma dissonância na escola. Não se justificam, em hipótese alguma, nem a agressão dos colegas, nem reações extremadas da instituição. Xingamentos ou linchamentos são próprios das massas ignaras, não são compatíveis com ações civilizadas. Educação é construção da consciência pessoal, que é o oposto da massificação. Se a instituição de ensino reprime violentamente manifestações pessoais, mesmo as dissonantes, é porque abdicou da autoridade educacional e desistiu da Educação: sobrou a Inquisição.
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3 – Meio, médio, medíocre
Aristóteles cunhou a máxima “A virtude está no meio”; mais de dois mil anos depois, Whitehead afirmou: “A virtude encontra-se entre dois vícios”. O preceito básico no budismo é “o caminho do meio”. No senso comum, a ideia de que os extremos e os extremistas não são virtuosos tem fácil guarida. Não se pode, no entanto, deduzir daí um elogio desequilibrado da média ou do morno, que podem ser sinônimos de parar no meio, ou de simples mediocridade.
A média é o motor da estatística e tudo o que dela muito discrepa não é levado a sério. Mas, tal como os cisnes negros, mesmo situando-se nos extremos da Curva Normal, os eventos raros são tão reais quanto os cortejadores da média.
Na ação humana, tanto quanto aos extremos, o meio também se opõe ao fim, sendo mero coadjuvante do mesmo. Esquecer-se do fim, ou tornar meta o que é apenas um meio, é a forma básica da mediocridade. Os meios de subsistência não podem substituir nossos projetos: tal ocorrência é o real significado de uma vida medíocre.
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4 – Totalitarismos antigos e modernos
A vida é feita de escolhas, algumas decisivas, cruciais, muitas inofensivas, veniais, todas constitutivas, pessoais.
Nos regimes democráticos, elegemos nossos governantes. Como cidadãos, tendo por base os valores socialmente acordados, valorizamos as diferenças pessoais, articulamos interesses pessoais e coletivos, partilhamos sonhos, cultivamos consensos, arquitetamos projetos.
Os regimes totalitários à moda antiga recorriam à força para destruir a unicidade da pessoa e padronizar o sentido das ações coletivas. Os totalitarismos modernos são mais sutis. A pessoalidade é minada por meio da limitação ou da extinção das escolhas cruciais, reservadas aos detentores do poder. Já as escolhas veniais, irrelevantes para o projeto coletivo, são convenientemente fomentadas: crédito facilitado, consumo de supérfluos, foco nas aparências, nos prazeres sensoriais etc.
Em tal cenário, a Ética torna-se um luxo, a mediocridade grassa, e chega a parecer ridículo ponderar sobre o sentido último da vida.
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5 – Democracia e Educação
Dewey (1916) já alertara: sufrágio universal e universalização da educação básica de qualidade são condições inextricáveis da vida civilizada. Não é possível imaginar uma democracia plena no universo infantil, ou em espaços de convivência carentes de consciência pessoal, fruto de uma educação efetiva, formal ou informal.
Mortimer Adler, em sua Paideia(1985), já sublinhara com ênfase: o não atendimento conjunto ou o cumprimento parcial de tais condições corrompe as ideias de democracia e de educação. Educação sem liberdade de expressão, sem participação nos projetos, sem comunhão de valores, não pode ser de qualidade e é tão indesejável quanto a simples escravidão. Mas o sufrágio universal sempre pressupõe a consciência pessoal e a responsabilidade, frutos de uma boa educação.
A nenhum ser humano deveria ser negada a vivência plena das duas condições deweyanas. Privar alguém de uma delas é como aliviar de uma das penas de morte quem fora condenado independentemente a duas de tais penas.
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6 – Voto: direito ou dever
Há direitos que são inerentes a certos deveres. O direito ao voto parece ser dessa estirpe. Ele é um nobre instrumento por meio do qual o poder político é transferido temporariamente do povo a seus representantes. Assim como a palavra, o voto não deve ser comprado ou vendido. Para ser fiel a seu desígnio, deve circular de modo dadivoso, como uma manifestação de confiança, tecendo a imensa e vital rede de laços sociais.
Em sintonia com tal fato, o voto não deveria ser obrigatório. O índice de abstenção nas eleições é o primeiro e mais importante sintoma da saúde civil de uma sociedade. A consciência do valor do direito ao voto seria mais que suficiente para constranger cada cidadão a cumprir seu dever.
Observando os carros nas ruas, notamos que a livre escolha pessoal faz com que quase 90% deles sejam das cores preta, prata, cinza ou branca. Se, no entanto, uma lei nos proibir de escolher outra cor, muitos protestarão. De modo similar, a obrigação de votar também gera certo desconforto.
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7 – O homem “comum”
Cada ser humano é único, singular; como falar, então, em homem “comum”? Três são os sentidos principais.
Em primeiro lugar, “comum” é o universal em sentido ontológico: homo laborans, homo faber, homo loquens, homo ludens, homo sapiens, homo ridens, zoon racionalis, zoon politicus etc. Nesse sentido, “comum” advém da racionalidade lógica e denota o genérico, o essencial.
