Category Archives: Diário de Perdidos e Achados

VERA FÉ

É simples assim:

O motor de tudo

O que há no mundo

É a vera Fé…

…que é a Fé em si,

É a Fé nos outros

Fé na razão viva

Que nos põe em pé.

Todos os caminhos

Toda nossa lida

Nada faz sentido

Se nos falta a Fé…

…a Fé no sentido!

Que é a vera Fé.

Concluo arriscando

Ditos parecidos:

Esperança é quando

Só sobrou a Fé

Desespero é quando

Soçobrou a Fé.

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Notas sobre a ideia de Representação

Nílson José Machado

njmachad@usp.br

Representações Mentais e semióticas

O acesso aos objetos da realidade se dá sempre por meio de representações. A Língua Materna e a Matemática são dois sistemas primários de representação; a Arte, a Religião, o Mito, a Ciência são outras formas de acesso à realidade. Cassirer investiu muita energia na busca de um diálogo entre as diversas formas simbólicas, produzindo uma obra seminal. Duval (2009) também deu sua contribuição a respeito de tal temática, pretendendo que não se pode conhecer, ou seja, compreender o significado, em qualquer tema, se não se distingue com nitidez um objeto de sua representação, ou de suas múltiplas representações. Apresenta a semiósis e a noésis como duas formas complementares de representação. A primeira delas consistiria na construção de uma linguagem escrita, que conduziria a uma representação semiótica do objeto; a segunda consistiria numa apreensão das ideias fundamentais na caracterização do objeto, traduzido. desse modo, em representações mentais. Segundo Duval, as duas etapas – noésis semiósis – não ocorreriam independentemente uma da outra. Na noésis, o objeto seria traduzido em representações mentais; na semiósis, tais representações seriam traduzidas em representações semióticas, produzindo-se, assim, uma verdadeira polifonia na conjugação das múltipals formas de expressão. Duval conclui afirmando que a compreensão conceitual aparece ligada à descoberta de invariantes  entre representações semióticas diversas. Apesar de parecer um sedutor caldo de galinha, tal expectativa precisa ser vista com certa cautela. Em primeiro lugar, nem sempre um invariante assim é encontrado, como bem o traduz a fecunda ideia wittgensteiniana de semelhança de família. Em segundo lugar, mesmo quando existem invariantes desse tipo, a compreensão conceitual pode não ser palatável no nível em que se realiza o discurso. Muitas e muitas vezes operamos de modo profícuo na antessala dos conceitos, na região fecunda e maleável das representações preconceituais consistentes, que justamente por não se pretenderem conceituais não correm o risco de serem taxadas de preconceituosas.

Representação: uma síntese provisória

Em sua caracterização dos tipos de representação, Birch (1971) é incisivo ao pretender que todas as formas de representação podem ser incluídas em uma das quatro categorias – delegação, amostragem, simbólica ou política -, e insistindo ainda na independência lógica das categorias referidas, bem como na irredutibilidade de uma delas a qualquer uma das outras. Ele afirma textualmente que “não existe qualquer processo intelectual válido pelo qual os quatro tipos possam ser agrupados, como os quatro quadrantes de um círculo, para formar algo que possa ser denominado ‘a verdadeira natureza da representação’. São conceitos diferentes etimologicamente relacionados, mas não fazendo parte de um todo” (p.229). Apesar disso, conjugando suas concepções e as de Pitkin, com seu insight binário standing for / acting for, creio ser possível sintetizar as duas perspectivas na seguinte tipologia das representações:

– Representações Standing for tipo Amostragem e Standing for tipo Simbólica;

– Representações Acting for tipo Delegação para Fins Particulares e Acting fortipo Delegação para Fins Gerais.

Em palavras: toda representação é sempre uma instrumentação para a ação, conjugando uma dimensão standing for e uma dimensão acting for. É sempre, portanto, uma mescla do tipo standing for acting.  Tal fato não impede, no entanto, que, em alguns casos, sobreleve uma das duas dimensões, predominando a intenção do standing for, ou a do acting for.  Em cada uma dessas duas vertentes, podem ser identificados dois tipos bem caracterizados, correspondendo a dois níveis de abrangência. No caso da vertente standing for, destacam-se a representação como amostragem, abrangendo um amplo espectro de possibilidades, todas subsidiárias de uma compreensão, mesmo sem vinculação direta com qualquer ação específica; e a representação simbólica, bem menos abrangente, que não extrai sua representatividade de elementos quantitativos, mas sim dos princípios e valores envolvidos. No caso da vertente acting for, uma bifurcação análoga se dá em decorrência dos diferentes níveis de generalidade dos fins da delegação. No caso das representações delegadas para fins específicos, limitados no espaço e no tempo, a autonomia dos representantes é mais limitada, e a satisfação direta dos interesses dos representados é condição de possibilidade de uma boa representação política, a delegação é acompanhada de uma autorização para a ação em nome dos representados. Naturalmente, tal autorização está associada a um mandato com duração fixada, que não pode ser retirado do representante, senão em situações excepcionais, e a uma imprescindível prestação de contas, especialmente ao final do mandato. Nesse sentido, é de Voegelin (1979) um alerta importante, no discernimento entre os papéis do representante ou do agente, tão próximos na delegação para fins particulares, e tão distintas no caso da representação política. Um agente é uma pessoa a quem um superior hierárquico atribuiu determinado poder para tratar de assuntos específicos; um representante em sentido político, no entanto, pode agir em nome da sociedade ou de valores maiores do que as peculiaridades ou os interesses mais idiossincráticos dos outorgantes de seu mandato. O caso específico da representação política, no entanto, poderá ser examinado com mais profundidade em outro momento.

Representação: duas modalidades básicas

Em seu seminal livro The Concept of Representation, Hanna Pitkin distingue fundamentalmente dois tipos de representação: as que se situam no âmbito do Standing for, e a que buscam as condições do Acting for. Em outras palavras, nas representações do tipo standing for, os representantes situam-se no lugar dos representados, constituindo uma amostragem ilustrativa, ou então, representam simbolicamente os outorgantes, não havendo uma referência direta à realização de ações efetivas em nome deles. Convergem, assim, para os significados de representações simbólicas ou como amostragem, apresentadas por Birch. Já as representações do tipo acting for referem-se diretamente a delegações de funções restritas no tempo e no espaço de significações, em que o outorgante encarrega o outorgado de agir por ele, nas condições estritas fixadas no contrato, ou então, apresentam um escopo mais amplo, como é o caso da representação política. Apesar de iluminadora, a distinção de Pitkin apresenta uma dificuldade conceitual reconhecida por todos os que se ocuparam com tal temática, denominado por muitos como o paradoxo da democracia representativa. Trata-se, no caso, da situação dilemática que consiste em garantir a participação do povo, fundadora da democracia, por meio justamente da delegação de tal participação a um conjunto de representantes. Não parece possível nem desejável o extremo de o representante subordinar continuamente suas ações à vontade dos representados, nem o outro extremo de agir por inspiração pessoal, independentemente dos representados, e até mesmo de modo conflitante com seus interesses. Outro problema conceitual importante é o fato de que as duas modalidades de representação sugeridas por Pitkin entrelaçam-se continuamente. Em situações concretas, o standing for é a antessala do acting for, constituindo, praticamente, uma modalidade única: standing for acting. A representação política apresenta-se como um complexo especialmente construído para a articulação das duas modalidades sugeridas por Pitkin. Ano âmbito da política, a escolha dos representantes busca espelhar os interesses da diversidade de opiniões, de classes de equivalência da sociedade, não no sentido estrito da amostragem estatística, nem ignorando questões fundamentais relativas aos valores que dão sustentação ao projeto nacional. Não parece razoável exigir-se que, como as mulheres constituem 51% da sociedade, a amostra de representantes mantenha tal proporção. Homens ou mulheres participam de representações políticas como cidadãos, extrapolando em muito as questões de gênero. Em outro contexto, conceitualmente similar, parece mais fácil o acordo com relação ao fato de que os criminosos condenados, ainda que numerosos, não devem fazer jus a uma representação política na mesma proporção de seu número.

Representação: quatro núcleos de significado

Quando se ajusta o foco na ideia de representação, deixando de lado, tacitamente, a representação de objetos por signos, e pensando apenas a representação de pessoas, ou de grupos de pessoas, por outras pessoas, é possível situar quatro núcleos de significado para tal ideia. Três deles referem-se a relações sociais, políticas ou não; o quarto diz respeito mais diretamente à ação política.

Uma primeira situação é a da representação como delegação, que ocorre, por exemplo, quando um advogado nos representa em um processo jurídico, ou, de modo geral, quando nomeamos uma pessoa para representar certos interesses especificados pelo nomeador em contextos determinados. Representantes comerciais, ou embaixadores também são exemplos efetivos de tal ideia de representação. Uma característica crucial na ideia de delegação é a da tarefa específica a ser realizada pelo representante, que delimita com nitidez a tarefa específica da representação. Esta primeira acepção é certamente a mais ampla, incluindo diversas variações, como mais adiante será visto.

Uma segunda situação é da representação como amostragem, em que o conjunto de representantes caracteriza-se como uma amostra da totalidade dos representados. No caso da constituição de colegiados, em diferentes contextos sociais, tal acepção costuma ocupar lugar de destaque. Se todos os membros da Câmara dos Deputados são agricultores, os industriais podem não se sentir bem representados. De modo geral, a ideia de amostragem estatística pode parecer sedutora em questões políticas ou sociais, mas existem limites para tal sedução. Ainda que, circunstancialmente, uma Câmara possa ser integrada por notórios criminosos, não parece aceitável advogar-se explicitamente pela eleição de um representante da bandidagem para o exercício legislativo.

Uma terceira acepção da ideia de representação se dá em nível simbólico, tal como ocorre com os signos na linguagem. A representação como símbolo é menos explícita, mas não é menos importante que as anteriormente citadas. O Presidente do país nos representa, tal como a bandeira representa o país, de uma maneira simbólica. Não se pode ignorar a força e a importância do simbolismo na organização social humana. Na arte, nos esportes, é quase desnecessário destacar a importância do simbolismo, que também está presente na liturgia associada aos cargos, tanto nos rituais religiosos quanto nos processos burocráticos do Estado, na legitimação das estruturas de poder. No terreno da política, a subestimação da força de simbolismos espúrios já demonstrou seus efeitos deletérios, em diferentes momentos da História.

Uma quarta acepção da ideia em foco é a representação política, que envolve delegação, amostragem e simbolismo, mas que apresenta certas características mais abrangentes que caracterizam sua especificidade. A consolidação do valor e da importância da Democracia é representada sinteticamente pelo aforisma de Churchill: trata-se da “pior forma de governo, com a exceção de todas as demais”. A questão fulcral, no entanto, é a da caracterização do regime democrático como forma de governo. A ideia de uma democracia direta, de um governo do povo, pelo povo, para o povo, realizado por meio de assembleias incluindo todos os envolvidos, há muito não faz mais sentido, tendo sido efetivamente realizada em algumas poucas décadas, envolvendo alguns poucos milhares de habitantes. O povo, como se sabe, já excluiu as mulheres, os escravos, os estrangeiros, os analfabetos, os sem posses. Com o natural e desejável alargamento da ideia de povo, as dificuldades crescentes da participação direta em assembleias conduziram o pensamento político à ideia de uma democracia representativa. Nela, o povo escolhe seus representantes, em geral por meio de eleições, e eles recebem uma autorização para agir em nome do povo, no exercício das relações sociais e políticas. Tal autorização, no entanto, apesar de se referir a todas as ações carentes de representação em sentido amplo, têm um prazo de validade fixado, que não pode ser muito longo, após o qual os representantes são cobrados e a representação pode ser renovada, em novas eleições. Autorização plena, cobrança de responsabilidades e renovação periódica são, pois, as marcas fundamentais da representação política.

Representação: o significado do significado

Uma investigação sobre o significado de qualquer ideia, mesmo as que se expressam por palavras de aparência ingênua, não pode ignorar três fatos fundamentais: o contexto, a historicidade e a não-conceitualidade.

Em primeiro lugar, o significado de uma ideia/palavra sempre se constrói por meio de relações percebidas no contexto em que a ela se apresenta. Tais relações entre a ideia/palavra nova e outras já conhecidas são constitutivas do significado emergente, que sempre se traduz em um feixe de relações.

Em segundo lugar, o significado nunca se constrói de uma vez para sempre, ele sempre é impregnado de História. O próprio contexto, de onde são extraídas as relações constitutivas, é historicamente situado. A ideia de cidadania na Grécia antiga não é a que se professa nos dias de hoje. Os significados evoluem e continuamente se transformam. As ideias são como seres vivos. Para lidar com isso sem desandar no paradoxo aparente traduzido pela máxima “só sei que nada sei”, um único caminho se oferece: o estudo da História. Não é possível conhecer o significado de qualquer ideia/palavra sem uma mirada na História. Seja qual for o tema estudado, o recurso à etimologia ou à evolução histórica das ideias científicas é sempre fundamental. Os significados evoluem e se transformam, mas isso não ocorre de forma aleatória: as transformações também têm um significado. E o estudo da História apresenta precipuamente esta função: a busca da compreensão do significado das mudanças de significado.

Em terceiro lugar, significado não é sinônimo de conceito. Uma compreensão satisfatória de uma ideia/palavra pode se situar – e em geral se situa – na antessala dos conceitos, no terreno dos esquemas perceptuais, das apreensões associadas a alguma Gestalt, das noções pré-conceituais, que não podem ter nem a ambição dos conceitos, nem a precipitação dos preconceitos. Um cidadão não-filósofo convive muito bem com a ideia de tempo em seus usos habituais, ainda que não disponha de um conceito de tempo, que não parece algo trivial. Para se falar em conceito, são necessárias descrições precisas, classificações nítidas, ordenações/hierarquias adequadas e alguma expectativa de racionalidade/causalidade. De modo geral, a compreensão ordinária do cidadão comum exige muito menos. Ao registrar que nos contentamos com compreensões pré-conceituais, não podemos, no entanto, abrir qualquer mínima fresta para os sempre indesejáveis preconceitos. Um preconceito nada mais é do que uma ideia pré-conceitual que se arvora do estatuto de um conceito, o que é epistemologicamente inaceitável.

Dois autores especialmente importantes para a compreensão da não-conceitualidade das nossas compreensões ordinárias são Vygotsky e Wittgenstein. O primeiro nos chamou a atenção para  a etapa intermediária do pensamento por complexos,  no caminho para a formação de conceitos. O segundo deu especial importância ao fato de que o espectro de significados expresso nos usos de uma ideia/palavra como “jogo”, por exemplo, não conduz facilmente ao estabelecimento do conceito de jogo, deixando-nos numa antessala, que corresponde aos esquemas pré-conceituais. Wittgenstein cunhou o nome de “semelhança de família” ao conjunto dos usos e das acepções de uma ideia/palavra: entre dois membros quaisquer da “família, sempre é possível perceber elementos comuns, mas a busca de invariantes comuns a todos os membros da família pode resultar, e em geral, resulta em fracasso.

A busca de uma “semelhança de família” que contemple os usos ordinários da ideia/palavra “representação” é uma tarefa que importa realizar.

Representação: o signo e as coisas

Vivemos em um mundo de coisas, que se multiplicam e se amontoam, mas Schopenhauer é incisivo: não existem objetos sem sujeitos, o mundo consiste em representações dos sujeitos, na objetificação e significação de nossas vontades. Em sintonia com Berkeley, o filósofo pretende que ser é ser percebido; tudo o que existe é resultado das representações de nossas percepções. As coisas são representadas por signos, que podem ter o caráter icônico, mimetizando o objeto representado, ou o caráter indiciário, como o que recorre à associação entre o todo e a parte representada, ou o caráter simbólico, em que a associação entre o representante e o representado é convencional e relativamente livre. As linguagens, como sistemas de signos, são ferramentas ou meta ferramentas para a representação, condição de possibilidade da ação comum, da comunicação. Representamos continuamente, e a vida humana alimenta-se das representações que produzimos, resultantes de nossa vontade de viver. Há cerca de duzentos anos, Schopenhauer nos chamou a atenção para tudo isso, em um livro seminal, escrito quando o filósofo tinha apenas 30 anos: O mundo como vontade e como representação. A língua nossa de cada dia é o mais fundamental de nossos sistemas de representação da realidade, caracterizando-se como um instrumento de humanização por excelência. Fazendo coro com Heidegger, Schopenhauer apresenta o ser humano como um ser da linguagem, que se alimenta continuamente das representações que prefigura e elabora. Uma oitava acima, na tessitura da vida, encontra-se uma atividade de representação de outro tipo, mas igualmente constitutiva do modo de ser do ser humano. Não se trata mais da representação de coisas por signos, para viabilizar a comunicação entre as pessoas, nem da interpretação de signos, para bem entender as pessoas, mas sim do recurso a pessoas para representar pessoas, em situações vitais, como a que ocorre nos processos políticos inerentes à vida em sociedade. A organização social não mais se pode fundar na democracia direta, que teve lugar por poucas décadas, em espaços geográficos restritos, envolvendo populações que não ultrapassavam alguns poucos milhares de pessoas. O caminho para a democracia representativa traz à lume uma necessária sistemática para a escolha de representantes de grandes contingentes de representados. Trata-se de uma ampliação expressiva e certamente não trivial na ideia de representação. Em que sentido os políticos que ocupam os espaços representativos do poder legislativo ou do executivo efetivamente nos representam? Qual o significado esperado de tal representação? Eis aí um tema para uma necessária reflexão.

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Mínimas sobre a Felicidade

1# Ter a felicidade como meta é quase uma garantia de a não alcançar; ela não é um ponto de chegada, é o percurso até ele; não é um particípio, mas sim um gerúndio; é um faciendum, não é um factum.

2# A família e os amigos são importantes para a felicidade, mas constituem um espaço de doação, de cultivo de laços, de respeito mútuo e de mútuas responsabilidades; sem isso podem se transformar em múltiplas fontes de infelicidade.

3# Ser feliz é vislumbrar sua vocação pessoal e ir ao encontro dela; é assumir a responsabilidade pela construção dos meios para que ela se realize; é compreender que ela não representa um caminho único, mas um espectro de possibilidades.

4# Ser feliz é alimentar projetos pessoais, é ter propósitos na vida, tanto no que se refere às ações imediatas quanto na prefiguração do futuro, mas também é sentir-se parte de algo maior do que nossos mais caros projetos pessoais, é encontrar espaços de companheirismo, de colaboração em construções coletivas.

5# A felicidade nasce da ação semeada pela contemplação, pelo fazer articulado com a palavra, pela reflexão sobre as razões para a permanência ou para a mudança de situações do statu quo; pela consciência na ação que conserva, na ação que transforma, na ação que não se conforma.

6# A felicidade nasce do equilíbrio na capacidade de sentir em si as dores do mundo, de assumir as responsabilidades inerentes a tal sentimento, sem sucumbir a tentações de desânimo ou desilusões consoladoras, que podem aliviar consciências locais, mas sempre constituirão luxos de minorias.    

7# A felicidade sempre pressuporá um espaço de ações aberto a escolhas pessoais, liberto dos constrangimentos tanto da norma legal quanto dos algoritmos: no terreno da ética, é o espaço do livre arbítrio; no terreno da arte, a abertura para a apreciação, para a autoria, para a criação.

8# Ser feliz é compreender que recebemos, ao nascer, a vida como uma dádiva, qualquer que tenha sido a circunstância em que isso tenha ocorrido; que o prazer que sentimos ao dar presentes, ao buscar os laços com os outros decorre da alegria de poder agradecer, cotidianamente, um pouquinho que seja, o mais precioso dos bens.

O Amor e outros alentos

                             Nílson José Machado             

                       SUMÁRIO

1 – Sobre a FÉ

2 – Sobre a ESPERANÇA

3 – Sobre a CARIDADE

4 – Sobre o AMOR

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        1 – Sobre a FÉ

Diz-se que a Fé move montanhas; mesmo parados, no entanto, ela nos mantém em pé. Toda ação a pressupõe. Discernimos o sentido local, mediato ou imediato, de nosso gesto; o sentido último somente advém da Fé. A razão de estarmos vivos, a crença em que nossa vida pessoal faz diferença, ninguém pode nos atestar de fora, é fruto de nossa Fé. Quando a perdemos, o mundo lá fora pode continuar exatamente como antes, mas desaba dentro de nós. O matemático em seus formalismos confia nos axiomas e extrai deles todas as consequências: se p, então q. Se duvida de um dogma/axioma, trata de substituí-lo, ou o sistema entra em crise. As religiões alimentam-se da Fé, mas a Fé religiosa é apenas um afluente do rio caudaloso que é a vida. Em sua Utopia, Thomas More é assertivo: quem não tem qualquer crença não é um ser humano. Aquilo em que cremos, no entanto, é de cunho pessoal: não existem igrejas em Utopia.

É apenas a Fé que nos faz, em meio à maior desdita, dizer da vida: é bonita, é bonita, é bonita.

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      2 – Sobre a ESPERANÇA

A Esperança decorre da Fé; a recíproca não é verdadeira. Não se resume à espera, pressupõe envolvimento, ação tácita, atuação sutil. A Esperança é um misto de coragem e temperança. Seu oposto é o desespero, ou o desequilíbrio entre tais polos, o que conduz ao desatino ou ao desamparo. Em ambos os casos, predominam a desilusão, a descrença no sentido da existência, a inapetência para o jogo da vida. Temos Esperança porque alimentamos a Fé no sentido. Não vivemos de Esperança, mas não vivemos sem ela, que é condição de possibilidade de qualquer projeto. Projetos condenados ao sucesso não são projetos: o risco sempre está presente. Na labuta diária, fazemos a nossa parte e torcemos ou rezamos: avivamos a esperança. Perder ou ganhar partidas são contingências da vida. Perder a Esperança, no entanto, é abrir uma fenda por onde se esvai a Fé, e com ela, a sentido último de nossas ações. Diz-se que a Esperança é a última que morre justamente porque, sem ela, não existe vida em sentido humano.