Em segundo lugar, “comum” é o que é tornado uniforme em sentido econômico: a internacionalização da produção conduz à padronização nos gostos, à submissão ao “deus” mercado. Nesse sentido, o “comum” origina-se na operacionalidade do sistema produtivo.
Em terceiro lugar, “comum” é o que partilhamos com os outros por exigências políticas da vida em comunidade. Nesse sentido, o “comum” aponta para o coletivo e nasce da oposição entre o público e o privado.
Quando o logos é ditado pelo econômico, o uniforme impõe-se como universal, o público sufoca o privado e o homem “comum” pode tornar-se um monstro frankensteiniano.
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8 – Ortega e as massas
A crescente aglomeração humana é notada desde o início do século XX. As pessoas acumulam-se nas ruas, nos cinemas, nas lojas, nos aeroportos. Falar de multidões é pensar apenas a dimensão quantitativa do fenômeno. O aspecto crucial, de natureza sociológica, é a massificação.
Em A rebelião das massas (1926), Ortega y Gasset registra: massa é todo aquele que não valoriza a si mesmo, que se sente “como todo mundo”, e, entretanto, não se angustia, sente-se à vontade ao sentir-se idêntico aos demais. Massa não é uma classe social, mas um modo de ser do homem, ao trocar sua singularidade pelo conforto da média. Para Ortega, pelo modo de produzir, o homem de ciência atual é o protótipo do homem massa.
Naturalmente, a extensão para a totalidade da população de direitos que eram reservados a poucos deve ser louvada e cultivada. O problema a ser enfrentado é, segundo Ortega, o fato de que a alma vulgar, sabendo-se vulgar, tem o denodo de afirmar o direito à vulgaridade e o impõe por toda a parte.
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9 – Canetti e as massas
Para examinar as relações sugeridas pelo título (Massa e Poder, 1960) do que seria sua obra prima, Elias Canetti alinha quatro características principais da ideia de massa:
– A massa quer crescer sempre. Assim como dinheiro não assume ares de capital senão quando assimila a vocação básica para o crescimento, uma aglomeração não se caracteriza como uma massa se não apresentar tal inexorável tendência;
– No interior da massa reina a igualdade absoluta. Massificação significa abdicação da individualidade. Nenhuma diversidade é levada em conta e consciência pessoal é inexistente.
– A massa busca permanentemente a densidade. O crescimento da massa não é apenas um espraiamento horizontal, mas é sempre acompanhado de uma progressiva densificação, em que as identidades são cada vez mais indiferenciadas.
– A massa necessita de uma direção. Ainda que a heteronomia seja tácita, a massa é sempre suscetível a obedecer acriticamente palavras de ordem externas.
Eis aí, então, os perigos da massificação.
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10 – Consciente, inconsciente, massa
O fenômeno da consciência é um problema fundamental para filósofos e estudiosos da neurociência. Normalmente, falamos de um “indivíduo consciente”, ou da “consciência pessoal”. Na Psicanálise, as ideias de consciente e de inconsciente estão associadas primordialmente aos indivíduos. O inconsciente é o lugar das lembranças pessoais reprimidas, dos impulsos socialmente inaceitáveis.
Com Jung, a noção de inconsciente transcendeu o nível individual. O inconsciente coletivo constitui a camada mais profunda da psique humana. Seu conteúdo são materiais arquetípicos, padrões socialmente herdados, comuns a diferentes épocas e culturas.
Não existem, no entanto, abordagens teóricas que associem à consciência um caráter coletivo. Como negação da individualidade, a massificação consiste justamente na abdicação da consciência pessoal, sem a contrapartida da emergência de uma “consciência coletiva”. A ideia de uma “massa consciente” é o exemplo mais patente de uma contradição de termos, de um oximoro.
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11 – O anonimato e a massa
No início do século XX, diversos autores chamaram a atenção para o fenômeno das massas, em que a renúncia à individualidade anula ou amortece a consciência pessoal. Bem antes disso, a história registra uma oscilação ancestral entre o desafio da construção da autonomia e a conveniência e o conforto da heteronomia.
Segundo Michael Oakeshott (2000), o século XII talvez tenha sido o ápice do anonimato do homem comum. Do século XIII em diante, sobretudo na Itália, a valorização da singularidade iniciou um percurso que conduziria à Revolução Inglesa do século XVII, e à Revolução Francesa no século XVIII. A individualidade tornou-se, então, um ingrediente fundamental da felicidade pessoal.
Desde o século XVI, no entanto, há registros na Europa da existência de indivíduos que não se sentem confortáveis em assumir as responsabilidades pelo seu destino. Quando tal resistência tácita torna-se uma negação explícita do valor da autonomia, estão criadas as condições para a emergência do homem massa.
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12 – Elite e massa
A oposição elite/massa parece tão ingênua quanto sua irmã gêmea, a identidade/diferença. Iguais como cidadãos, somos diferentes como pessoas, e não há nisso nada de complexo ou paradoxal.
Em todas as épocas e culturas, é possível distinguir uma minoria dirigente e uma maioria de cidadãos. Limitado pelas demandas do cotidiano, o homem comum tem participação limitada pelo sistema de representação, abdicando do exercício direto do poder político.
Há diferentes critérios para a caracterização das elites, e todos podem ser facilmente corrompidos: a elite política, pela massificação dos partidos; a elite intelectual, pela tecnocracia; a elite econômica, pelo poder de compra do dinheiro.