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              3 – Sobre a CARIDADE

Cuidar do outro, dar-lhe carinho, eis o sentido da caridade. A fundamental busca da ligação com os outros vai muito além dos limites de qualquer religião. Em sentido humano, não estamos vivos nem nos constituímos como pessoas sem os laços com os outros. Em tal sentido, o motor da ação humana é a doação, irmã siamesa da Caridade. Doamos/doamo-nos para criar laços. Os laços que estabelecemos com os outros são determinantes de nossa identidade. Aos familiares, reunimos os de amizade, os de parceria em variados âmbitos, os de solidariedade com as vítimas do que consideramos injusto, os de fraternidade com a totalidade do gênero humano. A Caridade não cabe dentro dos limites do mercado. A compra ou a venda de carinho é uma corrupção da ideia de caridade, uma aberração. Em nenhum lugar a máxima latina parece mais pertinente: a corrupção do ótimo é o péssimo. Dar volumosas esmolas pode não constituir um ato caridoso tanto quanto o é a cumplicidade de um olhar fraterno, afetuoso, compreensivo.

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       4 – Sobre o AMOR

A máxima de J. L. Borges é definitiva: Só podemos dar o amor, do qual todas as outras coisas são símbolos. Os laços que nos constituem como pessoas pressupõem o trio dar/receber/retribuir. É necessário um Tu, um outro a quem nos dedicamos. O amor ao próximo, como a si mesmo, traduz a imanência dessa articulação fundamental entre o Eu e o Tu. Amar o mundo é a condição de possibilidade de uma vida ativa, diz Hannah Arendt. A construção de uma identidade pessoal conduz à busca de um centro de gravidade em nossa relação com o mundo, um Tu pessoal que preenche os vãos de nossas vidas, do DNA aos mais caros projetos. Não existe vida em sentido pleno sem tal centro, que costumamos chamar de Amor. Amar é encontrar o que nos alenta, é alimentar uma comunhão total e vital. É entregar-se ao que nos completa: uma pessoa, uma causa, uma tarefa, um princípio. Como uma semente que ninguém plantou, num olhar que ninguém previu, de repente, o Amor surge: defini-lo é cortar o ramo de onde a flor pende.

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Técnica, tecnologia, tecnologias

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                            Nílson José Machado             

1-  Ortega e a técnica

2-  A técnica e a tecnologia

3-  Ortega e as três fases da técnica

4-  Técnica: substantivo ou adjetivo?

5-  A técnica e a linguagem

6-  O logos é técnica

7-  Linguagens e tecnologias

8-  A torneira e a consciência

9-  Analógicos ou digitais?

10- Tecnologias: fascínio x fastio

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1 – Ortega e a técnica

Uma das mais lúcidas reflexões sobre a técnica é fruto da lavra de Ortega y Gasset, antes do aparecimento dos computadores eletrônicos. Em Meditação da técnica (1939), Ortega a associa com os atos que transformam a natureza ou as circunstâncias. Em suas palavras, um homem sem técnica, quer dizer, sem reação contra o meio, não é um homem. Dois fatos agudos, e até certo ponto surpreendentes, emergem de sua seminal reflexão.

O primeiro é que técnica não resulta da busca de adaptação do homem ao meio, mas sim do meio à vontade do ser humano. O animal é atécnico: adapta-se ao meio e segue vivendo.

O segundo fato é que somente se pode pretender que a técnica responda às necessidades humanas se nos limitarmos à manutenção da vida em sentido biológico. Em sentido pleno, a vida humana não pode prescindir de “supérfluos” absolutamente necessários, como a arte, a estética.

De modo premonitório e sutil, Ortega nos lembra: a técnica sacia as necessidades humanas com a mesma frequência com que as cria.

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       2 – A técnica e a tecnologia

A técnica é inerente à condição humana, mas sua transformação em tema de estudos é relativamente recente. Na Grécia antiga, a techné  e o logos  não se comunicavam, não havia “o logos da técnica”. A palavra “tecnologia” com o sentido atual surge com a Revolução Industrial. É na Enciclopédia de Diderot que se explicita pela primeira vez na história uma lista de disciplinas a serem estudadas pelos que buscavam uma formação para o trabalho.

A partir de 1950, com a ascensão dos computadores, a tecnologia passa a ser associada às tecnologias informáticas, empurrando a técnica para os bastidores das questões teóricas. Mas é na técnica que reside uma dimensão fundamental do ser humano: a informática não passa de uma de suas manifestações, ainda que a mais espetaculosa.

A onipresença das tecnologias exige permanente reflexão sobre as implicações de tal invasão. O homem não se tornou racional ao tematizar a lógica, nem tematizar a técnica é suficiente para torná-lo consciente de seu significado.

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           3 – Ortega e as três fases da técnica

A técnica é uma atividade produtiva tipicamente humana, que busca minimizar os esforços nas ações de adaptação da natureza ao modo de ser humano. Em Meditação da Técnica, Ortega identifica três períodos em sua história: a técnica fortuita, a técnica do artesão e a técnica cindida.

No primeiro, a técnica é partilhada por todos, e os instrumentos surgem de ações não intencionais. No segundo, a multiplicação de tarefas conduz à subdivisão das mesmas e ao trabalho do artesão. Cada um sabe fazer o próprio calçado, mas se torna mais conveniente delegar tal tarefa aos sapateiros. Os artesãos aperfeiçoam o processo de produção e a evolução natural faz surgirem as primeiras máquinas. Aos poucos, porém, elas passam a predominar na produção de objetos específicos, subordinando o artesão a seu fito e ritmo.

Inicia-se, então, o terceiro período, em que a técnica se descola do técnico, e este, do mero operador das máquinas. Sobrevém o perigo: o homem não pode tornar-se mero apêndice de equipamentos.

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4 – Técnica: substantivo ou adjetivo?

Um substantivo tem vida própria, designa algo por si só; um adjetivo sempre é tributário de um substantivo, ao qual se adjunta. Quando nos referimos à “técnica” como uma atividade humana, falamos de um substantivo ou de um adjetivo? A gramática pode ser esclarecedora.

Nas fases iniciais da civilização, a técnica é essencial, mas apenas adjetiva a ação; o substantivo, a substância da vida é o modo de ser humano. Mesmo como adjetivo, a técnica carece sentido: ninguém especificamente é “técnico”, ou todos o são.

O aparecimento do artesão conduz a certo descolamento entre a técnica e as atividades comuns, dando início a uma substantivação da “técnica”. É como se ela passasse a designar algo por si só, independente das ações humanas.

Na forma das modernas tecnologias, a técnica está, hoje, tão disseminada na sociedade quanto nas fases primitivas de nossa história. A diferença crucial é que nos primórdios, a técnica não era substantivo, e hoje, há quem subverta a gramática e a trate como tal. 

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          5 – A técnica e a linguagem 

A técnica distingue os homens dos animais. Uma simplificação de tal perspectiva levou à caracterização do homem como um produtor de ferramentas, e à supervalorização do trabalho como categoria distintiva.

Há muito também se diz que o homem é um animal racional. A razão, o logos, a linguagem seria uma marca distintiva em relação aos animais. Nesta trilha, há os que reconhecem a essencialidade da linguagem, mas negam a animalidade do homem.

Há ainda os que buscam uma síntese, pretendendo que a ação, ou o fazer consciente, irmanado com a palavra, seja a real condição humana.

O mais frequente, no entanto, são tentativas simplórias de exploração do fato de que os animais também se comunicam e produzem ferramentas. Em resposta, o pulo do gato dos seres humanos é duplamente radical: somente eles produzem meta-ferramentas, ou ferramentas para produzir ferramentas; e somente eles têm uma linguagem que se desdobra em múltiplas meta-linguagens, sendo absolutamente constitutiva de seu modo de ser.

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  6 – O logos é técnica 

A técnica pode ser entendida como a produção de ferramentas para adaptar o meio ambiente ao modo de ser humano, buscando minimizar seus esforços, em diferentes contextos.

A Antropologia nos indica que não se pode pensar no homem sem a técnica, nem sem a linguagem. A História nos revela que toda tentativa de fixar relações de precedência, ou de reduzir uma dessas dimensões à outra é condenada ao fracasso. A Filosofia nos torna conscientes de que a técnica e a linguagem são dimensões humanas que sempre estiveram imbricadas. A Ciência nos aponta que as modernas tecnologias, consolidadas como o logos das técnicas, constituem ferramentas que transformam substancialmente as formas de expressão e comunicação, criando e explorando novas e instigantes dimensões da linguagem.

Afinal, a marca do ser humano é a técnica ou a linguagem? Quando nos damos conta de que a linguagem é uma ferramenta, como o machado ou a enxada, como a razão e os conceitos, pomos em pé o ovo de Colombo: o logos é técnica. 

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    7- Linguagens e tecnologias

 O interesse pelas linguagens em geral não pode desviar-nos da singularidade da língua, e o fascínio pelas tecnologias não pode elidir que elas traduzem o estágio atual das técnicas.

Techné  e poiesis são dimensões distintas da ação humana. De um lado, um fazer prático, que se atém aos meios; do outro, de um fazer criativo, que nos constrói enquanto realizamos. Ambas desempenham papéis importantes, mas a criação é fundamental.

Ainda que a oralidade, a escrita e a informática sejam consideradas “tecnologias” da inteligência, a língua tem um caráter absolutamente radical no modo de ser do ser humano; as tecnologias são da ordem dos meios, nada tendo a nos oferecer no que se refere aos valores ou aos fins.

A língua é um meio de expressão, mas é mais: tem um conteúdo essencial, um elenco denso de ideias fundamentais, constitutivas da formação pessoal. A criação no âmbito das tecnologias é inteiramente tributária dos projetos e dos valores que alimentamos e que nos alimentam. Ou deveria ser.

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8 – A torneira e a consciência

Como uma praga, ela se disseminou pelos banheiros: a torneira de pressão com fechamento automático tornou-se uma prótese da consciência pessoal no caso do uso parcimonioso da água. Um aviso junto à torneira seria suficiente para lembrar os distraídos e despertar consciências adormecidas, mas a tecnologia oferece mais garantias.

O tempo que a torneira nos concede para lavar as mãos é matematicamente calculado. Amostras de milhares de usuários produziram curvas normais, tempos médios, desvios-padrão, suficientes para formatar as molas e os dispositivos reguladores. Se não nos adaptarmos aos esquemas programados, não somos “normais”.

É verdade que uma mola muito nova pode abreviar o tempo previsto, e, quando mais velha e mais relaxada, pode deixar a água fluir além do necessário, mas tudo isso são contingências.

O essencial na opção por simulacros de consciência como as torneiras automáticas é o recado tácito: a Ética que nos perdoe, mas a tecnologia parece mais confiável do que as pessoas.

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9 – Analógicos ou digitais?

Há algum tempo, prevalece a ideia de que dispositivos digitais são o novo, o máximo, e dispositivos analógicos são resquícios do ultrapassado. Os computadores logo migraram, tornando-se objetos digitais. Aos poucos, celulares, aparelhos de som, câmeras fotográficas, televisões, tudo convergiu para o elogio do digital. Mas, e o funcionamento dos seres humanos, é digital ou analógico? 

Decididamente, funcionamos de modo analógico. Os impulsos sensoriais externos, que enviamos ao cérebro, são múltiplos e redundantes. Atravessam humores e chegam ao fim da linha de modo pessoal, idiossincrático. São processados analogicamente. Não se resumem a pares do tipo sim/não, zero/um, liga/desliga.

A emulação digital/analógico não tem sentido. O sucesso do digital se dá por meio da imitação do analógico. As telas simulam pinturas, os computadores querem parecer humanos. Pelo menos em um caso, a disputa analógico/digital é equilibrada, com leve vantagem para o analógico: o dos mostradores dos relógios.

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10 – Tecnologias: fascínio x fastio 

A tecnologia é um poliedro de mil faces, algumas assustadoras, outras muito sedutoras. A cada dia um novo produto surge no cenário, com uma mensagem tão atraente quanto enganosa: “o novo é melhor que o velho”, “o novo é melhor que o velho”… Como se não fosse parte da cultura de onde emerge, a tecnologia renega o deus Janus e cultua apenas o futuro.

Ao aceitar o bônus da sedução, a tecnologia assume o ônus do inescapável risco: amor e ódio tangenciam-se, aqui e ali. Uma maioria de entusiastas convive com um grupo crescente de enfastiados e com o radicalismo de uns poucos que rejeitam as formidáveis ferramentas.

Nada parece mais extemporâneo, no entanto, do que a discussão sobre o uso ou a recusa da tecnologia. Como a técnica nos primórdios da civilização, a tecnologia encontra-se disseminada na sociedade. Sem qualquer melancolia, resta-nos avançar na consciência do significado de sua presença.  Se o fascínio automático é típico de neófitos, a recusa sistemática é, sem dúvida, patética.

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 Bibliografia de referência

CRAWFORD, Matthew B. – Éloge du carburateur. Essai sur le sens et la valeur du travail. Paris: La Découverte, 2010.

DRUCKER, Peter – Tecnologia, Gerência e Sociedade. Petrópolis: Vozes, 1973.

DUSEK, Val – Filosofia da Tecnologia. São Paulo: Edições Loyola, 2009.

FROMM, Erich – A revolução da esperança. São Paulo: Círculo do Livro, s/d

LÉVY, Pierre – As tecnologias da inteligência. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.

LINARES, Jorge Enrique – Ética y mundo tecnológico. México: Fondo de Cultura Económica, 2008.

ORTEGA Y GASSET, José – Meditación de la Técnica. In: Obras Completas, vol. 5, p.317-378. Madrid: Alianza Editorial, 1983.

PINTO, Álvaro Vieira – O Conceito de Tecnologia (2 vols.). Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.

QUINTANILLA, Miguel Ángel – Tecnología: um enfoque filosófico. Buenos Aires: Editorial Universitária, 1991.

SENNETT, Richard – O Artífice. Rio de Janeiro: Record, 2009.

VARGAS, Milton – Para uma Filosofia da Tecnologia. São Paulo: Ed. Alfa-Omega, 1994.

WORLD HISTORY – New York: Parragon Books, 2011.

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Significado e Realidade: Universos/Multiversos

Nílson José Machado                                               

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1 – Universo/Multiverso

Uma das armadilhas frequentes na busca do significado da vida é a ideia da unicidade do Universo. Vivemos em múltiplos universos de significações. A Arte e a Ciência descortinam diferentes realidades: em cada vertente, um universo específico. A realidade indiscutível da luz é-nos apresentada pelas teorias científicas ora como ondas que passeiam no espaço-tempo, ora como fótons que desfilam de modo caoticamente ordenado, ora como ínfimas cordas vibrantes, que criam partículas tal como um violão gera as notas musicais. A própria Matemática nos apresenta uma multiplicidade de geometrias, que desafiam a percepção imediata e seduzem a imaginação. Se conhecer é conhecer o significado, como buscar uma resposta única para as questões cosmológicas, quando a multiplicidade de sistemas de significações é a regra básica? Não seria o caso de buscarmos uma compreensão mais ampla do que é isso, o Universo, assimilando-o a um harmonioso coral de versões? Não seria mais adequado chamá-lo de Multiverso? 

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2 – Corinthians, Palmeiras, Platão, Aristóteles

A discussão é antiga: as idéias matemáticas são uma criação humana, a partir da realidade empírica, ou sempre existiram em um universo ideal, sendo descobertas pelos matemáticos? Entre tais extremos debatem-se Aristóteles e Platão, respectivamente.

Quando associamos os dez dedos das mãos à criação do sistema decimal de numeração, tendemos a ser aristotélicos. Entretanto, quando notamos que, independentemente da ação humana, em qualquer circunferência, não importa se grande ou pequena, a razão entre seu comprimento e seu diâmetro é sempre igual a cerca de 3,14, sentimo-nos descobrindo um fato que sempre existiu, mesmo que nunca fosse notado: o número p nos aproxima de Platão.

Em Matemática, há muitas situações que nos aproximam das construções aristotélicas, e muitas outras que nos levam aos braços da revelação platônica.

É impossível decidir-se racionalmente pelo time de Aristóteles ou pelo time de Platão, tal como não há razão que explique o fato de sermos corinthianos ou palmeirenses.

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3 – Construtivistas, e daí?

No que se refere ao conhecimento, o rótulo de “construtivista” há muito perdeu a cor. Desde o debate entre Piaget e Chomsky (Paris, 1975, Centre Royaumont), publicado em 1983 no livro Teorias da Linguagem/Teorias da Aprendizagem, todos somos construtivistas.

Não se trata de igualar as perspectivas em confronto, que são diferentes formas de compreender como conhecemos. O mérito do debate foi o deslocamento das atenções para o que realmente importa, que é o modo como o conhecimento é construído. Para Piaget, haveria um isomorfismo entre a organização das ações e a organização das ideias; para Chomsky, as ações seriam fundamentais, mas seu papel seria como o do motor de partida do automóvel, nada tendo de similar com um motor a explosão – a mente humana.

Cada forma sistemática de conceber como se constroem significações corresponde a uma imagem do universo. Não podemos prescindir de tais construções. Nas Ciências, nas Artes ou na Cultura, o grande desafio é promover um diálogo entre elas.

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4 – A Gênese segundo Italo Calvino

Em As cosmicômicas, Calvino propõe com argúcia e ironia uma interessante cosmologia. O Universo seria fruto de um contínuo jogo em que um ser de nome impronunciável (Qfwfq) perscruta o futuro e aposta na novidade, na transformação, contra o acomodado (k)yK, o decano, que representa o passado, a inércia, a falta de imaginação. Na origem, ambos abdicam dos números inteiros, considerados muito complicados, e recorrem apenas aos números e e π, os mais “simples”, que representariam a variação e a constância, a transformação e a eqüidistância, respectivamente. A lógica da criação do mundo e da vida não teria por base cadeias de O e 1, tudo ou nada, ser ou não ser, mas seria binária em outro sentido, fundada em séries de pares retroações/ações, contrações gravitacionais e expansões/explosões nucleares.

Um dos aspectos mais instigantes de tal cosmologia é a caracterização do presente como uma bolha homogênea em que convivem harmoniosamente o passado e o futuro, a conservação e a transformação. 

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5 – Goodman e os Modos de fazer mundos

A resposta de Nelson Goodman (1906-1998) à disputa platônico-aristotélica sobre a natureza da realidade é radical e inspiradora: o mundo é o que compreendemos dele, universos são tanto construídos quanto descobertos, a compreensão e a criação andam juntas. O que importa são os modos de fazer mundos, que é o título de um de seus livros mais originais.

Entre os modos de fabricação, ele destaca:

– a composição/decomposição do que existe (os fatos), o que dá origem a novos objetos ou configurações, ao que é imaginado (os fictos);

– a enfatização de certos elementos, o que pode conduzir à deformação intencional, e à complementação ou supressão do que se considera relevante ou irrelevante;

– a ordenação do que já se registrou e destacou, com a construção de uma narrativa, o que introduz a temporalidade, possibilita a fixação e favorece a extrapolação.

Dividir, combinar, imaginar, destacar, suprimir, completar, ordenar, extrapolar seriam, então, verbos fundamentais para a construção de mundos.

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6 – O significado e a História

A História é fundamental para a construção do conhecimento. Conhecer é sempre conhecer o significado, e este somente se constrói por meio de narrativas. Uma boa aula é uma história bem contada e a fonte básica para a construção de narrativas é a História. Somente um enredo bem arquitetado pode fixar significados, impedindo que uma coleção de informações relevantes dissolva-se no tempo.

Mas o significado não se constrói de uma vez para sempre: ele está em permanente estado de atualização. Continuamente, algumas de suas relações constitutivas perdem a relevância e são substituídas por outras. A idéia de número não é construída pelas mesmas relações na escola básica e na universidade; o conceito de cidadania não é o mesmo na Grécia antiga ou nos dias atuais.

O conhecimento exige uma permanente atenção à História. Os significados mudam, mas não se transformam caleidoscopicamente. Na História, buscamos apreender o significado das transformações, ou o significado das mudanças de significado.

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7 – O problema realmente importante: o significado

As ciências consideram crucial a questão “O que é isso, a consciência?” Em The really hard problem (MIT, 2007), Flanagan coloca em foco o problema realmente decisivo: a atribuição de significado aos eventos do mundo material, que faz com que nossas vidas individuais tenham propósito e relevância. Sugere que o par Ciência/Religião é insuficiente para pensar tal questão e nos remete ao que chama de “Espaço do Significado no Início do Século XXI”, formado por três eixos de tensões: Arte/Ciência, Política/Tecnologia, Ética/Espiritualidade.

O eixo Arte/Ciência seria o lugar da expressão harmoniosa e da construção da racionalidade; no eixo Política/Tecnologia buscar-se-iam as relações entre a coerência e a utilidade; ao eixo Ética/Espiritualidade estariam reservadas as pretensões de justiça e de harmonia entre os seres humanos e o cosmos. 

Na construção do significado, tais eixos podem traduzir uma clássica combinatória de valores: Belo/Verdadeiro, Verdadeiro/Bom e Bom/Belo, respectivamente. 

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8 – Ciência, Religião, Esquemas

Em The construction of reality (1986), MichaelArbib (ateu convicto) e Mary Hesse (anglicana confessa) examinam a natureza da realidade a partir do par Ciência/Religião. O conceito chave a que recorrem para tal compreensão é o de esquema. Na indiscutível realidade de seres e objetos, os significados seriam construídos por meio de esquemas, isto é, unidades de ação, de interação ou de representação. A mente seria constituída por uma complexa rede de tais esquemas, que incluiriam as preensões/sucções do bebê, esquemas perceptuais simples, e também esquemas simbólicos de representação, que iriam das palavras, dos números, às linguagens em geral. Além disso, as ideologias e as religiões também constituiriam sistemas de representação da realidade, por meio dos quais as significações seriam construídas.

Escrito a quatro mãos, o percurso do livro é compatível com as visões científica e religiosa do mundo. Ao final, no entanto, somos levados a uma bifurcação radical entre as duas perspectivas. 

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 9 – Verdade e transcendência

Se a ideia de verdade é simples no senso comum, não o é na Ciência. Dizer-se que uma sentença é verdadeira se corresponde aos fatos não resolve: se não existem critérios claros para a associação entre frases de uma linguagem e fenômenos do mundo real, como falar de verdade como correspondência?

A solução proposta por Tarski parece simples: a verdade da proposição p de uma linguagem L somente pode ser afirmada recorrendo-se a uma linguagem L´, que tenha como objetos as sentenças de L. A verdade de p não pode ser afirmada no âmbito de L, mas apenas quando aprendemos a falar sobre p, o que exige certa consciência sobre o que se fala.

O prestígio científico da saída de Tarski não elide duas de suas lacunas básicas. A primeira é o fato de a verdade abandonar o mundo dos fatos e se cingir ao universo de uma linguagem. A segunda é a inextricável relação entre verdade e transcendência: não podemos falar da verdade de uma sentença senão quando ultrapassamos os limites da linguagem que utilizamos. 

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10 – Pluralismo e relativismo

O risco inerente à convivência entre múltiplos universos de significações é o absoluto relativismo: a ideia de verdade é esmaecida e instala-se um vale-tudo epistemológico. Mas a pluralidade de versões de mundos não elimina a necessidade de discernir as que são aceitáveis das que não o são.

A extrema dificuldade na formulação de critérios de admissibilidade é um problema crucial. A verdade não é suficiente para fundamentar a aceitabilidade nem mesmo no âmbito das linguagens formais, que dirá em universos como a música ou a pintura.

Goodman propõe a noção da correção, entendida como uma coerência, um ajustamento, ou uma harmonia radical entre os elementos envolvidos. O nó da questão é o fato de que os mesmos argumentos que nos levam ao pluralismo das versões de mundo também conduzem à multiplicidade de critérios de correção.

A existência do que seriam alguns invariantes em tais critérios, como as ideias do Bom, do Belo e do Verdadeiro, oferece uma luz no fim do túnel. É pegar ou largar.

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11 – Bom, Belo, Verdadeiro: Universais tácitos?

A sensação é partilhada por muitos: intuitivamente, gostamos ou não de algo, simpatizamos ou não com uma pessoa, consideramos justo ou injusto o resultado de um julgamento; as razões para isso vêm-nos depois. A percepção de uma imagem, a compreensão do que sentimos, o vislumbre do certo e do errado nos chegam de modo integrado.

As tentativas de fixação a priori decritérios de beleza, de verdade ou de justiça não têm frutificado. Controvérsias colossais abrangem territórios da Arte, do Direito, da Ciência. Intuímos que os múltiplos universos de significação não são igualmente aceitáveis, mas não sabemos explicitar nosso desconforto diante de algumas de suas formulações.

O problema talvez resida na insistência em explicitar critérios. Ao que tudo indica, discernimos tacitamente o Belo, o Bom, o Verdadeiro mesmo sem encontrar palavras para expressar o que sentimos; tais ideias situam-se no coração de cada um de nós. Trata-se de uma aposta otimista no ser humano? Sem dúvida. Qual é a sua?

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*****Nilson/março-2010

O Jornal e a Educação

Crônicas Transdisciplinares

Nílson José Machado

São Paulo, julho de 2017

SUMÁRIO

Apresentação

                                      POLÍTICA

  1. Jornal e Educação: Oração, Opinião, Consciência
  2. Machado de Assis, o Jornal e as Tecnologias                          
  3. A Massa e o Público: Antes Tarde que Le Bon                         
  4. Consciência, Massa, Público                                                      
  5. Força, Poder, Autoridade                                                            
  6. Autoridade, Responsabilidade, Dever e Poder                         
  7. Autoridade, Conteúdo, Teoria                                                    
  8. Estado, Nação, Estado Nacional                                                
  9. A Escola salva ou não salva a Democracia?                            
  10. O que torna alguém um Terrorista?                                          
  11. Nem Extremismo, nem Neutralidade                                          
  12.  Tortura e Delação Premiada                                                      
  13.  Polícia: Mocinhos e Bandidos                                                   
  14.  Política na Escola                                                                        
  15.  Escola sem Partido: Arbitrariedade e Livre-arbítrio               
  16. Regra de Três, Carisma e Demagogia                                       
  17. Integridade e Corrupção                                                              
  18. Amigdalite e Corrupção                                                              
  19. Integridade e Civilidade                                                              
  20. Design, Projeto, Integridade, Civilidade

                                      ÉTICA

  • Transformação, Conservação, Retrotopia                                
  • Afagos na Tradição: Horkheimer, Arendt, Bauman                 
  •  As revolucionárias Redes Sociais Conservadoras                 
  • Compliance, Vergonha na Cara, Civilidade                               
  •  A Corrupção da Ideia de Servidor Público                               
  •  Trabalho e Desemprego                                                             
  • Remédios, Drogas, Meios e Fins                                                
  •  Mediação: a fecundação mútua entre meios e fins                 
  •  Mediação: nem tudo é; nada existe sem                                  
  •  Mediocridade e Internacionalização                                          
  • Mediocridade e Neo-Escravidão                                                
  • Brindes Acadêmicos e outros Estímulos
  • Notas sobre a Felicidade                                                                
  • Dúvida Irracional, Fé Racional                                                       
  • A Intenção e a Ação                                                                         
  •  Simpatia, Empatia, Compaixão                                                      
  • Um Homem chamado Fera                                                              
  •  O Hábito, o Monge, o Contexto, a Norma
  • Habeas Corpus, Habeas Data, Habeas Cognitio
  • O tempo nos Esportes                                                                     

                                LINGUAGEM

  • Contratos, Violência, Nobel                                                            
  • A Vida, a Ordem Alfabética e a Ordem Numérica                    
  • Gramática e Filosofia                                                                  
  • Mais Bem Feito é Bem Melhor                                                   
  • Palavras Irmãs Siamesas                                                           
  •  A Força da Palavra e o Fascínio do Nome                               
  •  O que é Raro não é Impossível                                                 
  •  A Etimologia e a Morfologia podem ser traiçoeiras                
  • O maior órgão do corpo humano                                             
  •  A Língua: Modos de Usar            
  • Ensino Médio: a Falácia do Não Obrigatório como Proibido  
  • Sua Excelência, a Equivalência                                                   
  • Conhecimento: o sutil limites entre esquemas e preconceitos
  •  Sejamos pragmáticos: viva a Teoria!                                          
  • Vanzolini: Provocações Filosóficas                                               
  • Sobre Falar Merda                                                                             
  • A Matemática e a Língua Materna na construção da cidadania 
  •  Educação Brasileira: Sobram Competências…                            
  • Olimpíadas Zoológica e Biológica
  • Sentido, Significado, Conceito, Esquema, Preconceito             

                            CIÊNCIA

  •  Correlações, Causalidade, Covariações                                   
  •  O Teorema da Chuva, Indução, Dedução, Abdução                
  • Computadores e Seres Humanos: Quem acredita na Lei de Moore?
  •  A ambígua confiança na Biometria                                            
  •   Analógicos ou Digitais?                                                             
  •  Máquinas moleculares: Avanço ou retorno ao que importa? 
  •  O Jejum e as Fadas do Mal                                                          
  •  O lado “bom” do Aedes Aegypti                                                
  •  Ciência: Milagre da Graça ou Brincadeira sem Graça?           
  • Conhecimento: Commodity ou Commons?                                
  •  Inovação é Commodity?                                                              
  •  A Medicina pode fazer mal à Saúde…                                         
  •  Pesquisa: Produtivismo, Irrelevância, Plágio                            
  • As abelhas e a Epistemologia                      
  •  A importância da História nos Currículos                                   
  • O Vestibular, as Cotas, a Geladeira e o Aquecedor                      
  • Orientação e Tutoria na Escola Básica                                           
  • Formação do Professor: Conteúdo e Forma                                 
  •  A saúde mental dos Professores                                                  
  •  Educação Integral: Senso ou contrassenso?                               

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Apresentação

A importância do Jornal já foi superestimada por personalidades literárias importantes, como Machado de Assis. Em razão da agilidade de tal veículo, o notável acadêmico chegou a vaticinar, em O jornal e o livro, que o livro seria atropelado pelo Jornal, ou pelo menos perderia grande parte de sua razão de ser. Outros artistas comunicadores, como os Beatles, não levaram o papel da imprensa tão a sério, expressando isso, por exemplo, na música A day in the life(I read the news today, oh boy…) Equilibrando-se entre tais posições extremas, há ainda os que atribuem ao Jornal um papel especial na construção de um olhar crítico, capaz de apreender regularidades ou invariâncias no vórtice contínuo de fatos e notícias. Nessa última vertente, juntamente com outros veículos, o Jornal seria um instrumento fundamental na comunicação com o público, na constituição da opinião pública. É a partir do diálogo e do confronto entre os diversos públicos e opiniões que poderá ser construída, com paciência e tolerância, a consciência dos cidadãos educados, que é condição de possibilidade da convivência em regimes democráticos. Situam-se nessa vertente filósofos como Hegel, ou sociólogos como Gabriel Tarde.

Partindo do aparente consenso traduzido pelo fato de que a função da Educação Básica é a construção da consciência pessoal, que conduz a que cada cidadão assuma a plena responsabilidade pelas suas ações, vemos, então, certa confluência entre o Jornal e a Educação. A leitura diária de um Jornal pode assemelhar-se a uma “espécie de oração do homem moderno”, como expressou Hegel. O Jornal pode representar ainda um recurso decisivo para a explicitação de links entre as diversas disciplinas escolares, ou um instrumento para a articulação entre temáticas intraescolares e extraescolares. Tal tarefa é imprescindível a todo professor, em sua busca de mediação entre os interesses dos alunos, voltados para a vida em sentido pleno, e a disciplinas escolares, frequentemente apresentadas de modo excessivamente técnico ou insípido.

Todos os textos apresentados a seguir foram inspirados em matérias jornalísticas e buscaram a realização da mediação de interesses anteriormente referida. Em todos eles, as questões apresentadas tratam de objetos e de objetivos que transcendem os limites de cada uma das disciplinas escolares, aproximando temáticas e problemáticas diversas. Apesar da diversidade, os temas concentram-se em torno de quatro temáticas que, continuamente, se interpenetram: Política, Ética, Linguagem e Ciência em sentido pleno.Não se trata, portanto, de uma classificação rigorosa dos conteúdos dos textos, o que não seria viável nem desejável, mas apenas de uma indicação vaga da existência das quatro temáticas principais. A existência, aqui e ali, de certa reiteração nas ideias apresentadas tem como contrapartida o fato de que, em princípio, os textos podem ser lidos em qualquer ordem, em sintonia com o interesse nas relações sugeridas pelo título.

Naturalmente, em razão de serem inspirados em matérias jornalísticas, os textos aqui apresentados dizem respeito a fatos da atualidade, o que nos conduziu a rotulá-los como crônicas. São meros produtos da atenção de um professor que gosta de ler jornais; se puderem inspirar minimamente a ação de um ou outro professor, em suas aulas, já terão cumprido seu papel.

São Paulo, julho de 2017

Nílson José Machado

POLÍTICA

1.  O Jornal e a Educação:

Oração, Opinião, Consciência

Vivemos numa sociedade em que a informação circula cada vez mais rapidamente. Sites, blogs, redes sociais divulgam quase instantaneamente notícias reais ou fake news, postos continuamente em circulação. Resultados de jogos ou de eleições, previsões do tempo ou variações nas bolsas de valores são apresentados ao público em tempo real. Ninguém mais espera o jornal do dia seguinte para se informar sobre tais ocorrências. Ao mesmo tempo em que isto ocorre, as tiragens dos veículos da imprensa escrita diminuem no mundo inteiro e alguns analistas mais afoitos chegam até a anunciar o fim dos jornais. Tal expectativa, no entanto, deve ser recebida cum grano salis. Existe algo nos jornais que parece resistir. A jornada diária parece continuar a regular nossa vida humana muito mais do que os anos ou os segundos. O ritmo da circulação de informações na rede www não parece ser o ritmo da vida em sentido humano. Continuamos a nos orientar pelo dia como unidade de tempo e talvez o jornal represente, até etimologicamente, nossa referência básica na compreensão da sucessão de eventos. Variações decorrentes de atividades extraordinárias são frequentes e não produzem muito estranhamento, mas o dia e a noite continuam a nos pautar. É de Hegel (1730-1831) o aforismo que pode ser indiciário de tal fato: “A leitura diária do jornal é a oração matinal do homem moderno”. Desnecessário registro de que as religiões nada têm a ver com isso. O sentido da oração é o do encontro de cada um de nós consigo mesmo, o do momento em que nos constituímos como interlocutores de nós mesmos, em diálogos profundos e decisivos. Coexistindo com as redes informacionais, os jornais permanecem como um espaço que vai além das informações, que elabora as primeiras análises críticas, abrindo janelas de opções para a leitura do mundo. Gabriel Tarde (1843-1904, A opinião e as massas) já nos alertara para o fato de que a divisão da sociedade em públicos tenderia não a substituir as divisões religiosas, políticas, econômicas, mas sim a se superpor a todas essas de modo cada vez mais visível. A ideia de público é muito mais fecunda do que a de multidões, que seduziu autores tão controversos como Gustave Le Bon, em sua Psicologia das Multidões (1895). O próprio Freud (1856-1939), em seu Psicologia das multidões e análise do eu, cita inúmeras vezes Le Bon, mesmo sem concordar inteiramente com ele. Do ponto de vista do fazer com a palavra, do recorrer-se à palavra para combater a violência, do trabalhar para que a palavra não se constitua como instrumento da violência, os públicos são muito mais interessantes do que as multidões por uma razão muito simples: o exercício da força pode ser inevitável no enfrentamento de multidões, mas ao tratar com o público, é fundamental a formação da opinião, o confronto de opiniões, e é aí que se encaixa perfeitamente o papel do jornal nos dias de hoje. Segundo Tarde, os jornais contribuem para construir um espaço para constituir um saudável confronto de opiniões, tanto entre leitores quanto entre não leitores, uma vez que influenciam indiretamente as temáticas das conversações ocorridas em outros espaços. Naturalmente, estamos nos referindo ao jornal como um espaço público, disponibilizado pelos seus legítimos proprietários tendo por base a importância da conversação e do debate de ideias para a construção da consciência crítica, imprescindível ao exercício da cidadania em regimes democráticos. Uma frase lapidar de Victor Hugo, genial autor de Os miseráveis, parece explicitar a relevância e o caráter de um jornal: “O diâmetro da imprensa é o diâmetro da civilização”. Como órgão diário fundamental da imprensa, as funções de um jornal assim concebido aproximam-se de modo tangencial mas substantivo da mais importante função da Educação, que é a formação da consciência crítica. Não se chega a tal destino senão por meio de um confronto de opiniões, nos mais variados espaços, entre os mais diversos públicos: eis aí o que mais se requer de um jornal.

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       2. Machado de Assis, o Jornal e as Tecnologias

Em 1859, Machado de Assis publicou um artigo no jornal Correio Mercantil intitulado O jornal e o livro. Nele, o eminente homem de letras defendeu com muita ênfase uma posição que a História demonstrou ter sido inteiramente equivocada: ele previa a inevitável derrota do livro, no confronto com os jornais. Considerava o livro um meio sem a agilidade necessária para acompanhar as demandas da época; um meio para poucos. Associa o jornal, em consonância com isso, à plena vivência democrática, registrando sem meias palavras, em seu texto, que “o jornal é uma expressão, é um sintoma de democracia; e a democracia é o povo, é a humanidade.” Otimisticamente e de maneira surpreendentemente ingênua, considera que a preponderância do jornal seria “uma aurora de uma época de ouro”. Naturalmente, ele pensava o  jornal como um terreno fértil para a semeadura de textos literários, muito mais do que um veículo para a circulação de informações de interesse comunicacionais imediato. Mas o trem da tecnologia parece ter atropelado as previsões machadianas. Na companhia de Kant e de Marx, Machado não foi capaz de antecipar o extraordinário desenvolvimento das tecnologias informáticas, que levou ao aparecimento dos meios eletrônicos que hoje parecem, a alguns, ameaçar a própria existência dos jornais. As tiragens diminuem no mundo inteiro e, para sobreviver, os jornais deixaram de ser a fonte primária de informações e estão cumprindo outras funções, de caráter analítico. Fogem, assim, da absoluta efemeridade dos textos nas redes informacionais, ganhando uma sobrevida que, no entanto, é muito menor do que a do texto publicado na forma de um livro. A convivência, a colaboração tanto no conteúdo quanto na forma, uma nova repartição de tarefas entre os diferentes meios de expressão parece uma previsão com mais chances de sucesso do que a casca de banana jornalística em que Machado de Assis parece ter escorregado…

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3.  A Massa e o Público: Antes Tarde que Le Bon

Gabriel Tarde escreveu em 1901 um livro importante intitulado A opinião e as massas. Gustave Le Bon escreveu em 1895 outro livro precioso intitulado Psicologia das Multidões. Ambos os textos precedem em muito o advento do que hoje se caracteriza como uma sociedade de massas, bem como as tecnologias informáticas que predominam na comunicação com o público, mas são indiscutivelmente premonitórios relativamente aos fenômenos de massificação em sentido político e de imbricação entre os espaços público e privado. Bon pretende que estaria assistindo a um desaparecimento da personalidade consciente, com a emergência de uma “era das multidões”. Tarde resiste a tal ideia, pretendendo que o novo tempo seria a era do público, ou dos públicos, distinguindo vigorosamente o público, ou os públicos, das massas, ou das multidões. Abre-se aí um espaço para uma distinção fecunda e interessante entre o público e a multidão. Examinemos sucintamente – e de passagem – tal distinção. Para Bon, o que caracteriza uma multidão é uma espécie de alma coletiva, que faz com que alguém sinta, pense e proceda de uma maneira diferente daquela pela qual sentiria, pensaria e procederia isoladamente. Registra que as multidões acumulam não a inteligência mas a mediocridade, e que do ponto de vista racional, são sempre inferiores a um homem considerado isoladamente; do ponto de vista dos sentimentos e dos atos, podem ser melhores ou piores. Identifica certas características fundamentais nas multidões, tais como a impulsividade, a instabilidade, a irritabilidade, a sugestionabilidade e a credulidade. Já Tarde, ao refletir sobre o mesmo fenômeno social, elabora o conceito de público, ou de públicos, e garante que, da multidão ao público, a distância é imensa. Entende o público como uma coletividade puramente espiritual, como uma disseminação de indivíduos cuja coesão se dá de maneira inteiramente mental. Enquanto a multidão estaria associada às forças da natureza, o público seria tributário da criação da imprensa, da emergência dos meios de comunicação. Enquanto as multidões ou as massas são necessariamente dependentes de um líder ou de um condutor, a influência no nascimento dos públicos estaria associada muito mais fortemente aos chamados “publicistas”, que podem ser jornalistas, radialistas, escritores, artistas, políticos, intelectuais… Os dois livros referidos constituem, até hoje, manuais indispensáveis para os universos da publicidade ou da propaganda. Seriam também fundamentais para uma maior eficácia das ações educacionais. Apesar de, em razão da época em que foram escritos, não tratarem das tecnologias informáticas, ambos apresentam considerações fundamentais para a ultrapassagem de certos dilemas atuais sobre sua onipresença. O tema merece atenção.

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4.  Consciência, Massa, Público

Para Freud, a linha divisória entre a psicologia individual e a psicologia social era tênue. O conhecimento das motivações das massas era condição de possibilidade da atuação consciente do homem de Estado, não para controlá-las plenamente, o que é praticamente impossível, mas para não ser governado por elas. Em seu Psicologia das massas e análise do eu, Freud acolhe Gustave Le Bon com simpatia incomum, ecoando trechos do livro Psicologia das Multidões, de Le Bon, ao afirmar que “na multidão, a personalidade consciente desaparece, os sentimentos e as ideias de todos os indivíduos orientam-se numa mesma direção: as multidões não acumulam inteligência, mas sim a mediocridade”. Ao investigar a atuação das massas, identifica três pares de “I”s: Inconsciência e Irritabilidade; Impulsividade e Instantaneidade; Instabilidade e Influenciabilidade, associados respectivamente à carência de censura, a ausência de planejamento e a frequente inconsistência. Para ambos os autores, o mero fato de pertencer a uma massa faz com que o ser humano desça vários degraus na escala da civilização. Outro autor diretamente relacionado com o tema é Gabriel Tarde. Em seu A opinião e as massas, distingue, no entanto, a  massa e o público, corrigindo Le Bon: “Não posso conceder a Le Bon que nosso tempo seja a era das multidões; ele é a era do publico, ou dos públicos, o que é bem diferente.” E pretende que os públicos diferem das multidões no que diz respeito ao fato de que a proporção dos públicos de fé e de ideia é bem maior do que a dos públicos de paixão e de ação, inversamente ao que ocorre com as multidões. Atribui um papel extremamente relevante ao jornal, ou aos publicistas (jornalistas) como formadores de opinião. A análise de Tarde é realizada em 1901, bem antes do aparecimento das tecnologias informáticas. É admirável, no entanto, seu caráter premonitório: em muitas partes de seu livro sentimo-nos como se ele estivesse falando das redes sociais, e, sobretudo, das campanhas eleitorais.