A existência de uma democracia não está associada à inexistência de elites, mas sim ao modo como ascendem ao poder. Ao longo da História, as Revoluções conduziram apenas à substituição de uma elite dirigente por outra.
Das mais temerárias é a elite de funcionários públicos, controladores da burocracia estatal._
******* novembro2010
Conservação/Transformação: Desvios clássicos e omeletes
microensaios
Nílson José Machado njmachad@usp.br
SUMÁRIO______________________________________
1 – Educação: conservação/transformação
2 – A conservação negativa
3 – Quatro formas básicas de reacionarismo
4 – Tecnologias: fascínio e fastio
5 – Durabilidade e conservação
6 – Ortega e as massas
7 – Normas: duas fontes e um desvio
8 – O mistério da autoridade
9 – Totalitarismos antigos e modernos
10- Síndrome da omelete
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1 – Educação: conservação/transformação
A palavra “Educação” pode ser associada aos verbos latinos ducere (conduzir) e educere (conduzir para fora, extrair). Em todas as culturas, a Educação tem o sentido de acolher os mais jovens no quadro social existente, o que seria sua dimensão conservadora. Mas a Educação também significa dar a voz a quem chega, abrindo a possibilidade de transformações; sem tal abertura, a vida seria congelada e se estiolaria.
Embora a transformação e a conservação sejam inerentes à ação educacional, é comum um elogio automático a uma delas, e uma rejeição sistemática da outra. É como se a transformação fosse um valor em si, e a conservação, um mal a ser evitado.
Tais conotações são meros mal-entendidos. Em todos os âmbitos, o equilíbrio entre a transformação e a conservação é uma necessidade vital. Não começamos do zero a cada novo dia, nem é possível desconsiderar a necessidade de mudanças. A consciência sobre o que deve ser conservado e o que deve ser transformado é o objetivo maior do ato educativo.
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2 – A conservação negativa
Um jogador erra uma jogada de efeito e é criticado pela torcida: “Não inventa!” Ao conduzir o filho à escola, o pai adverte: “No caminho, não fale com estranhos”. Uma sugestão para alterar uma rotina no trabalho é recusada pelo chefe: “Não se mexe em time que está ganhando”.
Nos casos citados, a melhor das intenções pode dar lugar às piores conotações do conservadorismo: limitar-se a fazer o mínimo exigido, não procurar conhecer mais do que já se conhece, acomodar-se ao que usualmente já se faz. Rigorosamente seguidas, tais recomendações levariam ao congelamento geral da vida.
Incentivar a criatividade, valorizar a abertura para o outro, manter sintonia fina com as circunstâncias, reconhecendo que a mudança pode ser necessária até para permanecermos no mesmo lugar, são contrapontos a tais supostas máximas.
A transformação ou a conservação não são intrinsecamente positivas ou negativas. E não nascemos com um “Manual do Fabricante”: o discernimento a respeito é construído na lida diária.
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3 – Quatro formas básicas de reacionarismo
Em A retórica da intransigência, Albert Hirschman caracteriza o que considera três vertentes principais do pensamento reacionário, ao longo da História, diante de uma perspectiva de mudança: a futilidade, a perversidade e a ameaça.
O argumento da futilidade considera que as mudanças não surtirão efeito algum; após algum tempo, tudo voltará a ser como antes. O argumento da perversidade garante que as transformações tornarão a situação ainda pior. O da ameaça sugere que as ações propostas poderão por em risco conquistas já realizadas.
Nos três casos, a retórica do reacionarismo conduz ao conformismo, que é muito distinto de uma conservação do statu quo a partir de um juízo consciente sobre os méritos do que vige.
Uma quarta forma básica do pensamento reacionário manifesta-se quando, diante de uma proposta de mudança, afirma-se com pretensa sabedoria: “é interessante do ponto de vista teórico, mas na prática não funciona”. É quase impossível contra-argumentar sem parecer agressivo. Mas dá.
4 – Tecnologias: fascínio e fastio
A tecnologia é um poliedro de mil faces, algumas assustadoras, outras muito sedutoras. A cada dia um novo produto surge no cenário, com uma mensagem tão atraente quanto enganosa: “o novo é melhor que o velho”, “o novo é melhor que o velho”… Como se não fosse parte da cultura de onde emerge, a tecnologia renega o deus Janus e cultua apenas o futuro.
Ao aceitar o bônus da sedução, a tecnologia assume o ônus do inescapável risco: amor e ódio tangenciam-se, aqui e ali. Uma maioria de entusiastas convive com um grupo crescente de enfastiados e com o radicalismo de uns poucos que rejeitam as formidáveis ferramentas.
Nada parece mais extemporâneo, no entanto, do que a discussão sobre o uso ou a recusa da tecnologia. Como a técnica nos primórdios da civilização, a tecnologia encontra-se disseminada na sociedade. Sem qualquer melancolia, resta-nos avançar na consciência do significado de sua presença. Se o fascínio automático é típico de neófitos, a recusa sistemática é, sem dúvida, patética.