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5.  Força, Poder, Autoridade

Na vida em sociedade, a coação, ou a ação sobre os outros, é necessária. Embora a ideia de coação pareça sempre indesejável, existe a coação legítima, diretamente associada ao cumprimento das leis. A lei nos coage a todos, e gostamos disso. Existe também a coação associada ao exercício da heteronomia, como instrumento necessário para a passagem da anomia à autonomia. E existe, naturalmente, a coação ilegítima correspondente à coerção, ao exercício da força, que é sempre indesejável, embora nem sempre evitável.

O contrato social que organiza a vida em sociedade reserva ao Estado o monopólio do uso da força. Tal deferência está diretamente associada à responsabilidade do Estado no estabelecimento de uma ordem pública que garanta proteção ao cidadão. Naturalmente, estamos falando do Estado de Direito, legalmente constituído para o exercício do Poder. A estrutura do Poder deve ser tal que a coação que dele decorre seja consentida. A tripartição do Poder (Executivo, Legislativo, Judiciário) é apenas um dos requisitos básicos para tal consentimento. A fundamentação na Justiça é, sem dúvida, o mais importante de todos os requisitos. Já se disse que, sem tal fundamentação, não há distinção entre um Estado e um bando de ladrões.

O exercício do Poder é tarefa para uma Autoridade, que assume a responsabilidade pela ação sobre os outros. Além da Força disponível para o garantir o exercício do Poder e do consentimento associado ao fato de tal Poder ser legalmente constituído, a Autoridade necessita de legitimidade, o que está associado ao modo como ela chegou ao Poder. Em um Estado de Direito, existem normas legais que conduzem o processo de constituição dos governantes; se elas não existem, são violadas ou não parecem justas, a Autoridade é minada. Eleições não instituem uma Autoridade, mas apenas legitimam uma Autoridade potencial que já existia.

Completa-se, assim, a tríade: Força, Poder, Autoridade. Quando a Autoridade é minada e se torna ilegítima, ainda resta o Poder; quando as estruturas do Poder sofrem abalo, resta apenas a Força. Tal é o caminho percorrido em um movimento como a Revolução Francesa. O mero exercício da Força nunca pode aspirar a uma situação de estabilidade, sendo sempre transitório. Similarmente, a manutenção do Poder quando a Autoridade se esvaiu em geral dura pouco.     ******

6.  Autoridade, Responsabilidade, Dever, Poder

A responsabilidade é uma afável porta de entrada no terreno da autoridade. Não existe um par mais solidário do que autoridade/responsabilidade. Não existe autoridade irresponsável; quando a irresponsabilidade chega é porque a autoridade já se esvaiu ou se foi. Refletir sobre a ideia de autoridade a partir de sua associação indissolúvel com a ideia de responsabilidade pode ser um recurso interessante. Uma autoridade sempre responde pelos outros. Quem não quer assumir responsabilidades pelo outro não pode exercer qualquer tipo de autoridade. A relação entre direitos e responsabilidades também é interessante. A garantia dos direitos dos cidadãos é responsabilidade, é dever do Estado; por outro lado, é direito do Estado que o cidadão assuma suas responsabilidades, que cumpra seus deveres cívicos. No que se refere ao poder, a autoridade pressupõe um poder legitimamente constituído, mas nem todo poder advém de uma autoridade. Um poder sem o consentimento tácito que nasce da autoridade é frágil e efêmero; uma autoridade sem poder é literalmente impotente. Fechando o círculo, como o exercício do poder relaciona-se diretamente com a necessidade de responder pelas ações dos outros, a responsabilidade é um dever inerente ao exercício do poder. Assim como somente pode ser excêntrico aquele que vislumbra um centro, somente pode ser irresponsável quem tem o dever de responder pelos outros. No nível pessoal, há, em cada um de nós, um âmbito interno em que nós somos a maior autoridade sobre nós mesmos. Invadir tal “fundo insubornável” da pessoa é destruí-la, pretendia Ortega y Gasset. Em compensação, cada um de nós é absolutamente responsável por tudo o que advém de tal âmbito: somos responsáveis até – e principalmente – pelos nossos atos irresponsáveis.

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7.  Autoridade, Conteúdo, Teoria

É muito conhecido o texto de Hannah Arendt intitulado A crise na Educação. Quando citado, no entanto, um aspecto apenas sobreleva os demais: o registro da crise na ideia de autoridade. Apesar de fundamental, tal registro é apresentado juntamente com dois outros do mesmo porte, que podem passar despercebidos: a crise na Educação decorreria também, segundo Arendt, de certa subestimação do conteúdo disciplinar do que se ensina, em benefício de sedutoras metodologias ou tecnologias, e, além disso, no âmbito de cada disciplina, certo desprezo pela teoria, com um elogio acrítico do fazer prático. Naturalmente, os três aspectos referidos entrelaçam-se continuamente. A fonte mais legítima da autoridade do professor decorre de seu domínio do conteúdo disciplinar que leciona. Saber apenas o conteúdo não basta, mas não há como sustentar a autoridade de um professor que é indigente relativamente aos conteúdos. O encantamento dos alunos pela temática a ser ensinada depende de um conhecimento adequado por parte do professor. Um professor ou uma professora que ignora as ideias fundamentais da matemática não pode apresentar tais ideias de modo sedutor para os alunos. O conhecimento dos conteúdos é, decididamente, mais importante do que o de metodologias específicas. Quem tem um porque  ensinar certo tema sempre arruma um como  ensiná-lo, mas a recíproca não é verdadeira. É importante ser capaz de escolher a melhor metodologia, mas é secundário. É secundário no sentido de que vem em segundo lugar, após um conhecimento dos conteúdos a serem ensinados. E não há como conhecer os conteúdos de maneira crítica sem teoria. A palavra teoria significa, etimologicamente, visão, em grego. Trata-se da visão que leva à compreensão, fundamental para a ação consciente em qualquer assunto, em qualquer circunstância. Apenas por um desvio semântico, teoria passou a ser associada apenas à contemplação, sem a ação. Mas a teoria somente se completa na prefiguração da ação. Fugir da teoria é condenar-se a agir às cegas. Os três aspectos da crise na Educação apontada pela Hannah Arendt merecem, portanto, o mesmo destaque.

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8.   Estado, Nação, Estado Nacional

A noção de Estado é construída a partir de três ideias fundamentais: uma estrutura de poder que afirma uma soberania; um território claramente delimitado, que contextua tal soberania interna e externamente; e uma população, que constitui o povo do Estado. Apesar das possíveis similaridades, a noção de Nação, que é mais primordial no tempo histórico, fundamenta-se em outro conjunto de ideias: a noção de povo ou comunidade com uma ascendência comum; uma língua (eventualmente mais do que uma), que viabiliza a ação comum, a comunicação; e uma cultura, associada a uma forma de vida, coletivamente construída. Ao longo da História, é possível identificar Estados com origem e constituição diversa da anteriormente referida, com a frequente presença e interferência de religiões, com projetos fundados em ditames ou aspirações de personagens idiossincráticos, quase sempre associados a guerras ou outras formas de violência. Ao mesmo tempo – e até os dias atuais – subsistem inúmeras nacionalidades que não lograram o estatuto de Estado, sobretudo em razão de questões territoriais. A partir da Revolução Francesa, no entanto, as duas noções se aproximaram decisivamente, e passou a prevalecer a ideia de Estado Nação, em que as ideias de cidadania e de pessoalidade passam a conviver com as de Estado e Nacionalidade. Tal convergência parece desejável, quando se pensa a possibilidade da construção de uma ordem mundial com um mínimo de coerência, estabilidade e tolerância, mas novos problemas teóricos passaram a ocupar o centro das atenções. O maior deles, talvez, é a divisão de tarefas entre o Estado e o Mercado, na constituição da ordem vigente. Se a Declaração Universal de Direitos Humanos estabeleceu um patamar mínimo para a consideração dos direitos dos cidadãos, um documento similar no que tange aos direitos dos Estados ainda não existe. Tribunais internacionais são solenemente ignorados pelos Estados, dos mais incipientes aos mais poderosos. Especialmente no que tange às relações entre o Direito Público e o Privado, que delimitaria as influências do Estado e do Mercado, somos quase que absolutamente carentes de referências eticamente defensáveis.

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 9.  A Escola salva ou não salva a Democracia?

Em coluna no jornal Folha de São Paulo (16-05-2017), ao argumentar sobre a suposta ineficácia da escola na formação para a democracia, no afã de chamar a atenção para as limitações de tal instituição, Helio Schwartsman comete dois equívocos primários. Em primeiro lugar, confunde uma formação escolar básica de qualidade, que é, sem dúvida, uma condição necessária para o funcionamento de um regime democrático, com a competência técnica para assuntos científicos. Quando se pensa na educação básica, não há outra resposta para a questão proposta pelo articulista: a boa educação melhora a qualidade do voto. Entretanto, como bem advertiu Dewey em Democracia e Educação (1916), trata-se da educação básica e não daquela que visa a aumentar a quantidade de sábios ou de sabidinhos presentes na população. A existência de institutos superiores de excelência, como o citado por Schwartzman, não constitui um indicador suficiente da qualidade da educação básica dos cidadãos da região considerada. Em segundo lugar, o que Schwartzman critica – e fazemos coro com ele – é um funcionamento inadequado da democracia em situações específicas, como a da fluoretação da água, no exemplo citado no texto. Certamente questões de natureza técnica ou científica não podem ser decididas por meio de plebiscitos ou manifestações diretas da população. Não se pode fixar o valor dos salários, por exemplo, por meio de uma consulta direta decisiva à população. Fundamental nas eleições para o exercício do poder legitimamente constituído, a regra da maioria não pode prevalecer em âmbitos específicos mais restritos, como o do funcionamento da ciência, da família ou da escola.

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10.   O que torna alguém um terrorista?  

Uma matéria publicada no jornal The New York Times (28-03-2016) examina as razões pelas quais dúzias de jovens americanos e de outras partes do mundo são atraídos pelas ações violentas do auto-denominado “Estado Islâmico”. Indícios são levantados para compor uma espécie de “check list” que permitiria o esboço de um perfil a partir de características externas, mas os resultados não parecem animadores. Decididamente, o buraco é mais em baixo. A necessidade humana de uma razão para viver, de um sentido para a vida, de uma causa para partilhar com os outros podem estar mais próximas das raízes do problema. Em outros momentos históricos, ingressar nas forças armadas de um país, tornar-se religioso em alguma ordem, servir em organizações internacionais beneficentes já constituíram atrativos. Mas as nacionalidades se apequenaram ou se desviaram para anseios de governos ou, pior ainda, de governantes personalistas, as religiões se desfiguraram em intolerâncias e disputas sem fim, a economia corrompeu a ideia de valor, reduzindo-o quase que exclusivamente a sua dimensão econômica, as tecnologias estimulam – literalmente – os desejos, disfarçando a necessidade da consciência e da racionalidade dos projetos. Em consequência, instala-se na mais pura das pessoas uma tensão e uma tendência para um vazio existencial. Como destacou Owen Flanagan em seu fundamental livro The really hard problem, o máximo desafio que se oferece ao homem atual é crescer em consciência e permanecer apostando no significado da vida. O combate ao terrorismo não avançará a partir de “check lists” muitas vezes preconceituosos, mas sim por meio da construção de instâncias de articulação entre projetos individuais e coletivos, sem esquecer, nem um minuto, de que projetos são sustentados por uma arquitetura de valores, e projetos sem valores podem ser coisas monstruosas. No combate ao terrorismo, o desafio permanente é de uma educação que cultive valores como  uma religiosidade humana sem nos obrigar a escolher uma religião, que valorize as culturas nacionais sem identificar diferenças com desigualdades, que nos faça, a cada dia, a cada gesto, participar da construção de um mundo mais solidário, que não se limita ao universo da economia, que não confunde valor com preço.

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11.  Nem extremismo, nem neutralidade

Vivemos uma época em que o combate aos extremismos se consolida como um dos objetivos precípuos da Educação. É fundamental evitar a redução do universo do discurso ao das narrativas binárias, em que tudo se resume à luta do bem contra o mal, em que os papéis são reduzidos aos de heróis ou de vilões, ao de bruxas ou de fadas. A vida política degenera em perigosa brincadeira infantil quando pretendemos que uma questão em exame apresenta apenas duas alternativas que se opõem radicalmente, e quem não está comigo está contra mim. As histórias reais apresentam sempre múltiplas faces, expressam diversos pontos de vista. A redução a narrativas binárias acaba por conduzir à escolha de um dos extremos em litígio. A ignorância da complexidade das escolhas humanas abre as portas para os sempre indesejáveis extremismos, em diferentes contextos. Não estamos, no entanto, condenados a tal opção, nem se pode pretender que, diante de uma disputa binária, para evitar o extremismo, a ausência de opção teria a pretensa neutralidade como solução. Mas a neutralidade é uma emenda que sempre piora o soneto; em última instância, ela nem mesmo existe. Não tomar uma decisão é uma forma degenerada de decidir. Afinal, como registrou Dante em seu monumental poema A Divina Comédia, “os lugares mais quentes do inferno são destinados aos que buscaram a neutralidade em situações de crise”. Para uma ação efetiva, que vá além das escolhas binárias, é preciso vislumbrar alternativas. Nas situações humanas, os dilemas ou as contradições são aparentes ou provisórios. A vida não se esgota em escolhas extremistas do tipo A ou não A. Uma análise crítica competente sempre conduz a um possível B, que cria um espaço no suposto terreno vazio pretendido pelo dilema A ou não A. E cada B vislumbrado gera, naturalmente, uma nova negação, um não B que enriquece a discussão. Em vez de uma só oposição, somos levados a considerar duas, três, quatro, e assim por diante. Em sentido humano, as narrativas multifárias são a regra e toda pretensão binária funciona apenas como andaime na construção de um discurso mais rico, mais complexo, mais humano. Em todos os casos, no entanto, é fundamental manifestar uma opinião, e, por mais provisória que seja, tomar uma decisão.

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12. Tortura e Delação Premiada

No que tange à Ética, vivemos um período triste de nossa história. Diariamente, os jornais revelam novas etapas de uma investigação criminal no terreno político/econômico. E os acusados ou presos de hoje tornam-se aliados delatores de amanhã. Mas há algo de podre no reino da delação premiada. Uma ação eticamente defensável se dá no espaço do livre arbítrio. Não é o que ocorre com aquele que denuncia em função de benefícios pessoais, como é o caso da delação, nem com aquele que faz revelações para evitar sofrimentos físicos, como é o caso da tortura. Os resultados das ações realizadas, em um ou no outro caso, podem ser eficazes do ponto de vista prático, mas não são defensáveis do ponto de vista ético. Uma perspectiva utilitarista destacaria o fato de que, sem a delação, seriam mais tortuosos os caminhos da justiça; algo similar ocorreria no caso da tortura. Mas o juiz não é desonesto apenas quando rouba para nosso adversário: ele o é também quando nos beneficia. No terreno da ética, a formação em valores é a única saída e toda impaciência é perigosa. É muito fácil entrarmos em acordo com relação aos fins de nossas ações coletivas, mas, decididamente, os fins não justificam os meios.

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13.  Polícia: Mocinhos e Bandidos      

No desempenho de sua função social, a polícia tem sido alvo frequentemente de atenção e de críticas.  Na maior parte delas, as análises são eivadas por uma polarização primária em que são apontados com uma nitidez ilusória os mocinhos e os bandidos em cada situação. Tal pretensão binária tem a aparência de assertividade, mas é característica do pensamento infantil. Crianças adoram histórias em que há heróis e há vilões, há bruxas e há fadas. Adultos também recorrem à simplicidade de pares de opostos como o bem e o mal, mas apenas para buscar uma orientação em cenários de valores mais complexos. Afinal, às vezes, o certo e o errado são vistos de mãos dadas: a vida não é um conto de fadas.

Quando a polícia é chamada legalmente a intervir, de alguma maneira a ordem jurídica está em crise. A desocupação de um espaço pressupõe, obviamente, uma ocupação ilegal. A repressão ao tráfico de drogas funda-se na legalidade de sua proibição.  Quando se atesta a falência da palavra, da argumentação racional, a força pode-se tornar o último recurso. Todos parecem estar de acordo com relação ao fato de que a violência é sempre indesejável, mas é preciso reconhecer que ela nem sempre é evitável. Se um tresloucado ameaçar a integridade física de cidadãos indefesos, a expectativa tácita dos envolvidos é a da ação da polícia no sentido de constrangê-lo.

O recurso à força física, salvo em casos patológicos, provoca uma sensação de desconforto nos envolvidos. Evitar a instalação da violência é mais importante do que apontar quem começou a ruptura da confiança na palavra. O diálogo e a argumentação alimentam-se da responsabilidade assumida e de uma absoluta sintonia entre as palavras e as ações. Rompida tal sintonia, é muito tênue a linha que separa os mocinhos dos bandidos.

Nos dois lados, há os que sucumbem à tentação de recorrer a meios ilegais tendo em vista um fim considerado glorioso, o que é uma permanente fonte de desvios. Mas mocinhos que gostam de bater são tão excepcionais e doentios quanto bandidos que gostam apanhar. No combate aos desvios, a lei deve ser igualmente rigorosa para todos os envolvidos. A confiança na polícia depende da realidade e da eficácia na punição dos abusos. Simetricamente, a descrença na instituição policial não pode ser cultivada: ela semeia milícias, o que faz mal à democracia.

Diante de uma ameaça à integridade pessoal, um compositor do século passado sugeriu, em uma de suas canções: “Chame o ladrão! Chame o ladrão! Chame o ladrão!” Tal ironia pode ser recurso interessante em regimes autoritários, mas é uma brincadeira sem graça nas democracias.

A menos que consideremos o terreno utópico da anarquia, é fundamental reconhecer a função social da polícia. No exercício do poder legitimamente constituído, é responsabilidade do governante recorrer à força para fazer cumprir as leis e manter a ordem pública. A polícia é o braço executor de tal função; desconsiderar seu uso pode ser crime de prevaricação. Todos são iguais perante a lei, e nenhum setor da sociedade pode se constituir em reduto imune à ação policial.

Leis que perdem a legitimidade precisam ser mudadas, o que exige articulação, argumentação e paciência. Enquanto não forem mudadas, seu cumprimento é a garantia da integridade de cada um. Diante de uma ameaça a tal integridade, sem pudores ou blandícia, chamemos a polícia.

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14. Política na Escola

Grande celeuma tem produzido a lei alagoana que supostamente proibiria ao professor tratar de política nas salas de aula. Numerosas críticas incisivas, ao lado de algumas tímidas defesas, têm sido feitas, mas tudo não parece passar de um grande mal-entendido. É impossível a um professor não tratar de política na escola. A formação para a cidadania, o cultivo de valores socialmente partilhados, a reflexão crítica sobre as normas reguladoras da convivência social, com a construção do discernimento entre a legitimidade e a legalidade de uma norma são funções da escola. O professor que se omitir em tais tarefas estará fazendo política – da pior qualidade – e não evitando a política. Mas ao professor, assim como ao médico ou ao juiz, no exercício de sua atividade profissional, não pode e não deve fazer política partidária. Como cidadãos, um professor, um médico ou um juiz podem filiar-se a um partido político e partilhar ideologias com os correligionários, mas um professor não pode agir na sala de aula como um militante partidário, nem um juiz pode exercer sua função em sintonia com as máximas ideológicas de seu partido. De tão evidentes, tais exigências parecem desnecessárias, mas, na realidade, não o são. Em todos os níveis de ensino, os abusos são muito frequentes. A escola e a família constituem espaços fundamentais para a construção da autonomia, mas não podem funcionar exatamente como uma democracia. Não elegemos nossos pais, nem nossos professores. Reiteramos que é impossível não trazer a política para a sala de aula, mas é absolutamente indesejável injetar venenos ideológicos em alunos em formação: política partidária, não!

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15. Escola sem partido? Arbitrariedade e Livre Arbítrio

O debate é intenso: é legítima ou arbitrária a intenção de uma escola sem doutrinação partidária nas salas de aula? São duas as vertentes de respostas: – restringir a ação do professor na defesa de ideias políticas de sua preferência é um indefensável ato autoritário; permitir que o professor utilize a sala de aula como espaço de doutrinação, como frequentemente ocorre em algumas disciplinas, também não parece aceitável. Em consequência, os participantes do debate dividem-se de modo extremista: uns são a favor e outros são contra o projeto de lei. Não me parece possível, no entanto, reduzir as posições apenas às duas citadas. A ação do professor é sempre de natureza política. A escola é um espaço para a construção da cidadania. Qualquer pretensão de neutralidade parece ingênua. Mas não se pode conduzir a argumentação à recusa da política. Por outro lado, há uma diferença imensa entre a ação política própria do modo de ser do ser humano e a construção de narrativas unárias, em que a história é apresentada como se resultasse de uma única perspectiva: aí se encontra a origem de todo dogmatismo, de todo o fanatismo. Também não é o caso de reduzir as perspectivas a apenas duas: a dos que estão comigo e a dos que estão contra mim. Tal perspectiva binária situa-se na origem de todo extremismo, de toda redução simplória à polarização entre o bem e o mal. E aí, como ficamos? De minha parte, o debate parece pertinente e interessante, mas sou contra qualquer legislação para regular a atuação do professor em sala de aula. Existem leis demais, muitas das quais têm efeito apenas decorativo. A decisão sobre o caminho a seguir deve resultar do livre arbítrio do professor. Hoje, mas do que nunca, os meios de explicitação dos excessos são amplamente disponíveis. O abuso de poder e a extrapolação da autoridade legítima dos professores na construção de um conhecimento crítico em sala de aula encontrarão meios naturais de contenção. A formação dos professores merece mais atenção por parte dos responsáveis pela educação do que a criação de uma nova lei, abstrusa desde a origem, caricatura de intenções legítimas mas ingênuas, condenada a ter função meramente decorativa.

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16.  Regra de Três, Carisma eDemagogia

Um dos conceitos weberianos mais sofisticados é o de carisma, ou de certo tipo de dom para o exercício da política. Naturalmente, uma grande distância separa o verdadeiro carisma da reles demagogia. Para ilustrar tal distinção, recorremos a duas outras, similares em algum sentido. A primeira é a relação entre sentimento e emoção. Como bem ilustra Damásio, em seu livro O mistério da Consciência, o sentimentoé algo mais profundo, que podemos manifestar por meio de emoções. O amor é o sentimento; para expressá-lo, podemos explicitar emoções como a alegria ou o entusiasmo diante do ser amado. As emoções constituem a periferia, ou o envólucro dos sentimentos. A segunda é uma distinção igualmente sutil entre simpatia e empatia. Uma pessoa pode ser simpática em relações superficiais, sem que nos sintamos realmente próximos dela, no que se refere a uma partilha de sentimentos. Já o sentimento de empatia com certa pessoa é mais profundo, nos fazendo partilhar algo mais do que emoções superficiais. Resumindo, um político carismático está para o simples demagogo assim como a empatia está para a mera simpatia, ou como o sentimento mais fundo está para uma emoção passageira.

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17.  Integridade e Corrupção

A Integridade é um valor fundamental na constituição da pessoa. Em primeiríssimo lugar, uma pessoa íntegra tem um quadro de valores que lhe provê um discernimento do que é certo e do que é errado. Todos temos dúvidas em diversos temas, mas é imprescindível que a formação pessoal tenha definido um quadro mínimo de certezas: se a dúvida prevalece em todos os temas, não pode existir integridade. Não basta, porém, ter um quadro de valores para ser íntegro: é preciso que as ações que realizamos reflitam tal quadro. Nada parece mais característico da falta de integridade do que uma ausência de sintonia entre as palavras que saem de nossa boca e nossa prática efetiva. A coerência entre o pensamento e as ações, no entanto, ainda não é suficiente para garantir a integridade. É possível que conheçamos pessoas com quadro de valores bem definido, que agem efetivamente em sintonia com tal quadro, mas que falham no que tange à integridade pela falta de integração com os outros. É o que ocorre, por exemplo, com alguém que diz algo como: “Eu não faço mal a ninguém, eu cumpro as leis, eu pago meus impostos, o resto que se dane…”  Não podemos nos responsabilizar pelas desgraças globais, mas falta um pouco de integridade em quem não sente em si as dores do mundo. Uma pessoa íntegra é, portanto, uma pessoa inteira e uma pessoa integrada com os outros. Tal integração se realiza concretamente por meio da permanente abertura no quadro de valores. Continuamente somos levados a mediações em que um fechamento de tal quadro representa intolerância e fomenta desintegração. Algumas observações complementares, para fornecer a sombra necessária à luz que se pretende sobre a ideia de integridade:

– a integridade não significa sempre seguir as normas existentes; às vezes, para garanti-la é preciso quebrar regras;

– a integridade pressupõe honestidade, mas é mais que a honestidade, incluindo o compromisso e a iniciativa da ação;

– a integridade tem um antônimo, um polo oposto, um negativo; seu nome é Corrupção.

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18.   Amigdalite e Corrupção

As amígdalas são pequenos órgãos situados na confluência interna entre a boca e o nariz. São responsáveis pela produção de anticorpos para as bactérias e outros invasores do sistema respiratório humano. Algumas vezes, costumam inflamar-se, produzindo desconforto ou mau hálito, sobretudo em crianças. Apesar de as funções das amígdalas não serem suficientemente conhecidas, há algumas décadas era comum extrair as amígdalas de crianças, quando as amigdalites ocorriam com grande frequência, digamos, mais do que 5 vezes ao ano. Do ponto de vista da produção de anticorpos, mesmo levando em consideração sua localização estratégica, as amígdalas eram responsáveis apenas por cerca de  2% dos mecanismos de defesa do corpo humano, diminuindo ainda mais tal porcentagem na passagem para a vida adulta. Com certa arrogância, que não é incomum nas conclusões científicas, concluía-se, então, que as amígdalas serviam para muito pouco. Em 2003, uma tese de doutorado defendida na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo por Jorge Neval Moll Neto recorreu a ressonância magnética para evidenciar que emoções morais desagradáveis afetam as amígdalas. Experiências com adultos revelaram que o córtex órbito-frontal e a região do sulco temporal superior são alteradas por provocações morais. Eis aí uma nova linha de argumentação para a difícil defesa dos acusados de corrupção, tão numerosos no Brasil atual: não se trata de corruptos, mas sim de pacientes que sofrem de amigdalite. E algumas vezes, poder-se-á recorrer à irresponsabilidade do médico com extraiu as amígdalas dos acusados, subtraindo-lhes  as defesas naturais, quando ainda eram criancinhas indefesas. Pois é, a extração de amígdalas não é mais um ato médico politicamente correto…

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19.  Integridade e Civilidade

A integridade é um valor maior, imprescindível para uma vida eticamente fundada, partilhando valores em regimes democráticos. Ela é  que estabelece limites tanto para o exercício da autoridade quanto para o cultivo da tolerância. Mas ela necessita permanentemente do apoio de um valor mais singelo,  ainda que igualmente importante: a civilidade. A integridade está para a ética assim como a civilidade está para a etiqueta. Refiro-me à etiqueta não como o respeito a formalidades extravagantes, mas sim à forma cerimoniosa de vivência e trato entre particulares. Assim compreendida, a etiqueta situa-se em algum ponto de equilíbrio entre a a intimidade e a grosseria. Mesmo em termos privados, os excessos de intimidade ou de grosseria não são bem recebidos. No terreno da política, a etiqueta é a civilidade. Pequenos valores cívicos são a generosidade, a gratidão, a confiança, o compromisso, a delicadeza; pequenos vícios são a crueldade, a misantropia, o esnobismo… A falta ou a presença de qualquer um deles não constitui um crime, nem uma virtude especial, mas dificulta a convivência social. Mesmo quando recheada de razões justas, a crueldade mina a integridade, tanto quanto o faz a misantropia, ou a permanente vontade de viver longe dos outros. E o esnobismo, ou o hábito de explicitar desnecessariamente pretensas desigualdades, pode envenenar a convivência. De modo geral, entre a integridade e a civilidade existe uma relação similar à existente entre a justiça e a prudência. Se a prudência pode ser associada, não aos grandes ideais de justiça, mas à justiça em ponto pequeno, ou à sabedoria revelada nas ações práticas do dia a dia, a civilidade representa uma integridade humilde e tolerante, em sintonia com a fragilidade da natureza humana.Um político pode não se eleger, a despeito de fundar suas ações em um quadro consistente de valores, se não atentar para a integração com os outros em ponto pequeno, ou à civilidade.

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20. Design, Projeto, Civilidade e Integridade

A ideia de design ganhou o mundo. Não buscamos mais um produto apenas em função da racionalidade de seu projeto: queremos também a sutileza, o transbordamento da criatividade em seu design. Uma cadeira não se resume a um artefato para nos sentarmos: ela precisa reunir elementos estéticos que se assemelham aos traços que caracterizam a personalidade de um ser humano. Os mais sofisticados objetos técnicos não podem dispensar completamente as preocupações artísticas, limitando-se à indispensável funcionalidade do uso, sob pena de parecerem caricaturas. A engenharia que nos desculpe, mas uma pitada de arte é fundamental. Nas ações mais ordinárias, a ideia de design registra sua presença. Um deslocamento significativo de tal ideia está a ocorrer do universo dos produtos para o terreno dos processos. Já não causa qualquer estranhamento a expressão “design de ações”, design de procedimentos. No que tange às relações sociais, no terreno dos valores, ideias como as de liberdade e livre-arbítrio, igualdade e diferença, responsabilidade e autoridade precisam estar suficientemente enraizadas nas práticas sociais. Nesse terreno, a noção de integridade ocupa um lugar de destaque, correspondendo a uma racionalidade necessária no terreno dos valores, no exercício da justiça, na vivência da Ética. As normas que regulam as relações sociais precisam de consistência e uma absoluta sintonia entre o discurso e as ações – o que caracteriza a ideia de integridade. Tal sintonia é condição de possibilidade da vigência de regimes democráticos. Os sistemas de normas não podem resultar do mero acúmulo de regras ad hoc, que não derivem da racionalidade de um projeto articulador de interesses pessoais e coletivos. Mas assim como na produção material não basta o projeto, na vivência dos valores  é preciso a sutileza do design. Não basta a integridade nua e crua – que pode ser cruel – é preciso a sutileza da civilidade. Gentileza, solidariedade, generosidade, misericórdia são valores sutis que caracterizam a civilidade. Deixar de vivenciá-los não é crime, mas a convivência social resulta muito mais difícil sem eles. A civilidade está para a integridade assim como o design está para o projeto.

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ÉTICA

21.  Transformação, Conservação, Retrotopia

É impressionante o fenômeno que se dá com a palavra conservação, que  parece amplificar a cada dia sua conotação negativa. A vida equilibra-se continuamente entre as ideias de conservação e de transformação. A Ética e a Moral estão umbilicalmente ligadas ao discernimento de transformar ou preservar uma norma. Mas no discurso cotidiano, no nível do senso comum, critica-se o conservadorismo, como se se tratasse de deformação indesejável no caráter de uma pessoa. Trata-se, naturalmente, de mera ignorância filosófica, que recebe, atualmente, uma crítica veemente de uma figura respeitável, intelectual de vanguarda, misto de sociólogo e filósofo, autor de inúmeros best sellers: Zygmunt Bauman.É dele o instigante insight presente na expressão “modernidade líquida”, um ovo de Colombo que nos lembra a todos de que entre a solidez das crenças neopositivistas e a desagregação prevista pela expressão marxista “tudo que é sólido desmancha no ar”, existe o estado de liquidez, em que a forma se torna absolutamente maleável, sem, no entanto, qualquer concessão sobre a constância do volume. Em seu último livro (Babel – entre a incerteza e a esperança), Bauman afirma que o respeito aos valores do passado foi “exageradamente, irrefletidamente abandonado”. E propõe que, “Ao sonharmos com uma sociedade mais acolhedora e uma vida mais decente e significativa, avançamos gradativamente da utopia para o que chamo de retrotopia (volta ao passado).” Na visão atualíssima de Bauman, o futuro agora inspira desconfiança e o passado surge como credor de nossos projetos. Não se trata, no entanto, de simples inversão de perspectivas: o texto de Bauman sugere que futuro e passado imbricam, continuamente, virtudes e vícios. Trata-se, sem dúvida, de uma constatação admirável em um pensador revolucionário, do alto de seus mais de noventa anos. Uma verdadeira vacina para o pensamento ingênuo de quem considera “conservador” um desqualificativo para um pensamento.

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22.  Afagos na Tradição: Horkheimer, Arendt, Bauman

O desprezo pela tradição costuma ser a regra:  o tradicional parece sinônimo de ultrapassado. A filosofia da pós-modernidade pretendeu reduzir as certezas da razão cristalina a pó, na trilha do aforismo marxiano: “Tudo o que é sólido desmancha no ar. É de Horkheimer um alerta importante, que insinua a precipitação na pulverização da razão, em seu extraordinário livro Eclipse da razão (1946). A feliz metáfora do título espraia-se por todo o texto: a razão iluminista não acabou, trata-se apenas de um eclipse, vai passar, vai passar. A atualização de concepções e a conservação de valores considerados ultrapassados é realizada com prudência e parcimônia, passando bem longe do mero desprezo pela tradição. Em texto escrito poucos anos depois (1954), explicitamente, Hannah Arendt  levanta a bola da tradição, diagnosticando o abandono da autoridade que lhe era conferida sem a necessária e correspondente emergência de outra forma de legitimação da concertação das ações coletivas na raiz das dificuldades com a Educação. Mas foi Bauman em uma de suas últimas obras (Babel: entre a incerteza e a esperança, 2016), que fundamentou de modo especialmente consistente o papel da tradição na construção, consolidação e atualização de valores, com sua ideia de retrotopia. É fato que ele já houvera sido extremamente feliz com sua fecunda metáfora da liquidez: a pós-modernidade reduziu nossas certezas cristalinas não a pó mas ao estado líquido: perde-se a rigidez da forma, mas a quantidade, o volume se conserva. O cristal não vira pó e se desfaz, o fio da conservação é  preservado na mudança de estado, ele apenas se liquefaz. Com o que pode ter sido um de suas últimas ideias fundamentais, ele pretende que não podemos descrê ou abandonar as utopias: é necessário, no entanto, projetar o futuro sem deixar de olhar para o passado, de se orientar por ele. Como o deus Jano, é preciso olhar para frente e simultaneamente olhar para trás: tal é a ideia de retrotopia. Que pena que Bauman se foi…

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23. As revolucionárias redes sociais conservadoras  

Para não sermos soterrados por informações, a tecnologia nos oferece filtros que, de modo algum, são agentes neutros. Ao navegar nas redes, mal nos damos conta de como somos “observados”, de quanto nos procuram caracterizar, fazendo inferências sobre nossos desejos, que se situam na antessala de nossos projetos. Se circunstancialmente comprei um livro sobre degustação de vinhos, daí por diante serei considerado potencialmente um enólogo. Certa vez, recebi um email escrito parcialmente em russo, enviado por um primo que trabalhava temporariamente na Rússia; até hoje, de quando em quando, alguns emails me oferecem, em russo, produtos ou leituras que nunca solicitei. Os sites que buscam realizar tal conformação, ou tal inventário de interesses são constituídos por algoritmos que funcionam da maneira mais conservadora possível. Segundo eles, se ontem não choveu e hoje não choveu, amanhã não irá chover. No que tange às redes sociais, tal raciocínio conformista produz um efeito colateral terrível, já percebido pelos estudiosos da chamada (impropriamente) “inteligência artificial”. O artigo Redes sociais forma “bolhas políticas” (Jornal OESP, 27/03/2016) analisa tal questão. Como tais redes filtram e amplificam o que é relevante para determinado grupo, isso produz a sensação de que todo mundo concorda com o participante, e frequentemente os desacostuma de um diálogo com defensores de posições opostas. Tal fato, quando insistentemente alimentado, pode situar-se na origem dos dogmatismos dos que acreditam que existe uma única história a ser contada, ou com os sempre nefastos extremismos dos que apostam numa divisão dicotômica do mundo entre quem está conosco e quem está contra nós: nenhum terreno é mais favorável à semeadura da violência.

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24.   Compliance, Vergonha na Cara, Civilidade

A promiscuidade entre o público e o privado, as tentativas de generalização (“sou corrupto, mas, quem não é?”), a descrença nos políticos, e por extensão, na política, a aparente ausência de um ponto de apoio honesto para alavancar o mundo dos negócios têm levado as empresas a dedicar atenção e a investir em medidas de controle da corrupção rotuladas pelo termo compliance. Trata-se de um reconhecimento explícito de que a ignorância de princípios mínimos da Ética não serve nem aos trogloditas do lucro, gerando um sistema de relações de desconfiança que não pode garantir nem um mínimo de sustentabilidade à roubalheira geral. Tal como os cases das palestras de executivos são apenas simulacros dos causos que os caipiras sempre nos contaram, Compliance é apenas uma palavra chic, desnecessariamente importada,para sublimar o fato de que o que falta mesmo é vergonha na cara no ambiente dos negócios e da política. No terreno da Ética e da Política já existe há muito tempo uma outra palavra, em todas as línguas: é a Civilidade, que é o correlato da Integridade em ponto pequeno. Em sentido pleno, a Integridade pessoal representa a garantia da existência de um quadro de valores socialmente partilhados, uma efetiva sintonia entre o discurso e as ações, bem como uma abertura consciente no referido quadro de valores, o que nos possibilita a integração com os outros. O oposto da Integridade é a corrupção, que é um crime bem caracterizado nos Códigos Civil e Penal. A antessala da Integridade é a Civilidade, a pequena ética cuja desconsideração pode não constituir um crime, mas, como um esterco, aduba um terreno em que se instalam as condições prévias para os desvios éticos criminosos. Se a novidade do termo Compliance produzir efeitos saneadores, que seja bem-vinda. Mas uma pitada de Civilidade, de espírito cívico, de corresponsabilidade pelo mundo já seriam mais do que suficientes.

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25.   A corrupção da ideia de Servidor Público

Todo político é – ou deveria ser – um servidor público, ainda que nem todo servidor público seja um político em sentido estrito. Um funcionário público, em qualquer nível que trabalhe, é – ou deveria ser – um servidor público. Um servidor público não tem uma pessoa física definida como seu empregador: ele serve ao público de uma maneira ampla, o público é seu patrão. Trata-se de uma condição que exige vocação, exige doação, exige disponibilidade para servir à coletividade, para ter sempre no horizonte das ações o interesse coletivo, buscando encontrar espaço para realizações pessoais no cenário dos projetos com objetivos sociais mais amplos. Tanto no âmbito do serviço público quanto no do setor privado, o público é o destinatário das ações realizadas, mas o sentido de tais ações é diferente quando se situam nos limites dos interesses privados ou quando resultam dos projetos coletivos administrados pelo Estado. Tal sentido elevado de servidor público, no entanto, tem sido correntemente corrompido, quando se associam a tais servidores preocupações exclusivamente interesseiras com salários e sobretudo com estabilidade no emprego. Não são indevidas tais associações, mas sua generalização é absolutamente injusta. Sobretudo em situações de crise, como a que vivemos, com o desemprego assumindo proporções desconcertantes, a acomodação ou o desespero conduzem, de fato, uma parte substancial dos sem emprego a se inscrever em concursos públicos, seja lá qual for a ocupação correspondente, na ânsia pela satisfação de necessidades imediatas. Reiteramos, no entanto, que, se tal opção for desvinculada de um mínimo de vocação, ela corresponde a uma corrupção da ideia de servidor público. Se a falta de opções conduz uma fatia importante dos trabalhadores a se tornarem profissionais de concursos para o que der e vier, a falta de vocação de servir ao público fará com que tais desvios resultem em prejuízos psicológicos para os aderentes e na imagem dos verdadeiros servidores.

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26.   Trabalho e Desemprego

Ainda que a primeira acepção do termo “desemprego” seja “falta de trabalho”, por maiores que sejam os indicadores correspondentes, em país algum falta o que fazer. A crise no mundo do trabalho resulta do desencontro entre as atividades que fazemos com gosto e os pacotes de ocupações remuneradas que nos oferecem. O exercício contínuo de tais ocupações necessita de um mínimo de adesão voluntária, de partilha de objetivos. Para nos fazer crescer como seres humanos, o trabalho precisa ter significado, precisa ser meio para alcançar um fim humanamente defensável. No exercício do trabalho, quando o meio se transforma em fim, grassa a mediocridade. Acumular dinheiro não é um fim humanamente defensável, pode ser um meio para se buscar coisas maiores. Platão caracterizava o escravo como aquele não tinha metas pessoais, que vivia para realizar os projetos dos outros. Ter salário ou não é um pormenor. Atualmente, existem escravos muito bem remunerados, muitos dos quais criando estratagemas para enganar os pares, no âmbito do sistema financeiro internacional. Quando menos consciência das metas, mais fácil a dedicação aos meios, mais próxima se encontra a mediocridade. A criação de atividades remuneradas envolvendo tarefas significativas do ponto de vista social e pessoal é um desafio permanente para todos os governos. Sem isso, a médio prazo, abrem-se as portas para o tédio, o desamparo, o desespero ou coisa pior, quando a vida perde o sentido.

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27.   Remédios, Drogas, Meios e Fins

Os remédios são compostos por drogas, as farmácias também são chamadas de drogarias. Substâncias químicas ontem utilizadas como componentes de remédios são hoje consideradas drogas pesadas. A cocaína é apenas um exemplo. Quando temos dor de cabeça, tomamos um comprimido, que não é feito exatamente de feijão com arroz, para aliviar o sofrimento, mas um atleta que recorre a um remédio para aliviar lesões e permitir a participação em provas corre o risco de ser crucificado em exame anti-doping. Uma prótese para um braço, uma perna ou um olho são bem recebidas, mas um chip a ser instalado no cérebro para regular certos pensamentos seria visto como algo inaceitável por muita gente. Quais os limites entre o recurso sistemático a remédios e o ato de se drogar ser considerado como um vício? Mesmo sutil, tal limite é tão nítido quanto o é a distinção entre meios e fins. A consciência desempenha aí o fundamental papel de juiz. Enquanto mantemos o controle da situação, assumindo plena responsabilidade pelos nossos atos, não deveria ser criticável ou proibido recorrer a remédios/drogas para aliviar ou curar os males que afetam nosso corpo ou nossa nossa mente; quando tais recursos deixam de ser meios e passam a ser fins em si mesmos, quando recorremos a eles pelos seus efeitos transformadores em nossa consciência a situação se transforma completamente. No caso do álcool, beber socialmente é plenamente aceitável; embriagar-se de modo a afetar a consciência e a responsabilidade perante os outros é inconveniente e inaceitável. No caso de certas drogas menos inocentes, as grandes dificuldades com a identificação de limites para o controle consciente de nossos atos, após seu uso, justificam plenamente as restrições, a proibição ou mesmo a criminalização de seus usos. A vida em sociedade tem um preço: não se pode abdicar da consciência. O recurso a drogas como fim em si mesmo, limitado às sensações e os prazeres do corpo, não parece aceitável. A droga somente pode subsistir legitimamente como meio para um fim que transcenda tais sensações e prazeres, que alimente e amplifique a consciência humana e a indispensável responsabilidade de viver junto com os outros.