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5 – Durabilidade e conservação
Como as pessoas, há palavras simpáticas e antipáticas. A ascensão da sustentabilidade ao pódio do politicamente correto tornou a durabilidade uma palavra simpática. O fascínio das tecnologias, da busca do novo a qualquer custo, fez da conservação uma palavra antipática. As duas, no entanto, mantêm laços estreitos.
Para clarear a questão, M. Oakeshott produziu um texto seminal: O que é ser conservador (1991). Afirma que “onde quer que exista uma identidade firme, é provável que exista uma disposição conservadora”. Associa a voracidade das mudanças e o esgarçamento dos laços sociais. Objetos rapidamente descartados, como celulares ou automóveis, refletem especularmente a fragilidade das crenças morais, das relações de amizade, das tradições mais caras, dos hábitos mais fecundos.
Destaca que o respeito às regras de um jogo é fundamental para sua constituição. É possível mudá-las, mas é preciso compostura e paciência: aí residiriam as principais diferenças entre ser ou não ser conservador.
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6 – Ortega e as massas
A crescente aglomeração humana é notada desde o início do século XX. As pessoas acumulam-se nas ruas, nos cinemas, nas lojas, nos aeroportos. Falar de multidões é pensar apenas a dimensão quantitativa do fenômeno. O aspecto crucial, de natureza sociológica, é a massificação.
Em A rebelião das massas (1926), Ortega y Gasset registra: massa é todo aquele que não valoriza a si mesmo, que se sente “como todo mundo”, e, entretanto, não se angustia, sente-se à vontade ao sentir-se idêntico aos demais. Massa não é uma classe social, mas um modo de ser do homem, ao trocar sua singularidade pelo conforto da média. Para Ortega, pelo modo de produzir, o homem de ciência atual é o protótipo do homem massa.
Naturalmente, a extensão para a totalidade da população de direitos que eram reservados a poucos deve ser louvada e cultivada. O problema a ser enfrentado é, segundo Ortega, o fato de que a alma vulgar, sabendo-se vulgar, tem o denodo de afirmar o direito à vulgaridade e o impõe por toda a parte.
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7 – Normas: duas fontes e um desvio
A vida em sociedade pressupõe uma regulação por normas, diante das quais somos todos iguais. Duas são as fontes básicas de normas. Na primeira, o ponto de partida é um fato, que traduz um valor socialmente acordado e inspira uma norma para seu cultivo. Na segunda, o ponto de partida é um valor, que inspira uma norma, em busca da instauração de um fato. A tradição inspira normas do primeiro tipo; já o preceito “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” constitui uma norma do segundo tipo.
Ao refletir sobre o direito numa perspectiva semiótica, Greimas sintetizou o nascimento de normas em termos do par prescrição/proscrição. Uma norma surge para promover ou para proibir uma ação; para consolidar um costume ou para instaurar uma prática. Os eixos prescrever/não prescrever e proscrever/não proscrever, no entanto, precisam ser independentes. A corrupção do sistema ocorre quando as circunstâncias são tais que uma prescrição disfarça uma proscrição, ou vice versa.
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8 – O mistério da autoridade
A autoridade refere-se sempre a uma ação sobre os outros. Trata-se de uma coação legítima consentida. Sempre pressupõe o reconhecimento; sem ele, ela pode ter sido, mas já era. Explicitar o fundamento do consentimento, do reconhecimento é um imenso desafio teórico.
A autoridade não se funda na simetria da argumentação, nem é criada por regras de maioria. Eleições legitimam uma autoridade, não a instituem; se ela não existia antes, não existirá depois. Um acidente de percurso pode eleger um apedeuta, mas não o transformará em autoridade, se, ainda que misteriosa, ela já não existia, latente.
A autoridade não advém de um diploma, de uma certificação formal; se não se fundar numa competência efetiva, evanescerá, como um cartão de crédito sem fundos.
Como na Ética e na dádiva, a autoridade pressupõe o exercício da assimetria. Seu reconhecimento decorre de uma reciprocidade desnivelada, de uma ordenação não hierárquica. Em seu espaço sutil, é mais do que um conselho e menos do que uma ordem.
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9 – Totalitarismos antigos e modernos
A vida é feita de escolhas, algumas decisivas, cruciais, muitas inofensivas, veniais, todas constitutivas, pessoais.
Nos regimes democráticos, elegemos nossos governantes. Como cidadãos, tendo por base os valores socialmente acordados, valorizamos as diferenças pessoais, articulamos interesses pessoais e coletivos, partilhamos sonhos, cultivamos consensos, arquitetamos projetos.
Os regimes totalitários à moda antiga recorriam à força para destruir a unicidade da pessoa e padronizar o sentido das ações coletivas. Os totalitarismos modernos são mais sutis. A pessoalidade é minada por meio da limitação ou da extinção das escolhas cruciais, reservadas aos detentores do poder. Já as escolhas veniais, irrelevantes para o projeto coletivo, são convenientemente fomentadas: crédito facilitado, consumo de supérfluos, foco nas aparências, nos prazeres sensoriais etc.
Em tal cenário, a Ética torna-se um luxo, a mediocridade grassa, e chega a parecer ridículo ponderar sobre o sentido último da vida.
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10 – Síndrome da omelete
Em sentido humano, a vida é ação: ação que transforma, ação que conserva.