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28.   Mediação: Fecundação mútua entre meios e fins

É muito fácil um acordo sobre fins. Explicitamente, no nível do discurso, todos são do bem, poucos são os que assumem que não querem o melhor para todos. Mas quando se discutem os meios para atingir os fins, as discordâncias preponderam e o veneno da máxima “os fins justificam os meios” pode disseminar-se. A busca do acordo por meio da palavra, da argumentação, muitas vezes se perde na promiscuidade indevida entre meios e fins. É de Nietzsche o aforismo mordaz: “a maneira mais pérfida de combater uma causa é defendê-la intencionalmente com maus argumentos. A deficiência nos meios costuma contaminar, em meios massivos, a qualidade dos fins. Quase tudo na vida depende diretamente de uma articulação adequada entre fins e meios, e a preponderância dos meios, ou, o que é pior, a transformação de meios em fins é uma casca de banana a provocar tombos nos mais diferentes contextos. A tecnologia é da ordem dos meios; situá-la entre os fins da educação é um grave desvio. Anomalias similares ocorrem nas relações entre a teoria (meio) e a prática (fim), ou entre a avaliação (meio) e a qualidade da Educação (fim); nas relações entre o recurso às disciplinas para o desenvolvimento das competências, ou da metodologia para o ensino dos conteúdos; ou, de modo geral, o elogio dos projetos sem uma sustentação adequada nos valores que partilhamos. Em todos os casos referidos, não basta um acordo relativamente aos fins, nem basta que tenhamos disponíveis excelentes meios, é preciso uma sintonia, uma sinergia, uma fecundação mútua entre meios e fins: tal é o significado da mediação. Não é legítimo querer o bem a qualquer preço, buscar um bom fim quaisquer que sejam os meios. Pais, professores, todos os que assumem a função de educar, medeiam permanentemente conflitos de interesse entre meios e fins. Toda a atenção é necessária, nenhuma sedução de encurtamento nos caminhos para a realização de um bom projeto pode ameaçar valores maiores, como a vida, a consciência, a integridade pessoal. Um tirano com uma boa ideia é sempre um grande perigo.

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29.   Mediação: nem tudo é; nada existe sem

A palavra mediação está em alta. Os fecundos trabalhos de Feuerstein chamaram a atenção para sua importância como categoria fundamental da ação docente e ela ganhou o mundo. Certa cautela, no entanto, é necessária, para que não ocorra com tal palavra algo similar ao que ocorreu com “construtivismo”. Hoje já não existem mais não-construtivistas. Todos estão de acordo com relação ao fato de que o conhecimento se constrói a partir da interação sujeito/objeto. Na linguagem de Feuerstein, não existe possibilidade de ligações diretas entre os estímulos sensoriais e as respostas do organismo que aprende sem a mediação do professor, inteiramente lastreada na ideia de modificabilidade do ser humano. Mas o que realmente importa é: quais as ações docentes fundamentais em tal mediação? Assumir que tudo é mediação facilita o acordo no discurso mas não favorece uma ação docente competente. A ideia de mediação está umbilicalmente ligada à articulação entre fins e meios da ação, nos mais diversos níveis ou contextos. Refere-se a relações entre formação pessoal e disciplinas escolares, entre tecnologias e educação em sentido pleno, entre projetos e valores, entre direitos e deveres. Neste último caso, parece especialmente evidente que ter os direitos individuais, a consciência e a autonomia como fins inalienáveis do modo de ser do ser humano é absolutamente inseparável de uma plena responsabilidade pelos deveres do cidadão. Garantir os direitos do cidadão é o dever do Estado, mas é direito do Estado que cada cidadão cumpra seus deveres expressos pelas normas legais e legítimas, socialmente construídas. O nome próprio para tal sintonia fina entre direitos e deveres é “mediação”.

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30.  Mediocridade e Internacionalização 

Deu no jornal (FSP, 9/7/2016): o Presidente pede a empresários que priorizem formados no exterior. Em encontro promovido pela Confederação Nacional da Indústria, afirma que “os formados no exterior talvez venham bem formados com informações tecnológicas que auferiram no exterior”. Apesar de ser muito frequente certo elogio acrítico de ações de internacionalização no que tange às produções acadêmicas, é muito difícil imaginar um discurso menos equivocado ou mais imprudente, sobretudo na boca de uma autoridade como o Presidente. Qualquer resquício de consistência no argumento perde-se completamente no “talvez” da enunciação. Duas razões fundamentais evidenciam o disparate do presidente: o desemprego é um problema mundial, absolutamente “internacionalizado”; nem tudo o que vem do exterior tem mais valor, ou é preferível relativamente ao que aqui se produz. O possível e desejável valor da internacionalização apenas pode legitimamente resultar de um transbordamento do que aqui se produz, em razão de sua qualidade, para muito além de nossas fronteiras. O mesmo ocorre com aquilo que incorporamos da pesquisa realizada em instituições internacionais de referência, o que é cada vez mais possibilitado pelo acesso a redes informacionais, mesmo quando uma desejada viagem ao exterior não é factível. Ter como lema que tudo o que vem do exterior, seja da Bélgica ou de Portugal, da Alemanha ou da Guiné Bissau, é naturalmente melhor do que o que aqui se produz é apenas sintoma de um complexo de vira-latas, expressão de uma mediocridade que deve ser combatida tanto no nível do senso comum quando em açodados discursos presidenciais.

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31.  Mediocridade e Neo-escravidão

Uma vida é medíocre quando se esvai na busca dos meios para garantir a subsistência. Medíocre é quem não tem projetos, não está se lançando em busca de fins ou objetivos sustentados por valores socialmente acordados. Medíocre é quem não tem projetos pessoais, vivendo apenas em função dos meios de subsistência. Quem tem como objetivo apenas ganhar cada vez mais e mais dinheiro, sem que isso configure um meio para a realização de um projeto sustentado por valores mais amplos, certamente é medíocre. Pode chegar a ser muito rico, mas não escapará do selo da mediocridade. Platão caracterizava o escravo como aquele que não tem projetos pessoais, vivendo apenas para realizar o projeto dos outros. Ter um salário ou não é um pormenor: há escravos não remunerados, mal remunerados e bem remunerados. É importante destacar que não existe uma clivagem nítida entre interesses pessoais e coletivos. Não se pode ter projetos pelos outros, mas não se vive sem projetos com os outros. Na verdade, é muito difícil para qualquer um de nós explicitar um projeto que acalentamos, que semeamos, é que diz respeito apenas a nós: em situações normais, partilhamos metas com muita gente querida, na família ou no trabalho. Entretanto, trabalhos desinteressantes, que não respondem a nossos anseios pessoais mais íntimos, tendem a nos escravizar. O sentido da vida encontra-se frequentemente associado ao sentido das tarefas que realizamos. A perda do sentido do trabalho é a nova face do desconforto, do desalento, da escravidão contemporânea. O discurso da criatividade e do empreendedorismo tem sido um paliativo importante, que mantém viva, em micro contextos, a ilusão do sentido do trabalho. Mas o nó górdio da questão situa-se bem além. O fato de o conhecimento ter-se transformado no principal fator de produção ainda não foi suficientemente digerido pelos gestores da economia mundial. Não falta o que fazer no mundo: há tarefas ingentes e pessoas dispostas a realizá-las: faltam pacotes de atividades remuneradas para concretizá-las, faltam empregos condizentes com a condição humana de ser projetivo. O próprio PIB ainda não assimilou bem a ideia do conhecimento como um valor, incorporando apenas parcialmente tal riqueza: ninguém sabe direito como fazê-lo. O conceito de mercadoria é insuficiente, a circulação dadivosa é incompreendida, a ideia de commons, ou de bem a ser livremente partilhado (Ostrom, 2009) ainda é incipiente. Nesse cenário, o trabalho escraviza a muitos e a aposentadoria precoce é um sonho incongruente, é uma válvula de escape apenas aparente.

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32. Brindes acadêmicos e outros estímulos

No afã de atrair alunos, algumas escolas superiores e universidades privadas têm ofertado, às vezes, brindes sedutores, como ipods, celulares, entre outros, a quem nelas se matricula. Tal estratégia pode ser interpretada como simples manobra concorrencial, eventualmente diversionista, mas também pode ser indício de um desvio mais sério do ponto de vista educacional.

A questão central que subjaz a tais ofertas é o tratamento dos “produtos” educacionais como mercadorias em sentido industrial. Sem dúvida, o conhecimento transformou-se, há algum tempo, no principal fator de produção, o que aproximou irreversivelmente os universos da educação e da economia. Atualmente, não parece fazer qualquer sentido negar-se a dimensão mercantil do conhecimento, mas é fundamental o reconhecimento de que ele não se reduz a tal dimensão. Trata-se de uma “mercadoria” de características muito especiais: pode-se dar, vender ou trocar conhecimento sem ficar sem ele. Além disso, não se pode controlar o “estoque” do conhecimento disponível: a cada momento, ele pode ser ampliado, como em um passe de mágica. É preciso, pois, adequação e compostura na gestão do conhecimento.

Em decorrência do fato de que o número de alunos concluintes do ensino médio aproxima-se rapidamente do total de vagas oferecidas no ensino superior, quando se leva em conta tanto o ensino público quanto o privado, a disputa por alunos tem se acirrado. Algumas instituições – certamente não todas – têm enfrentado essa questão com alguma criatividade, ainda que com certa indigência teórica. A busca incondicional da satisfação do “cliente” parece ser a tábua de salvação, mas a questão é um pouco mais complexa.

O caminho natural para a atração dos possíveis alunos deveria ser a exaltação das qualidades propriamente acadêmicas de cada instituição: qualificação e dedicação do corpo docente, produção científica, laboratórios, biblioteca etc. Do ponto de vista econômico, no entanto, alguns apelos parecem mais simples e rentáveis. Um deles é exatamente o do recurso à sedução dos bibelôs eletrônicos, às praças de alimentação à maneira dos shopping centers, ou às academias de ginástica, uma verdadeira alegoria aos aspectos periféricos da formação pessoal.

É muito provável que tais estímulos funcionem, pelo menos provisoriamente, até que, mais adiante, a realidade do mercado de trabalho faça cair a ficha. Como se sabe, stimulus é uma palavra latina derivada de sti – objeto pontiagudo, como em estilete, com que se espetavam os animais ou os escravos, tendo em vista impulsioná-los para frente. E mulus é outra palavra latina associada a limitações intelectuais, ou à estupidez de uma mula. O perigo de tais ofertas é que, apesar de atraentes, elas desviam a atenção das questões realmente importantes, podendo transformar-se, desagradavelmente, em verdadeiros estímulos – em sentido literal.

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33.    Notas sobre a FELICIDADE   

1# Ter a felicidade como meta é quase uma garantia de a não alcançar; ela não é um ponto de chegada, é o percurso até ele; não é um particípio, mas sim um gerúndio; é um faciendum, não é um factum.

2# A família e os amigos são importantes para a felicidade, mas constituem um espaço de doação, de cultivo de laços, de respeito mútuo e de mútuas responsabilidades; sem isso podem se transformar em múltiplas fontes de infelicidade.

3# Ser feliz é vislumbrar sua vocação pessoal e ir ao encontro dela; é assumir a responsabilidade pela construção dos meios para que ela se realize; é compreender que ela não representa um caminho único, mas um espectro de possibilidades.

4# Ser feliz é alimentar projetos pessoais, é ter propósitos na vida, tanto no que se refere às ações imediatas quanto na prefiguração do futuro, mas também é sentir-se parte de algo maior do que nossos mais caros projetos pessoais, é encontrar espaços de companheirismo, de colaboração em construções coletivas.

5# A felicidade nasce da ação semeada pela contemplação, pelo fazer articulado com a palavra, pela reflexão sobre as razões para a permanência ou para a mudança de situações do statu quo; pela consciência na ação que conserva, na ação que transforma, na ação que não se conforma.

6# A felicidade nasce do equilíbrio na capacidade de sentir em si as dores do mundo, de assumir as responsabilidades inerentes a tal sentimento, sem sucumbir a tentações de desânimo ou desilusões consoladoras, que podem aliviar consciências locais, mas sempre constituirão luxos de minorias.

7# A felicidade sempre pressuporá um espaço de ações aberto a escolhas pessoais, liberto dos constrangimentos tanto da norma legal quanto dos algoritmos: no terreno da ética, é o espaço do livre arbítrio; no terreno da arte, a abertura para a apreciação, para a autoria, para a criação.

8# Ser feliz é compreender que recebemos, ao nascer, a vida como uma dádiva, qualquer que tenha sido a circunstância em que isso tenha ocorrido; que o prazer que sentimos ao dar presentes, ao buscar os laços com os outros decorre da alegria de poder agradecer, cotidianamente, um pouquinho que seja, o mais precioso dos bens.

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34.   Dúvida irracional, Fé racional

A crença ou a Fé podem ser racionais ou irracionais. Não acreditar na validade da lei da gravitação ou no teorema de Pitágoras é uma dúvida irracional; não crer automaticamente em supostos fatos científicos, nem acreditar que a Ciência dê conta de explicar todos os aspectos e fenômenos da realidade é uma dúvida racional. Crer literalmente no que descrevem os dogmas religiosos, ou acriticamente nas ideias de um governante fanático é uma Fé irracional; acreditar em si mesmo e nas potencialidades dos outros, no amor ao próximo como fonte inesgotável dos laços constitutivos da pessoa, no valor da vida, que recebemos como uma dádiva, culminando com a crença na humanidade em sentido amplo é uma fé racional. No âmbito da Ciência, em todo o caminho que conduz à formulação de teorias, a fé na existência de certa ordem no mundo é necessária. O reconhecimento dos limites da compreensão humana de tal ordem, no entanto, tem conduzido a duas posições antagônicas. Por um lado, na trilha de Wittgenstein, pretende-se que a realidade consista essencialmente nos universos passíveis de compreensão científica; não se acredita naquilo que não se pode traduzir na linguagem da Ciência, não se crê no inefável, que deve ser deixado de lado. Por outro lado, há quem pretenda, como Lacan, que a essência da realidade está presente primordialmente naquilo que não é apreensível nem pela diversidade das vivências imaginárias, nem pela regularidade dos padrões, dos matemas; a crença fundamental é que a realidade transcende o que é sensorialmente percebido, logicamente racionalizável. Qual das duas crenças parece racional? Qual parece irracional? A mim, me parece que a pretensão de que a irracionalidade dá conta do universo das ações humanas é uma fé irracional; a consciência das possibilidades e dos inegáveis limites da racionalidade técnica conduz, naturalmente, a uma dúvida racional.

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35.  A Intenção e a Ação

Uma boa ação praticada sem a intenção correspondente não pode ser considerada meritória, assim como não o é uma boa intenção que não se converte em ação, mas não existe simetria entre a intenção e a ação. Ter a intenção de praticar um crime sem o fazê-lo não pode levar alguém a ser preso; praticar uma ação criminosa, mesmo sem a intenção correspondente, é crime. O que distingue um homicídio doloso de um homicídio culposo, por exemplo, é justamente a intenção de matar, presente no primeiro caso e ausente no segundo. De modo geral, as intenções consistentes caminham no sentido da constituição de um projeto de ação. A partir daí, a palavra é dada à competência pessoal, que estrutura um planejamento das ações intentadas. Sem competência, o planejamento, que é a etapa de operacionalização de um projeto, não conduz às ações efetivas. Um obstáculo frequente no caminho entre as intenções e as ações é a conformação. Uma ação pode ser transformadora da realidade, ou conservadora de algumas de suas dimensões. Em cada contexto, a cada momento, nem tudo o que existe deve ser transformado, e nem tudo o que existe merece ser conservado; em cada caso, no entanto, a sintonia entre as intenções e as ações é fundamental para a integridade pessoal e a consistência dos resultados. Um ruído frequente na busca de tal sintonia é a “conformação”. Existem situações em que a intenção da ação transformadora enfrenta obstáculos tão grandes que a tentação da conformação prevalece; vamos deixar como está para ver como é que fica. Simetricamente, mesmo quando quase todos tencionam determinada mudança, há os que não encontram justificativas para isso e gostariam de manter o que existe como está; mas seria muito difícil, muito trabalhoso resistir, e então, conformamo-nos à mudança. Um caso particularmente interessante em que a assimetria intenção/ação é evidente é o da responsabilidade pela palavra enunciada. Uma vez proferida a palavra desviante – uma calúnia, uma injúria, uma incitação ao crime, uma leviandade qualquer – , do ponto de vista legal, a responsabilidade deve ser necessariamente assumida, e as consequências jurídicas são naturalmente esperadas. De pouco adiantam pretensões de inocência como “não foi esta minha intenção”. Como elemento vital na construção da consciência na ação, a força da palavra é imensa e a responsabilidade do enunciador certamente ultrapassa em muito suas intenções.******

36.   Simpatia, Empatia, Compaixão

Podemos simpatizar com pessoas que pensam diferentemente de nós, que sentem diferentemente de nós, mas de quem superficialmente julgamos entender as motivações. Os laços que nos aproximam de pessoas que consideramos simpáticas podem ser bem frágeis. Já a empatia costuma traduzir um sentimento mais forte, como se, além de entender o outro, sentíssemos o mundo da mesma forma que ele. Próxima da empatia situa-se a ideia de compaixão, que traduz diretamente a sensação de sentir em si as dores do outro. O psicólogo canadense Paul Bloom escreveu um livro interessante e provocativo intitulado Against Empathy: The case for Racional Compassion (Contra a Empatia: A busca de uma compaixão racional). Nele ensaia a ideia de que a empatia não seria um sentimento positivo, chegando mesmo a tornar o mundo pior. Discordo radicalmente de tal modo de ver as coisas, mas acho apenas que as asserções mais notáveis do livro são meras provocações, como bem o traduzem tanto o subtítulo quanto as principais afirmações do autor ao longo do livro. De fato, o que ele busca é uma defesa do que chama de “compaixão racional”, registrando aqui e ali frases como “A empatia tende à irracionalidade, enquanto a compaixão deixa uma janela aberta para a razão”, ou “A empatia amplifica o prazer da amizade e da comunidade”, ou ainda, “Um mundo sem empatia seria terrível”. A impressão que fica, ao final, é que o autor quer apenas destacar a importância da razão, nas relações entre razão e sentimento, o que parece plenamente compreensível e aceitável. Tenho simpatia pela posição do autor; mais ainda: sinto por ele grande empatia.

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37.  UM HOMEM CHAMADO FERA

“Um homem chamado Ove” é um filme sueco (2016). O personagem do título é um senhor triste e amargurado, exigente consigo mesmo e com os outros, quase sempre grosseiro com todo mundo. Apesar de um pouco arrastado, o filme tem um roteirista brilhante e bondoso, que conta a história de como Ove chegou a ser como é de maneira instigante, deixando no ar as razões familiares, herdadas e construídas, dos comportamentos agressivos atuais. Ao mesmo tempo, os demais personagens representam pessoas especialmente compreensivas, que quase sempre toleram as grosserias de Ove, em razão de perceberem a sensibilidade tácita e a bondade infinita que ele disfarça. A trajetória do filme é tal que, após uma enorme relutância, quando ele se sente verdadeiramente amado, seu grande coração amolece e sua boa índole prevalece. Não é difícil associar tal história com o clássico de múltiplas versões intitulado “A Bela e a Fera”. Em ambos os casos, a ênfase situa-se na mensagem crucial: uma pessoa precisa ser amada ANTES de se tornar amável, e a vida nem sempre facilita isso. Os dois filmes me fizeram lembrar de uma frase que li em um quadro à venda em pequenas lojas de objetos delicados: “A Fé é assim: primeiro você põe o pé; depois, Deus põe o chão”. Reagir à grosseria com simetria não funciona bem no âmbito das relações pessoais. No terreno da Ética, o Princípio da Ação e Reação somente pode conduzir à Lei de Talião.

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38. O Hábito, o Monge, o Contexto e a Norma

O hábito não faz o monge, mas um terno ou um vestido longo não parecem vestimentas adequadas para uma praia, nem sungas ou biquínis parecem convenientes em uma sala de aula. Há que se respeitar os ambientes, os contextos, e a tolerância, ainda que fundamental, não pode ignorar o fato de que existem limites, existe o intolerável. Se o tema é regulado por normas, quem não as leva em conta deve ser responsabilizado. Mas é aí que se situa o busílis da questão: seria esse um tema a ser regulado por normas? Há quem defenda que sim; de minha parte, acho que não. A consciência pessoal deve ser o juiz, em tal questão. Não se pode pretender a existência de normas para regular cada passo, cada ação de uma pessoa, de um cidadão. O espaço do livre-arbítrio é fundamental para a consolidação de uma vida eticamente fundada. Se tudo o que fazemos decorre da existência de uma lei que explicitamente prescreve, ou o que deixamos de fazer é decorrência do fato de que uma lei  proscreve tal modo de ação, então teremos nos transformado em autômatos, em robôs que obedecem a programas específicos; toda perspectiva ética desapareceu. A consciência da inadequação ou da inconveniência precisa ser alimentada, explícita ou tacitamente, mas a decisão a ser tomada não pode ser compulsoriamente determinada. É fundamental distinguir o mau gosto do crime; a estética não pode ser regulada pelo Código Penal.

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39.  HABEAS CORPUS, HABEAS DATA, HABEAS COGNITIO…

O Habeas Corpus é um instrumento jurídico fundamental para o pleno funcionamento de uma democracia. Trata-se de uma ação judicial para garantir o direito à liberdade de locomoção quando este é subtraído ou ameaçado por ato abusivo de autoridade. Em passado mais recente, foi criado o Habeas Data, uma ação que assegura a cada cidadão o direito ao livre acesso a dados que conduzam a informações relativas a si mesmo constantes em bancos de dados governamentais ou de caráter público. Os caminhos que a Ciência e a Economia têm trilhado nas últimas décadas estão a sugerir a pertinência da criação de um novo instrumento jurídico, que garanta o acesso ao conhecimento científico a todos os que dele necessitem, especialmente em questões referentes à saúde;  poder-se-ia chamá-lo de Habeas Cognitio, ou algo semelhante. De fato, quando manchetes nos jornais anunciam um recrudescimento de doenças como a sífilis, há tanto tempo domadas pela Ciência, em decorrência da ausência ou da insuficiência dos estoques de penicilina, um mínimo de bom senso sugere que algo está errado. As razões alegadas para a carência do remédio relacionam-se diretamente com o pequeno número de fabricantes da droga, que é liberada de “direitos autorais”. Apenas quatro empresas no mundo, três delas situadas na China, dedicam-se à produção de penicilina, que oferece um lucro baixo, um retorno comercial pouco atraente. Orgulhosamente, algumas empresas farmacêuticas radicadas na região amazônica anunciam que o lucro anual com a fabricação de um único remédio para a hipertensão, o Captopril, chega a ser maior do que o alcançado no mesmo período por toda a agropecuária da região… Como a hipertensão constitui uma síndrome bastante disseminada e que tantos danos provoca na saúde da população, o direito a tal remédio deveria ser reivindicado por todos os cidadãos. Não parece justo condicionar a produção de remédios que são frutos da pesquisa científica às leis estritas do mercado. Ao direito à liberdade de locomoção e ao direito à liberdade de informação urge que se reúna o direito a preservar a saúde do corpo. Afinal, a vida é o valor maior a ser cultivado, ultrapassando em muito as limitações mercantis. De modo geral, o valor da Ciência ou está diretamente associado à preservação da vida humana, ou a civilização não se justifica. Que viva, pois, o Habeas Cognitio, ou que venham os bárbaros. ******

40.    O Tempo nos Esportes

O Futebol é um jogo meio preguiçoso. Há muitos toques de bola para o lado, muita preparação antes da ação. Quanto faltam alguns minutos para acabar o jogo, quase nada mais ocorre. A decisão no último minuto ocorre, mas é fenômeno raro. No Basquetebol, muito ao contrário, cada segundo parece precioso. Em poucos minutos cabem muitos pontos. O tempo que conta é o que é efetivamente jogado. As partidas que são decididas no final são muito mais frequentes. Sem ansiedade, sem pressão exagerada, seria interessante que o tempo de nossas aulas fosse mais para um tempo do Basquete, do que um tempo do Futebol. O Voleibol, por outro lado, nos traz outras lições no que diz respeito ao tempo: é a tarefa a cumprir que prefigura o tempo. Cada um dos sets acaba quando se alcança o número de pontos fixados pela regra do jogo. Dependendo da eficácia do time, pode-se ter que jogar mais ou menos sets.  Seria muito interessante uma mescla de Voleibol com Basquetebol na gestão dos tempos das aulas. Mas um dos esportes mais surpreendentes em termos de articulação entre tempos e espaços é o Golfe. A tarefa do jogador é enunciada de modo simples: por meio de tacadas, a bolinha deve ser conduzida a um buraco inicialmente distante. As características das tacadas, no entanto, são muito diferentes quando começamos o jogo, nas primeiras tacadas, ainda muito longe, ou quando nos acercamos do buraco. A primeira tacada tem um objetivo muito amplo: aproximar-se o mais possível da meta. Pormenores não são tão relevantes, nesse estágio. Afinal, atingir o objetivo final com uma só tacada ocorre mas é extremamente raro. Mas quando chegamos perto do buraco, são justamente os pormenores que podem decidir tudo. Trocamos de estratégia e até mesmo de taco. E o tempo submete-se quase completamente ao objetivo final que se persegue. Na busca da realização de nossos projetos, na vida, um fenômeno similar ocorre. Alegoricamente,  o Golfe tem muito a nos dizer sobre nossas ações ordinárias.

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LINGUAGEM

41.  Contratos, violência, Nobel

Em 2014, um economista e pesquisador francês (Jean Tirole) recebeu o Prêmio Nobel de Economia em razão de seu trabalho na Teoria dos Contratos. Em 2016, dois economistas e pesquisadores, um anglo-americano (Oliver Hart) e outro finlandês (Berngt Holmström), foram vencedores do Prêmio Nobel de Economia por suas contribuições para a Teoria dos Contratos. O tema parece candente e um cidadão não especialista pode estranhar a reiteração da temática em tão curto prazo de um reconhecimento tão expressivo. Existem razões, no entanto, para uma atenção tão grande à temática em questão. A Teoria dos Contratos é uma das áreas da economia com grande impacto na vida de uma sociedade. É clara a importância dos contratos nas relações formais entre os cidadãos, entre os cidadãos e o Estado, nas transações bancárias, nos seguros, na organização jurídica de modo geral. Um aspecto sobressai, em tal cenário: o combate à violência. Quando falamos em violência, o que de imediato vem à mente é a falência da palavra. De fato, a eclosão da violência está diretamente associada à descrença na força da palavra na construção de argumentos. Parece natural, então, que o combate à violência somente se pode levar a efeito por meio da disseminação da confiança na palavra. Nem sempre, no entanto, as coisas são tão simples, e uma das piores formas de violência é a que se realiza por meio da palavra. Agressões verbais, cerceamento da liberdade de expressão, formatação da palavra são alguns exemplos de tais ocorrências. Mas o ápice da violência por meio da palavra se dá justamente por meio dos contratos. Quando assinamos um contrato – e os contratos bancários são exemplos eloquentes – nosso credor registra com todas as letras, com todas as nuances, que não acredita em nossa palavra. Não adianta garantir aos bancos que as dívidas serão quitadas, que podem confiar em nós: dificilmente escapamos da exigência de fiadores com bens confiscáveis. Nem mesmo um fio de nosso bigode alivia a situação. De modo geral, como os contratos estão onipresentes, acostumamo-nos com eles, como podemos nos acostumar com a generalização da violência, mas não há como tergiversar: os contratos são uma virtualização da violência.

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42.  A vida, a Ordem Alfabética e a Ordem Numérica

A vida da gente é como a vida da língua: precisa de ordem, carece de organização. Uma das experiências mais marcantes a esse respeito me ocorreu ao escrever um livrinho para crianças intitulado BICHIONÁRIO, uma espécie de dicionário de bichos. Um bicho para cada letra, de A a Z, com um poeminha para cada bicho, uma ilustração sedutora e uma sugestão de aumentar a lista de bichos, eis o conteúdo. Uma surpresa: em cada visita a uma escola, um presente dos alunos que trabalharam com o livrinho: outro livrinho por eles produzido, chamado de PLANTIONÁRIO, FRUTIONÁRIO, BRINQUEDIONÁRIO etc. Simples assim: uma planta para cada letra, uma fruta para cada letra, um brinquedo para cada letra, e assim por diante. Certamente as crianças se divertiram com os bichos, mas incorporaram tacitamente algo maior: a ordem alfabética. E passaram a utilizá-la para organizar a vida e o mundo. Em geral, associamos automaticamente a ideia de ordem à ordenação numérica, aos números naturais, ao exercício da contagem. A experiência com o BICHIONÁRIO me mostrou que tão simples quanto a ordem numérica é a ordem alfabética, e que, além de tudo, elas se complementam. O alfabeto e os números são os dois sistemas mais elementares de representação e organização da realidade, da vida. São instrumentos que atuam paralelamente no sentido de que apontam na mesma direção, ainda que somente sejam assim considerados no sentido de que nunca se encontram. Seria necessário compreender a razão de tantos alunos, a partir de certa idade, distinguirem com tanta nitidez o que é a língua e o que é a matemática, com ideias preconcebidas e frequentemente preconceituosas em relação à matemática. Evitar que tal separação se inicie pode ser muito mais producente do que tentar consertar a indesejável fragmentação que eclodirá mais adiante.

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43.  Gramática e Filosofia

Quando se debate sobre a reforma do Ensino Médio, uma defesa intensa de disciplinas como Filosofia ou Sociiologia não costuma ser associada a uma igualmente vigorosa defesa da Gramática, que não parece desfrutar do mesmo prestígio ou despertar o mesmo encantamento. No entanto, nada parece mais revelador da civilidade de uma nação quanto o cuidado com que trata a língua materna, instrumento de comunicação e compreensão, mas sobretudo de expressão dos laços que nos unem a nossos irmãos nacionais. Até a Idade Média, a Gramática era uma das três disciplinas básicas dos currículos, juntamente com a Dialética (Lógica) e a Retórica. Tratar mal a Língua era indício de grosseria, tanto quanto o era o desrespeito aos outros. Hoje, políticos decretam que “houveram problemas”, outros pretendem que um trabalho seja “melhor feito”, ou que “o Brasil, tem jeito”. As regras gramaticais têm sua importância solenemente diminuída, como se o fato desrespeitá-las tivesse a ver apenas com a forma, sem afetar o conteúdo do que se diz. Mas, como bem disse Wittgenstein, “uma nuvem inteira de Filosofia se condensa em uma gotinha de Gramática”. Sem as categorias gramaticais, cujo vislumbre é de matriz aristotélica, o universo da linguagem torna-se uma selva impenetrável. A substância dos substantivos, as qualidades dos adjetivos, as ações inspiradas nos verbos, as emoções associadas às interjeições, a ideia de tempo decorrente de uma compreensão adequada dos tempos verbais, como a sutileza do mais-que-perfeito, são alguns exemplos simples que bem ilustram a importância da Gramática, como uma espécie de “ética da língua”.

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44.  Mais bem feito é bem melhor…

As categorias gramaticais deixaram de ter ênfase na escola, mas, às vezes, como bem disse Wittgenstein, um oceano de Filosofia pode se condensar em uma gotinha de Gramática. Sem ousar defender posições rígidas na areia movediça das disputas entre gramáticos, arriscamos afirmar que a expressão “mais bem feito” soa muito melhor do que a expressão “melhor feito”. Similarmente, a expressão “mais bem cozido” soa muito melhor do que “melhor cozido”, a menos que, nesse segundo caso, “cozido” seja, como é possível, um substantivo. O busílis da questão é que as palavras Bom e Mau são adjetivos; em seu uso ordinário, qualificam substantivos; já as palavras Bem e Mal são advérbios, sendo utilizadas para modificar adjetivos, verbos ou outros advérbios. Em consequência, quando “melhor” ou “pior” são graduações dos adjetivos “Bom” ou “Mau”, respectivamente, tais palavras não soam bem modificando verbos, como se fossem advérbios, elas nasceram para modificar substantivos. Reconheço que há controvérsias entre gramáticos, mas a gramática também tem a ver com nosso ouvido. Nesse sentido, na relação entre “mais mal feito” e “pior feito” não é difícil dizer o que soa melhor…

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45.  Palavras Irmãs Siamesas

Existem pares de palavras inseparáveis, verdadeiras irmãs siamesas. Autoridade e Responsabilidade constituem um desses pares. É impossível, tanto do ponto de vista lógico quanto em sentido etimológico, exercer uma autoridade sem assumir responsabilidades. Quem não se dispõe a assumir responsabilidades pelas ações de outros jamais poderá exercer qualquer tipo de autoridade. Em alguns âmbitos, falar sobre autoridade produz urticárias… É possível driblar tal reação anômala falando-se sobre as responsabilidades inerentes. Tal como a autoridade, a responsabilidade tem limites. bum âmbito interno a cada um de nós em que somos a maior autoridade sobre nós mesmos, assumindo todas as responsabilidades decorrentes. Um exercício pleno de uma vivência ética somente se prefigura com a ideia de corresponsabilidade. Outro par de palavras similar é Ordem/Organização. Poucos discordariam de que precisamos de organização para uma atividade consciente, mas a reação à ideia de ordem é, às vezes, inconsciente. A associação com coação parece inevitável e parece indesejável. Mas a vida pressupõe organização. Classificações rígidas de pessoas podem constituir fonte de violência, do pior tipo de violência, que é a que se dá por meio da palavra. Mas sem uma rede de esquemas classificatórios, muito aquém de um referencial conceitual, as ações não se realizam. E toda classificação é o germe de uma equivalência, de uma ordenação. Um terceiro par igualmente siamês é a Dádiva e o Laço com os outros. A dádiva muitas vezes é associada ao discurso religioso, ou a atividades filantrópicas, mas não vivemos bem sem ela nas mínimas ações do dia a dia. A doação – da atenção, de um sorriso, da vez no trânsito… – as pequenas gentilezas compõem a ideia de civilidade, que é condição de possibilidade de uma vida íntegra, inteira e integrada com os outros. A dádiva sempre é uma expressão da busca do laço com o outro. Não fazemos contabilidade de dádivas: quem dá um presente busca um laço, este é seu único interesse. Não vivemos em sentido humano sem estabelecer múltiplos laços com os outros. A aparência natural e a maior aceitabilidade do laço, portanto, podem servir de mote para a busca de uma vida mais dadivosa. A cultura japonesa dá uma ênfase especial ao fato de que, ao nascer, recebemos a vida como uma dádiva, a maior de todas as dádivas. Viver seria a oportunidade para retribuirmos tal presente, e uma atitude dadivosa na relação com os outros, concretizada na busca de laços afetivos, seria o caminho para isso.

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46.   A força da palavra e o fascínio do nome

Vivemos um tempo de exacerbação da violência em múltiplos contextos: a violência como falência da palavra e a violência por meio da palavra. Sem a confiança na força da palavra, nada pode nos salvar. Com a pragmática transcendental, filósofos associados à Escola de Frankfurt, como Apel ou Habermas, buscam uma fundamentação para a enorme responsabilidade do enunciador. Se a enunciação conduz a terrenos inesperados e/ou indesejáveis, dizer-se que a intenção não era esta, mas outra, não elimina a responsabilidade do enunciador pelas consequências. Mas a força da palavra não pode ser identificada com a eficácia da nomeação. Dar nomes às coisas pode ser interessante, mas não é o fim de uma ação efetiva. Muitas vezes traduzimos uma ideia perfeitamente em palavras mesmo sem sermos capazes de atribuir-lhe um nome. Por outro lado, ações policiais relacionadas com crimes de corrupção no exercício de uma função pública no Brasil atual, como a “Operação Lavajato” e suas rede de atuações, costumam ser apreciadas pela inspiração na escolha de nomes das operações parciais. Um exemplo gritante da insuficiência da mera nomeação para o enfrentamento de problemas efetivos pode ser encontrado no discurso “politicamente correto”. Ao exagerar nos cuidados nas denominações, tal discurso pode derrapar, algumas vezes, na casca de banana de dar mais importância ao atestado de óbito do que ao defunto. É possível que a ciência médica também seja suscetível de tal derrapagem.”Dislexia”, “discalculia”, “disnarrativia”, por exemplo, são apenas nomes, a caminho mas bem longe das soluções correspondentes. Diagnosticar alguém com a síndrome da “discalculia”, por exemplo, não significa resolver o problema das dificuldades com a aprendizagem inicial de matemática. Em artigo no Journal of the American Medical Association (FSP, 6/maio/2017), destaca-se uma nova “doença”, a síndrome de  Tourette, com sintomas associados ao sistema nervoso central e a fatores genéticos, que consistiria na compulsão para falar palavrões. Estudos estatísticos com meninos e meninas revelariam, segundo o artigo, que os meninos são 3 a 5 vezes mais suscetíveis do que as meninas a tal doença. O risco que se corre, a partir de tal “descoberta”, é o de tratar a mera grosseria ou patente incivilidade, em certos casos, de modo respeitoso demais.  Dar nomes às coisas é importante, é preciso uma dose de resistência estética e etimológica a Shakespeare, com seu sempre citado “What´s in a name?… by any other name a rose would smell as sweet…” Iniciativas estapafúrdias de nomeação de pais entusiasmados costumam ser corrigidas pelas “vítimas” a posteriori… No caso da novíssima síndrome de Tourette, no entanto, tudo indica que temos que ir mais devagar. O cultivo da língua como fator de união nacional e da civilidade como uma pequena ética, uma “etiqueta”, fundamental para a viabilização da convivência social e a partilha dos valores culturais não pode ser reduzido apenas à correção de fatores genéticos ou à correção de desvios no sistema nervoso central. Ou um estádio de futebol passará a demandar equipes médicas numerosas, tamanha a quantidades de “doentes”.

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47.     O que é Raro não é Impossível

Como se sabe, entre os experimentos que vivenciamos, existem os determinísticos e os aleatórios. Os primeiros, quando repetidos nas mesmas condições, produzem sempre os mesmos resultados; os segundos, mesmo quando mantidas as condições iniciais, podem conduzir a resultados diferentes. Neste caso, conhecidas as diversas possibilidades de ocorrência, a cada uma é associada uma probabilidade, que traduz as chances de ocorrência do evento considerado. Tal probabilidade é representada por uma porcentagem, ou um número entre zero e um. Quanto maior a probabilidade de um evento, maior a chance de ocorrência. Neste contexto, é muito frequente, no senso comum, a associação entre eventos que ocorrem com probabilidade zero e eventos impossíveis de ocorrer, assim como a associação da certeza de ocorrência com a probabilidade 100% . Tais associações realmente fazem sentido quando o conjunto de possibilidades de ocorrência de um evento é finito: ao lançarmos um dado usual, as chances de ocorrência do número 7 em sua face superior é certamente zero, o que significa que tal ocorrência é impossível. Ocorre, no entanto, que quando o conjunto de possibilidades de ocorrência é, digamos, infinito, tais associações não são mais corretas e um evento de probabilidade zero, apesar de ser, digamos, raro, pode efetivamente ocorrer. Consideremos, por exemplo, o seguinte experimento: dois amigos A e B marcam um encontro na Praça XPTO, entre 8h e 9h de determinado dia. Os horários de chegada dos dois amigos constituem um conjunto de pares (a; b), em que a é um número entre 8 e 9h  (ou, em minutos, entre 0 e 60 minutos), podendo ocorrer a > b, ou a = b, ou a < b. Existem infinitos pares desse tipo, que podem ser representados como pontos de um plano (sistema de coordenadas), compondo um quadrado de lado 1 (1h), ou de lado 60 (60 minutos). Nesse caso, qual seria a probabilidade de ocorrência do evento “os amigos A e B chegam à Praça XPTO exatamente no mesmo horário (digamos, a = 15 e b = 15, em minutos)? Os pontos que caracterizem a chegada no mesmo horário constituem a diagonal do quadrado que representa o conjunto de resultados possíveis para o evento. As chances de que tenhamos a > b, ou seja, A chega depois de B, são de 50 %, correspondendo à área de uma das metades do quadrado, de um dos lados da diagonal. As chances de B chegar depois de A também são de 50%. E as chances de A e B chegarem exatamente no mesmo horário – o que efetivamente pode acontecer – constituem um evento com chance zero de ocorrência, uma vez que correspondem aos pontos da diagonal do quadrado, cuja área é zero. É isso aí: em eventos com infinitas possibilidades de ocorrência, em vez de contagem, avaliamos as chances por meio de medidas, e eventos com medida nula são raros, mas efetivamente podem ocorrer. Simetricamente, eventos com chances de ocorrência 100% também podem deixar de ocorrer.

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48. A Etimologia e a Morfologia podem ser traiçoeiras…

Conhecer a origem das palavras, seu modo de formação, a evolução de seu significado é uma tarefa interessante, cheia de surpresas agradáveis, mas suscetível a cascas de banana traiçoeiras. “Desfazer” é o contrário de “fazer”, mas “desmatar” não é “dar vida”. “Distratar” é desfazer o que foi tratado, mas “distrair” não é voltar a ser fiel. “Cinéfilo” é um amante do cinema, mas “pedófilo” não é exatamente quem gosta de crianças… A Língua e a Matemática colaboram continuamente na construção do pensamento lógico, no desenvolvimento do senso crítico, mas a Língua nunca poderá se converter em pura lógica matemática, ou o sentido do humano se esvairia. A compreensão do significado das conjunções “e” e “ou” somente é simples e indiscutível em livros de lógica; na dimensão pragmática da língua, o uso de tais conectivos sempre gera dúvidas. Quando dizemos que “vamos ao cinema ou ao teatro”, dificilmente estamos considerando a possibilidade de ir ao cinema e ao teatro ao mesmo tempo, como pressupõe a norma lógica. Em latim, havia duas palavras para indicar o “ou”: “aut”, que era o “ou exclusivo”, “ou vou ao cinema, ou vou ao teatro”, e “vel”, que era o “ou inclusivo”, que admite as duas opções ao mesmo tempo. A Lógica Formal herdou o “ou” diretamente do “vel” latino, recorrendo inclusive ao “v” para representar uma conjunção como “a ou b” (a v b). Um caso interessante de desvio morfológico/semântico, que incomodava um mestre no uso da língua, como era Ortega y Gasset,  é o que se refere ao par “zoo/bio”, palavras gregas que traduzem o significado da palavra “vida”. Como se sabe, “zoo” refere-se à vida em sua dimensão animal, à vida do corpo físico, enquanto “bio” refere-se à vida com a palavra, à vida em sentido político, juntamente com os outros, na “pólis”, que é a cidade grega. Para Ortega, a palavra “Zoologia” seria mais adequada para designar não somente seus referentes atuais, mas também a tudo o que usualmente chamamos de “Biologia”; a Política, a Sociologia, a Antropologia, a Psicologia seriam mais apropriadamente “Biologia”, em sentido morfológico/semântico, do que o que rotineiramente rotulamos de Biologia. Naturalmente, não se trata aqui de fomentar uma luta contra tais desvios formais, o que seria uma tarefa vã, como bem lembrou Drummond. No entanto, lutamos… por uma valorização da dimensão pragmática da língua, muito além do plano sintático/semântico. Afinal, uma expectativa de consenso, em qualquer nível em que as falas humanas se confrontam, exige um mínimo de exegese, ou corremos o risco de misturar acriticamente “habeas corpus” com “Corpus Christi”.