Continuamente enfrentamos situações que exigem discernimento entre o que deve ser mantido e o que deve ser mudado, tanto no que se refere a hábitos quanto em relação a normas que regulam a vida social.
Projetamos algo, mas a análise das ações necessárias nos paralisa. Buscamos o novo, mas não gostamos de abdicar do velho. Desejamos a transformação sem o desconforto da mudança. Queremos a omelete, mas resistimos a quebrar os ovos.
O fato, no entanto, é que não existe transformação sem conservação. O novo enraíza-se no velho, mesmo quando o nega ou transcende. Não existem projetos sem metas eleitas em cenário de valores, o que sempre traduz conservação.
Por outro lado, dado que a vida é chama, cada instante a ser vivido é sempre novo; consumimo-nos continuamente, a vida não se conserva.
Escapamos da síndrome da omelete a partir da consciência de que o ovo permanece na omelete: ela é a nova forma e o nome novo do ovo.
________________________________________________28/02/2013
Pandemia: Mudança, Revolução, Catástrofe, Metamorfose
Nílson José Machado/njmachad@usp.br
Um exercício intelectual interessante e necessário tem sido projetar como será o mundo após a atual pandemia provocada pelo coronavírus. O que resultará da sofrida experiência mundialmente vivenciada? Haverá uma mudança importante na organização social, política e econômica dos diversos países, ou as mudanças serão periféricas e voltaremos simplesmente à ordenação anterior? Mais especificamente, que ideia pode ser mais adequada para caracterizar o futuro que virá? A de uma mudança perfunctória, de uma revolução politicamente violenta, de uma catástrofe nos costumes, de uma metamorfose radical? Vagando por entre as contingências, seguem algumas considerações a respeito de tal questão.
Em cada esquina, Heráclito nos lembra: o rio da vida escorre entre nossos dedos, diverso, inexorável, irreversível. A rede realiza, concreta e metaforicamente, o permanente estado de atualização da vida. A mudança é a regra, a transformação é permanente. “Nada do que foi será/de novo do jeito que já foi um dia”, registra com sabedoria a canção popular. Da pandemia certamente resultarão mudanças.
Na realização das mudanças, há situações em que predominam a paciência e as reformas evolucionárias, logrando-se a transformação com a harmonia possível, e há outras, revolucionárias, em que não se resiste ao apelo à violência, destruindo-se uma ordenação para substituí-la por outra, considerada desejável. Tais revoluções não se estabilizam no tempo, funcionando como ruptura violenta, essencialmente não consensual na sociedade, para a instauração de nova ordem. Reforma ou revolução? Eis a questão tantas vezes já evocada ao longo da história. Um aumento significativo nos impulsos dadivosos, uma incidência maior de ações solidárias e misericordiosas, tudo isso será assimilado pelas ideias maiores que parecem permanecer inabaladas, ou provocará uma revolução, ou pelo menos uma transformação mais duradoura nos comportamentos sociais?
Como se sabe, cientificamente, as transformações revolucionárias sempre traduzem catástrofes do ponto de vista técnico, como bem caracterizou o matemático René Thom, com sua Teoria Matemática das Catástrofes. Arriscamos uma síntese sumaríssima de tal teoria, com a esperança de nos atermos às ideias fundamentais do tema. Tecnicamente, quando analisamos padrões de variação entre duas grandezas, uma catástrofe é uma ruptura com um padrão de variação, conduzindo imediatamente a outro padrão: a matemática que descreve padrões de regularidade na mudança de padrões é a teoria das catástrofes, formulada por Thom em 1972. Por exemplo, um pintinho cresce dentro do ovo, antes de nascer, obedecendo a determinado padrão; chegada a hora do nascimento, há a ruptura, o rompimento da casca do ovo, nasce o pintinho, que terá seu crescimento doravante regulado por outro padrão. A quebra da casca representa a mudança de um padrão de crescimento para outro, é uma catástrofe. Em outro contexto, as revoluções em sentido político – a Revolução Francesa, por exemplo – são também catástrofes no sentido de uma mudança no padrão, na ordem vigente. O nível de conhecimento necessário sobre o tema para se lograr não somente um reconhecimento de padrões, mas principalmente uma teoria, uma visão ampla sobre a dinâmica das transformações entre os diversos padrões praticamente nos afastam da caracterização das mudanças ocorridas com a atual pandemia como algo que possa ser inserido no âmbito das catástrofes estudadas por Thom.
Não parece justo, no entanto, situar as profecias pós-pandemias apenas no âmbito das mudanças evolucionárias. Há algo de muito profundo nas mudanças associadas ao mundo que prosseguirá, e que merece ser mais atentamente perscrutado. Para tanto, vamos seguir os passos do sociólogo Ulrich Beck, com seu fecundo livro intitulado Metamorfose (RJ, Zahar, 2028). Para traduzir a ideia de metamorfose, recorremos às palavras de Beck:
“Vivemos num mundo que não está apenas mudando, mas está se metamorfoseando. Mudança implica que algumas coisas mudam, porém outras permanecem iguais – o capitalismo muda, mas alguns aspectos do capitalismo continuam como sempre foram. A metamorfose implica uma transformação muito mais radical, em que as velhas certezas da sociedade moderna estão desaparecendo e algo inteiramente novo emerge.” (p.15)
Refletindo sobre o mundo pós-pandêmico a partir do insight de Beck, somos levados naturalmente a associar tal mundo a uma metamorfose do mundo atual, devendo ocorrer uma transformação radical em algumas das ideias capitais do mundo econômico instituído. Algumas das razões de tal associação são reunidas a seguir.
Consideremos, por exemplo, o fenômeno da dádiva. Ele não poderá restringir-se mais apenas aos impulsos generosos periféricos às ideias centrais do capitalismo vigente. O motor da doação é permanente busca da criação de laços com os outros, não se limitando a eventuais alívios de consciências em crise, ou a motivações de natureza mercantil. Ou aprendemos tal fato com a pandemia, ou nada aprendemos de estrutural, de substancioso, e as transformações eventuais não ultrapassam o nível das mudanças contingenciais.
Outro ponto importante é o fato de que a ciência, ou o conhecimento científico, ter tido seu nome repetido muitas vezes em vão, sem uma compreensão mínima dos fundamentos da ciência, da ideia de verdade a ela associada, que envolve a experimentação descritiva, o manejo de dados, mas não pode se eximir de considerações éticas que ultrapassam em muito o nível das descrições. À ciência não é possível eximir-se de dividir a responsabilidade com a ética pelas recomendações e pelas prescrições. O fato subjacente mais notável é a transformação do conhecimento no principal fator de produção, com as limitações inerentes de seu tratamento como mercadoria em sentido industrial, especialmente no que tange à indústria farmacêutica.
A transformação mais incisiva ainda nas mudanças estruturais que a pandemia ajudou a explicitar, especialmente na consideração do trabalho das equipes de profissionais da saúde, sem distinções hierárquicas, do mais eminente médico ao mais humilde dos auxiliares de enfermagem, é o renascimento de uma robusta ideia de profissionalismo. Em tal tarefa, é fundamental reconhecer e desenvolver duas dimensões especiais de tal questão: a distinção fundamental para todo trabalhador entre salário e renda, que, absolutamente, não são sinônimos. De alguém que vive do próprio salário não se diz que “vive de rendas”. Viver de rendas é viver de fazer dinheiro fazer mais dinheiro, como no mercado de capitais. O Imposto de Renda em países como o Brasil é, essencialmente, um imposto de salários.
Outra dimensão especial da transformação estrutural no caminho da caracterização da metamorfose do mundo atual catalisada pela pandemia é o fato de que a metamorfose do mundo está visceralmente associada à metamorfose do trabalho. Se o conhecimento se transformou, como é amplamente reconhecido, no principal fator de produção, urge reconhecer que tal valor não pode ser “distribuído” por decreto, mas apenas pela Educação. Como dizia um cantor popular nordestino, “mas doutor, uma esmola/para um homem que é são/ou o mata de vergonha/ou vicia o cidadão”. Esta, a meu ver, seria a dimensão primordial da transformação estrutural que caracteriza uma possível metamorfose no mundo capitalista: a metamorfose do trabalho, que deveria ser especialmente valorizado em todas as suas manifestações, das mais humildes às tecnicamente mais avançadas. As diferenças salariais precisariam ser reduzidas, garantindo-se um valor mínimo suficiente para uma vida com dignidade em qualquer nível de participação na produção de bens e valores. A mitigação das desigualdades escandalosas na distribuição da riqueza produzida deveria ser realizada essencialmente por meio da valorização do trabalho, e não pela distribuição de benefícios tópicos, que “viciam o cidadão”, como propõe o poeta popular. Os serviços de assistência médica deveriam, naturalmente, prover os carentes de saúde de todos os meios de tratamento de modo absolutamente gratuito, respeitando-se também aqui o insight do poeta nordestino…
******01-06-2020
ÉTICA E ESPELHOS
Nílson José Machado
1 – Sobre espelhos, rostos e crenças
Ver para crer é uma máxima ambígua: também se poderia afirmar que é preciso crer para ver.
Nada traduz mais legitimamente a identidade de uma pessoa do que seu rosto. Não duvidamos de sua existência e até concordamos: os traços fisionômicos revelam a alma, os sentimentos mais profundos. Mas ninguém pode ver diretamente o próprio rosto, como observamos nossas mãos ou nossos pés; só temos acesso a ele recorrendo a intermediários, como fotos ou espelhos.
Muitos objetos científicos somente podem ser estudados de modo indireto, com a ajuda de instrumentos que registram suas presenças por meio de determinados efeitos; os reflexos que determinam em outros objetos são considerados suficientes para caracterizar sua existência.
Situações análogas ocorrem em questões atinentes à espiritualidade e à religiosidade. Nas complexas relações entre o humano e o divino, entre o sagrado e o profano, nem sempre nos damos conta das mensagens indiretas, ou de como a natureza funciona como um espelho de Deus.
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2 – Ética, Talião e o juiz de futebol
A tentação é forte: fazer aos outros o que eles nos fazem. Bateu, levou. Olho por olho, dente por dente. Lei de Talião. Espelho.
A aparente consonância com a Regra de Ouro – Não faça aos outros aquilo que não gostaríeis que fizessem a ti – serve de conforto. Mas a simetria não conduz à Ética. Mesmo que todo mundo roube, isto não se tornará justo. A Ética pressupõe a decisão unilateral, a assimetria. Uma pessoa íntegra não altera seus juízos, mesmo entre lobos. Em regimes democráticos, o recurso à desobediência civil é o último reduto da integridade pessoal.
Uma situação indiciária é a das leis que não consideramos justas, mas das quais procuramos tirar proveito porque “temos direito”. Quotas, aposentadorias, variados benefícios legais, mesmo rejeitados no nível do discurso, são reivindicados na prática. A Ética se esvai em conveniências.
Como dizia mestre José Mário Azanha, o juiz de futebol não é desonesto apenas quando favorece nosso adversário: também o é quando rouba para nosso time.
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3 – Palavras espelhadas: Autoridade e responsabilidade
Em alguns contextos, é difícil argumentar sobre a necessidade da autoridade para viabilizar a vida em comum. A associação frequente e indevida entre autoridade e autoritarismo é imediatamente ativada, contaminando o discurso e inibindo a assertividade em certos temas.
Um antídoto para tal contaminação é a lembrança de que não existem duas palavras mais inextricavelmente ligadas do que autoridade e responsabilidade. Adentra-se o cenário de um discurso competente sobre a autoridade mais facilmente pela porta da responsabilidade. Quem reluta em assumir a responsabilidade pelas ações de outros nunca poderá exercer qualquer autoridade sobre eles.
A ideia de responsabilidade é um recurso especular absolutamente consistente, uma vez que não existe “autoridade irresponsável”: um descolamento entre as duas noções provoca automaticamente uma destruição mútua.
Uma reflexão sobre a função da autoridade, em qualquer nível, pressupõe, pois, um debruçar-se necessário sobre a responsabilidade inerente.
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4 – Palavras espelhadas: Dádiva e laço
O alerta foi dado por Mauss, em seu seminal Ensaio sobre a Dádiva (1927): a despeito da crescente mercantilização das relações sociais, certos “bens” precisam continuar a circular de forma dadivosa. A vida, a palavra, o voto, a confiança são valores que não circulam por meio de relações de compra e venda. O conhecimento também é reconhecido como um valor que não se deixa apreender completamente pelas relações mercantis.
Mas o elogio da dádiva é visto de modo enviesado pelos defensores do mercado: um discurso sobre o tema parece antiquado ou restrito ao terreno religioso.
Uma especular porta de entrada para um discurso sobre a dádiva pode ser o tema da criação de enlaces humanos, inerentes às relações dadivosas. O motor da dádiva é a criação de laços com os outros: um presente simboliza tal busca e é impossível conceber um ser humano sem vínculos de qualquer natureza.
Sem dúvida, é mais fácil falar sobre laços do que sobre doações materiais, frequentemente corrompidas pelo deus mercado.
___________________________________Nílson 18/nov/2014
Máscara: pessoalidade, prosopopeia, hipocrisia, violência, pandemia…
Nílson José Machado
A palavra “máscara” tem uma etimologia interessante: persona, em latim, era a máscara usada pelos atores no teatro. Trata-se de uma palavra derivada de per + sonare, ou “soar através de”. Daí derivam palavras como “personagem”, “personalidade”, “pessoa”. Em sua origem, a ideia de pessoa está associada à representação de papéis. Uma máscara recobrindo a face era usada pelos atores, sempre do sexo masculino, que representavam inclusive o papel de mulheres.
A ideia principal que sobrevive é a de que nos constituímos como pessoa representando papéis. O primeiro papel que representamos é o de “filho de…” Depois, crescemos à medida que ampliamos e enriquecemos o feixe de papéis que nos cabe representar, como parte da família, da sociedade, como cidadão e como pessoa. Em nossa formação pessoal, construímos uma personalidade que nos identifica como indivíduo com autenticidade: não existem duas pessoas iguais. Na vida social, somos identificados com o feixe de papéis que representamos, ainda que cada pessoa apresente um “fundo insubornável” absolutamente idiossincrático, como bem destacou Ortega y Gasset.
Dois registros circunstanciais: as máscaras sem pinturas, transparentes, sem cera, através das quais se veria a face do ator, estariam, segundo algumas fontes, associadas à ideia de sinceridade. Similarmente, os atores que roubavam os papéis construídos e já representados por outros, satisfazendo-se com a mera imitação, eram chamados de hipócritas.
A propósito de tal relação entre pessoalidade, sinceridade e hipocrisia, o poeta Raimundo Correia lavrou um expressivo soneto:
MAL SECRETO
Se a cólera que espuma, a dor que mora
N’alma, e destrói cada ilusão que nasce
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;
Se se pudesse, o espírito que chora,
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!
Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo
Como invisível chaga cancerosa!
Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!
Uma derivação agro-etimológica-metafórica interessante é a questão de se associar uma pessoa com uma cebola ou com uma alcachofra. Se uma pessoa fosse como uma cebola, pensando os papéis que representamos como as cascas, retirando, uma a uma, nada sobraria ao final, senão lágrimas, talvez. Por outro lado, associando os papéis às pétalas da alcachofra, após a última pétala resta o miolo da alcachofra, que representa o melhor e mais valioso de seu conteúdo. Ao contemplar certas pessoas em situação de abandono, dormindo nas ruas, somos, no entanto, muito mais tentados a pensar cada uma delas, a despeito da ausência quase absoluta de papéis relevantes, como uma alcachofra em potencial, depositária de um miolo valioso, indevidamente não aproveitado.
A palavra latina individuum tem uma etimologia muito mais simples: significa “aquilo que não se divide”. Em grego, a palavra correspondente é atomon, ou aquilo que não se divide, que não se apresenta em “tomos”. Certamente uma pessoa é um indivíduo, no sentido de que não pode ser cindida sem perder sua individualidade, ou mais adequadamente, sua personalidade. Mas certamente a indivisibilidade, que era a característica marcante do átomo na Grécia antiga, não existe mais nos dias de hoje, e certamente não é suficiente para a caracterização da ideia de pessoa como ser social.
Uma curiosidade natural nos conduz à questão de saber se existiria em grego uma palavra correspondente à ideia de pessoa em latim. A etimologia é tributária da cultura e pode nos pregar peças em tentativas de correspondência literal. A ideia de autoridade, por exemplo, auctoritas em latim, não tem correspondência direta em grego. O império romano tornou necessária tal ideia, associada às funções do senado, mas a cultura grega, com sua democracia de pouca extensão territorial passou ao largo de tal noção. No caso da ideia de pessoa, a palavra que mais se aproxima é prosopon, que seria a face de uma pessoa. A derivação mais conhecida é prosopopeia, que representa a associação de feições humanas a animais, como ocorre nas fábulas, por exemplo.
No senso comum, circula com frequência uma conotação negativa da máscara, ou do mascarado como uma pessoa fingida, dissimulada, o que lembra a já citada hipocrisia. O referencial junguiano aproxima-se um pouco da insuficiência ou da limitação da máscara: a ideia de persona se não é isso, é quase isso. No caso das histórias infantis, envolvendo super heróis, a máscara também desempenha um papel que se afasta um pouco da representação de papeis com os outros, para os outros, mesmo no caso dos afeitos aos monólogos, mas sem uma aderência suficiente com a ideia de pessoalidade como representação de papeis, e de personalidade como um feixe coerente de papeis socialmente comprometidos.
Uma análise especialmente interessante sobre a caracterização da pessoa como um complexo feixe de papeis sociais pode ser encontrado no livro Identidade e Violência, de Amartya Sen (2006). A ideia central do livro é generosamente apresentada da primeira à 4ª capa, em praticamente cada página do texto: a fonte de toda a violência no mundo seria, segundo Sen, a unidimensionalidade na caracterização de uma pessoa. A complexidade da pessoalidade exige a consideração do feixe de papeis, sendo a redução de uma pessoa a um dos papeis do feixe uma prerrogativa da própria pessoa, nunca podendo ser exercida pelo arbítrio de alguém, seja quem for. Ao proferir, a propósito de alguém frases como “é um negro”, “é uma mulher”, “é um muçulmano”, omitindo-se outros determinantes relativos aos papeis socialmente desempenhados, abre-se inexoravelmente as portas para a violência. E a aposta maior do autor é a de que toda a violência no mundo decorreria de tal derrapagem epistemológica.
A pandemia que assusta o mundo neste ano de 2020 tem conduzido por vias tortas a uma das ações consideradas quase consensuais: o uso da máscara para minimizar a possibilidade de contágio. A maior ou menor efetividade em tal mister não nos interessa discutir neste momento. Uma pulga atrás da orelha pode surgir no caso de prestarmos atenção a um cálculo realizado por diversos cientistas, inclusive o físico Fermi: a probabilidade de, em nosso próximo suspiro, encontrarmos pelo menos uma molécula do ar que o todo poderoso imperador César respirou, em seu último suspiro, após a brutalidade de que foi vítima é de 100%. Sim, é isso mesmo, não se trata de um engano; lembremos apenas que 100% de chance de ocorrência não quer dizer que o evento certamente ocorrerá, o que somente é válido em espaços amostrais finitos…
Nada disso preocupa, é somente uma curiosidade, uma brincadeira (séria). O que efetivamente incomoda nas máscaras atuais é a aparência de despersonalização, de perda ou limitação na identidade pessoal. Vagamos como zumbis, não acreditamos na maior parte das medidas que nos cerceiam, mas aceitamos trocar parte de nossa liberdade por uma putativa segurança. Assistimos a justificativas que invocam repetidas vezes o apoio da ciência, como se a racionalidade das ações pudesse ser completamente justificada por argumentos científicos, mas a evidência em cada passo é a de que ninguém sabe com sinceridade do que está falando, a expectativa ingênua é a de que os dados falem por si, e entre um isolamento vertical e outro horizontal é certo que não há certeza de coisa alguma. O terror se espalha, o medo fragiliza as reações conscientes, e em terreno tão pantanoso, o exercício do poder fascina, conduzindo sutilmente a uma quase falência do pensamento crítico. Como bem disse Benjamin Franklin, no entanto, “quem troca uma porção de sua liberdade essencial por uma garantia de um pouco mais de segurança, não merece nem uma coisa, nem outra…”
*****29-05-2020