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49.   O maior órgão do corpo humano

Qual seria o maior órgão do corpo humano? O fígado certamente é um dos maiores, mas não é considerado o maior: o lugar mais alto do pódio está reservado à pele, que seria nosso órgão mais extenso. É até certo ponto inesperado para um leigo que consideremos a pele como um órgão. No primeiro momento, quem não é do ramo estranha. Assimilada a informação, no entanto, outra pendenga se estabelece: estou entre os que acham que existe outro “órgão” no corpo que não somente é maior, como é infinitamente maior do que a pele. Qual seria tal imenso órgão? Vamos recorrer à linguística, particularmente a Chomsky, com sua inspiradora concepção de linguagem. Para Chomsky, a capacidade para a aprendizagem da linguagem é inata e inerente ao modo de ser do ser humano. Tal capacidade seria como um órgão com o qual todos normalmente nascem. A única diferença em  relação aos demais órgãos, como o fígado, o coração ou os rins, é que, em vez de situado em um local específico do corpo, o órgão que nos propicia a linguagem seria inteiramente distribuído, estando presente em cada célula, em cada canto de nosso corpo. Trata-se apenas de uma metáfora, dirão uns; estou, no entanto, entre os que consideram que toda linguagem é metafórica. O ouro humano fica, portanto, com a linguagem.

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50.  A Língua: Modos de Usar

insight é de Charles Morris (1938): considerando-se a língua como um sistema de signos, são três os níveis de abordagem de tal sistema. O nível da Sintaxe é o do conhecimento das regras de formação dos signos, independentemente de seus significados; o nível da Semântica é do estabelecimento de relações entre os signos e os referentes extralinguísticos, ou entre os significantes e os significados correspondentes. O nível mais abrangente é da Pragmática, que estuda os signos na relação direta com os enunciadores, significados dos signos em uso, nos diferentes contextos. Percebe-se de imediato que o sentido da pragmática que deriva de tal insight corresponde ao modo mais abrangente do estudo da língua, englobando sucessivamente tanto a Semântica quanto a Sintaxe. No sentido técnico, a Sintaxe pode desdobrar-se em Morfologia (forma, estruturação ou derivação das palavras) e Fonologia (sons associados aos signos em sua enunciação). Já a Pragmática enfrenta problemas mais amplos, como o da constituição dos significados a partir dos usos da língua ou os dilemas enfrentados de modo tão diversos por Wittgenstein ou por Lacan, na busca da compreensão das relações entre os signos representantes e a realidade representada: o inefável, aquilo que não se pode expressar em palavras, carece de realidade, ou é a mais pura realidade? O que não se pode falar deve-se calar ou vivenciar por outros meios ou sentidos? Na busca da fundamentação de uma Ética do discurso, que busca o acordo por meio da palavra, a ciência da interpretação do textos, ou a Hermenêutica, associou-se à Pragmática. Habermas, Adorno, Horkheimer, e sobretudo, Apel produziram contribuições significativas a respeito. Voltaremos a isso.

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51. Ensino Médio: a falácia do não obrigatório como proibido

Um aparente consenso em relação à atuação organização do Ensino Médio diz respeito ao excesso de disciplinas obrigatórias, apresentadas de modo fragmentado ou com mínimas interconexões. Uma reforma está sendo projetada há alguns anos, visando à construção de percursos disciplinares alternativos, em função dos interesses dos alunos. Ao longo dos 3 anos de curso, os alunos teriam um percurso comum de um ano e meio, seguido de um outro período, igualmente de um ano e meio, ao longo do qual poderiam escolher disciplinas com foco mais concentrado em uma das quatro grandes áreas: Linguagens, Matemática, Ciências Naturais, Ciências Humanas. Trata-se de uma ideia defensável sob vários pontos de vista, desde que a primeira metade do Ensino Médio tenha garantido uma formação mínima nas ideias fundamentais das quatro áreas, evitando-se as abordagens exageradamente técnicas tão costumeiras, em todas as áreas. Na segunda metade do percurso, as escolhas individuais concentrariam as atenções em uma ou duas das áreas, aprofundando-se o conhecimento inicial comum a todos. Tal organização tem sido criticada – o que não é um problema – mas com argumentos inadequados – o que é um grande problema. Diz-se que certas matérias não serão mais estudadas, que desaparecerão as aulas de tais ou quais disciplinas, que os professores terão sua carga de aulas diminuída. Isso somente faz sentido se as aulas de uma disciplina não despertarem o interesse dos alunos, o que é uma anomalia. O fato de uma disciplina não ser mais obrigatória não significa que seja proibido cursá-la; deve ser garantido aos alunos que, havendo interessados, a disciplina será oferecida. Ninguém seria proibido de cursar Sociologia, História, Física, Filosofia, Química, Biologia, ou qualquer outra disciplina, em decorrência do fato de não serem mais obrigatórias: apenas a inexistência de interessados limitaria a oferta.  Cabe aos professores a responsabilidade pela apresentação dos conteúdos disciplinares de modo vivo e sedutor, despertando o interesse dos alunos. O que deveria ser explicitamente garantido pelos reformadores é que não obrigatório não é sinônimo de proibido.

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 52.   Sua  Excelência, a Equivalência

Na vida, a ideia de igualdade é fundamentalmente vazia: rigorosamente, uma coisa somente é igual a si mesma. Em seu uso ordinário,  quando dizemos que A é igual a B queremos dizer que A e B são iguais naquilo que importa, naquilo que vale, ou seja, A e B se equivalem, ou são equivalentes. Naturalmente, o ponto decisivo é a explicitação daquilo que vale, ou seja, é o estabelecimento de uma relação de equivalência. Em uma democracia, todos somos iguais como cidadãos, mas somos essencialmente diferentes como pessoas. Diante das normas, das leis necessárias para o convívio social, somos todos iguais; o Direito nos torna equivalentes. A ideia de equivalência é um instrumento poderoso para a organização de conjuntos bagunçados. Quando observamos o conjunto de automóveis circulando neste instante em nossa cidade, sem um critério, sem uma relação de equivalência o que vemos é uma bagunça imensa. Se fixamos a atenção na cor de cada automóvel é como se disséssemos que dois automóveis de mesma cor são equivalentes; organizamos virtualmente, então, o conjunto inicial e passamos a ver automóveis pretos, brancos, pratas, vermelhos etc. Escolhendo um representante qualquer de cada tipo, constituímos um mostruário da totalidade do conjunto dos automóveis no que diz respeito à cor. Outro critério inicial, outra relação de equivalência determinaria outro mostruário. Procedemos de modo análogo com quase tudo com que lidamos: partindo de um conjunto genérico de seres ou objetos, escolhemos relações de equivalência, organizamos as classes de equivalência, e simplificamos nossa vida compomos um mostruário do conjunto inicial. A igualdade em si tem pouca serventia no dia a dia: não vivemos, no entanto, sem classificações, orientadas por múltiplos pontos de vista. E as classificações podem conduzir – e em geral conduzem – a organizações, a ordenações que são cruciais para a construção de uma visão, de uma teoria para dar significado às ações que realizamos.

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53. CONHECIMENTO: O SUTIL LIMITE ENTRE OS ESQUEMAS E OS PRECONCEITOS 

Conhecer é conhecer o significado e o novo significado se constrói por meio de relações com o já conhecido. Os objetos constituem-se como feixes de relações, que, de maneira dual, caracterizam-se como links entre objetos. Na dinâmica da construção dos significados, os esquemas cognitivos são os instrumentos fundamentais. Os esquemas são unidades que representam e prefiguram nossa interação com o mundo das significações. Nas crianças, bem no início, predominam os esquemas sensório-motores; paulatinamente, os esquemas linguísticos assumem papel cada vez mais importante. Na construção do significado na linguagem, os corredores isotópicos funcionam como se fossem óculos sociais. No adulto, a compreensão do mundo mobiliza esquemas simbólicos mais abrangentes, como os vieses, os estereótipos, a ideologia ou a religião. Um fato merece especial atenção: os esquemas são instrumentos anteriores ao conceito. Etimologicamente, são pré-conceituais, ou da ordem do preconceito.  O desafio permanente a quem se abre para o conhecimento novo é levar em consideração os esquemas pré-conceituais sem entregar-se ao mero preconceito.

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54.   Sejamos pragmáticos: Viva a Teoria!

É muito interessante tentar compreender os desvios semânticos de que padecem certas palavras de etimologias tão ricas. “Teoria”, por exemplo, é uma palavra de origem grega que significa “visão”. Trata-se, naturalmente, da visão que leva à compreensão. Em sentido amplo, ter uma teoria sobre certo tema é ter uma visão articulada de seus elementos fundamentais de modo a se produzir uma compreensão do tema. Somente com uma tal visão é possível uma ação consciente, um fazer em sintonia com a compreensão que se tem. Apenas por um desvio semântico, a ideia de teoria pode ser associada à mera contemplação, desvinculada da ação efetiva. O elogio da prática desvinculadamente da teoria é simplório e somente pode conduzir a uma ação cega. Algo análogo ocorre com a palavra “pragmática”. No latim antigo ela é associada a regras práticas para cerimoniais, da corte ou da igreja, mas desde Peirce (1839-1914), um filósofo fundamental que se situa na origem da constituição da Semiótica, ou na ciência dos signos, a pragmática é associada ao estudo das linguagens em seu nível mais profundo. Não nos basta conhecer as regras sintáticas para a constituição dos signos ou das mensagens: o estudo do significado, ou das relações entre os significantes e os referentes extralinguísticos é absolutamente fundamental, constituindo a dimensão semântica da linguagem. Mas uma compreensão mais plena do funcionamento e do papel desempenhado pelas linguagens exige que se leve em consideração os enunciadores, os participantes do jogo linguístico, o contexto em que as mensagens se inserem: trata-se da dimensão pragmática da linguagem. Tal escalonamento de níveis é da lavra de Peirce e situa a pragmática nos níveis mais elevados dos estudos da linguagem. Dói nos ouvidos mensagens da mídia que, ao registrar a ocorrência de um crime hediondo, com requintes de perversidade, enunciam: “é coisa de profissional”, identificando o profissionalismo à mera capacidade técnica, sem o compromisso imprescindível com os valores que tal noção pressupõe. Do mesmo modo, o registro de expressões do tipo “sejamos pragmáticos” no sentido de “sejamos práticos” incomoda bastante. A associação da pragmática à etiqueta dói nos ouvidos.

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55.   Vanzolini: Provocações filosóficas

Paulo Vanzolini foi um eminente zoólogo, professor da USP e compositor de sucesso, com inspiradas letras. Um de seus versos mais citados é “Reconhece a queda e não desanima; levanta, sacode a poeira, dá a volta por cima.” Consta que, certa vez, ele teria afirmado, em tom de blague: “Adoro a humanidade como um todo. Mas não de um em um…” Tal afirmação, verídica ou não, nos faz pensar no par integridade/civilidade. É relativamente simples  entrar-se em acordo om relação a grandes valores, como a integridade, a sensação de ser inteiro e o desejo de integrar-se com os outros, o amor à humanidade em sentido amplo. Mas amar o próximo, diante de nós, quando as circunstâncias não ajudam, pode ser bem mais difícil. Buscar, sinceramente, o laço com alguém grosseiro, que está mais para o zoo do que para o bios, que não cultiva um mínimo de gentileza, de generosidade, de fineza é uma tarefa que nos lembra a ponderação de Vanzolini. A civilidade, a ética em ponto pequeno, que se aproxima da etiqueta, são elementos decisivos no cultivo da vida junto com os outros, na negação de qualquer charme à misantropia.

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56.  Sobre falar merda

Perdoem-me a aparente grosseria no título, não é a intenção. Ele apenas busca chamar a atenção para o pequeno e precioso livro de Harry Frankfurt, publicado em 2005 pela Princeton University Press com o título de On Bullshit, e traduzido para o português no mesmo ano pela Editora Intrínseca, com o título deste texto. O conteúdo do livrinho é a caracterização da fala não projetada, que ocorre de modo similar à produção do material de que fala o título. Em termos humanos, as palavras precisam ter um compromisso com as ações; quando tal não ocorre, a falta de sintonia entre o que se diz e o que se faz é sintoma nítido de falta de integridade pessoal. Falar merda não significa necessariamente mentir; a mentira tem um compromisso com a verdade, ela se alimenta da – e se mantém como – negação da verdade. Segundo Frankfurt, falar merda é pior do que isso, é a fala sem compromisso, é um preenchimento acrítico de espaços que dificulta a tomada de consciência, é a verborragia como alegoria da diarreia.  No discurso político, no aguerrido debate entre congressistas, costumam acontecer situações ainda piores do que falar merda: são falas que parecem conscientemente projetadas para instaurarem um non sense, a confusão. Não almejam sequer o estatuto da mentira, mas não são descompromissadas em sua produção. Não vêm para explicar coisa alguma, mas sim para confundir e dificultar as ações. Quando se pretende, por exemplo que todo mundo rouba, que ninguém é santo, não que errando também se aprende, mas que somente errando se aprende semeia-se tacitamente o caos. Não sei como denominar tais falas, mas, sinceramente, acho que elas são piores do que falar merda. E por falar em sinceridade, na parte final do livrinho de Frankfurt ele apresenta situações em que uma fala que tenciona ser sincera pode ultrapassar os limites de razoabilidade e acabar se identificando com falar merda… Também no mundo das palavras, viver é perigoso.

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57. A Matemática e a Língua Materna na construção da cidadania

Mais do que um instrumento para a comunicação, a Língua Materna é elemento constitutivo da nacionalidade. Desde o primeiro currículo na história do pensamento ocidental, a Gramática se fez presente como uma das três vias para a construção do conhecimento, juntamente com a Lógica e a Retórica: maltratá-la era similar a tratar mal outra pessoa, era indício de incivilidade, ou de insuficiência na formação como cidadão. De modo análogo, a Matemática nos oferece um repertório de instrumentos técnicos para a realização de cálculos, mas, mais do que isso, ela desempenha nos currículos a função complementar em relação à Língua Materna na construção da cidadania. O alfabeto e os números constituem os dois sistemas básicos de representação da realidade, duas das formas mais primordiais de expressão pessoal e de compreensão do mundo que nos cerca. Explicitar alguns dos modos por meio dos quais a Língua Materna e a Matemática continuamente interagem e colaboram, é uma tarefa a ser periodicamente renovada, diante de tanto fascínio pelos fazeres práticos e utilitários. Para compreender o papel maior a ser desempenhado nos currículos pelas disciplinas citadas, é suficiente observarmos as ações mais elementares de uma criança nos primeiros mil dias de vida, aprendendo sobre letras e números sem distinções nítidas entre as disciplinas escolares correspondentes (a Língua e a Matemática); atentarmos para o imprescindível apoio da oralidade, emprestada da Língua, para a aprendizagem da escrita matemática; registrarmos a colaboração de ambas as disciplinas no desenvolvimento do raciocínio lógico; e esta lista certamente poderia ser alongada. Uma colaboração especialmente relevante entre tais disciplinas na formação da cidadania é a evidenciada pela análise do papel da Matemática na formação pessoal em valores, tendo por base a exploração do paralelismo entre as funções curriculares dos Contos de Fadas e do pensamento binário em Matemática.

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58.  Educação Brasileira: sobram Competências

A excessiva fragmentação disciplinar presente na escola conduziu a teoria educacional ao discurso das competências. O ápice de tal fenômeno ocorre no ensino médio, em que em torno de 15 disciplinas disputam as atenções de alunos com 15 anos de idade, ou um pouco mais. No passado, era claro aos nossos avós que, mesmo estudando tantas disciplinas, as competências desenvolvidas nos alunos até o final da escola básica podiam ser resumidas na tríade Ler, Escrever e Contar, ou “os três Rs” (Reading, Writing, aRithmetics, em países de língua inglesa). Atualmente, caracterizar a expectativa de formação escolar  por meio de tal tríade não provoca entusiasmo, e uma lista de competências expressas em linguagem mais sofisticada inclui as capacidades de expressão em diferentes linguagens, de compreensão de fenômenos em sentido amplo, de construir argumentações consistentes, de enfrentar situações problemas em diferentes contextos, entre outras. Tudo parecia caminhar bem, com uma explicitação progressiva do significado das diversas competências, sobretudo no que tange ao modo como o ensino dos conteúdos disciplinares propicia o desenvolvimento das pretendidas competências. Mas algo deu errado e o discurso teórico parece ter entrado em algum desvio. Em tempos recentes, a ideia de competência foi estendida de modo pouco cauteloso, passando a incluir um número cada vez maior de variantes e desembocando em um tormentoso mar de competências chamadas “socioemocionais”. Em consequência de tal fato, a impressão que se tem é a de que a fragmentação dos conteúdos disciplinares atravessou a ponte que deveria conduzi-los ao desenvolvimento das competências pessoais e contaminou o quadro de referência de tais competências. Em vez de um referencial sintético para substituir os três Rs e instrumentar as ações educacionais no caminho da mobilização dos conteúdos para a formação pessoal, a Base Nacional Curricular Comum, em vias de construção, apresenta uma lista de 10 competências gerais, mais 33 competências específicas na área de Linguagens, mais 9 na área de Matemática, mais 7 na área de Ciências Naturais, mais 23 na área de Ciências Humanas, totalizando 82 competências, tudo isto apenas com referência ao ensino fundamental; ao contemplar o ensino médio, a Base certamente ampliará em muito tal lista. O vírus da fragmentação mudou de lado, mas continua intacto. O risco de tal parafernália dar certo é, decididamente, muito pequeno.*****

59.  Olimpíadas zoológica e biológica

As palavras gregas correspondentes a bio zoo significam vida, mas enquanto a segunda se refere à vida do corpo, à vida em sentido animal, a primeira corresponde à vida humana, ao fazer com a palavra, que é condição de possibilidade da vida junto com os outros em sentido político. Ortega y Gasset expressou várias vezes seu desconforto com a palavra biologia, que, segundo ele, em seu uso corrente, estaria mais próxima do significado da zoologia. Para o pensador espanhol, o que chamamos de psicologia, de antropologia, de sociologia estaria mais próximo de uma biologia do que aquilo que chamamos ordinariamente de biologia. Tal fato me veio à lembrança ao considerar o significado das Olimpíadas. Simbolicamente, elas representam a busca da superação por meio do esporte, o ideal da perfectibilidade humana, na busca de recordes, o elogio do mérito, premiado com medalhas. Mas as Olimpíadas cuidam apenas do corpo físico, ou de nossa dimensão zoológica, animal. A moderna existência das paraolimpíadas apenas reforça a concentração das atenções no corpo físico. A despeito da beleza e da força do simbolismo e dos ideais olímpicos, não resisto a imaginar como seria uma olimpíada realmente biológica, em que o ser humano buscasse a perfectibilidade não apenas do corpo, mas também da alma, ou daquilo que somos além do corpo físico. Como seria uma olimpíada que valorizasse o mérito das pessoas pelo significado de suas ações do ponto de vista ético, na perspectiva dos valores humanos? Imaginar como seria isso é uma experiência de pensamento muito interessante.

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60.  Sentido, Significado, Conceito, Esquema, Preconceito

É muito pequeno o papel desempenhado pelos conceitos na educação básica. Quase sempre trabalhamos no terreno das ideias gerais, construindo os significados por meio da diversidade de percepções que nos é apresentada em cada contexto pelos órgãos dos sentidos. Os múltiplos sentidos são pessoais, idiossincráticos; constituem o primeiro momento do conhecimento. Na multiplicidade de percepções a que conduzem, buscamos um terreno comum de sensações, ou o que têm em comum, o que apresentam de partilhável, que constitui justamente o significado daquilo que estudamos. Os significados, por sua vez, são traduzidos em palavras, quase sempre na antessala dos conceitos. Partilhamos o significado da vida, do tempo, do ser humano, da educação, mas nem sempre somos capazes de explicitar os conceitos correspondentes. Exploramos pequenas generalizações, menos ambiciosas que as conceituais, e seguimos tecendo relações, desenvolvendo esquemas de apreensão/compreensão, que se iniciam com os sensório-motores, tão bem esquadrinhados por Piaget, e se estendem pelos esquemas simbólicos em geral, que se iniciam com as palavras e se prolongam nas linguagens, oral e escrita, e mais tarde, nas ideologias, nas religiões, entre outros grandes esquemas. Esquemas são menos elaborados que os conceitos, não têm o mesmo nível de generalização. Ocupam um espaço que pode ser caracterizado como preconceitual, anterior ao rigor conceitual. Nesse terreno de ideias gerais, sem a pretensão cartesiana de clareza e distinção, passamos a maior parte da nossa vida escolar. Mas é preciso muito cuidado: não se pode confundir a riqueza do nível preconceitual com a sempre indesejável arrogância do preconceituoso. É justamente quando um singelo insight de um esquemapreconceitual assume ares de conceito estabelecido que o preconceito se estabelece, como uma erva daninha.

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CIÊNCIA

61.   Correlações, causalidade, covariações

Um dos erros mais crassos em Estatística Básica é a interpretação de uma correlação entre grandezas variáveis como uma relação de causa e efeito. Todos os seres humanos (ou quase todos…) nascem com um nariz e dois olhos; existe uma correlação perfeita (ou quase…) entre o número de narizes dos sujeitos de uma população e o número de olhos dos referidos sujeitos. Apesar desse fato, ter um nariz não é a causa de se ter dois olhos, nem vice-versa, mas existem situações em que as coisas não parecem tão simples assim. A propósito disso, um experimento curioso foi realizado por Fisher, um renomado estatístico inglês, na primeira metade do século XX. Ele examinou o número de nascimentos ocorridos em um grande número de cidades inglesas, em determinado período de tempo, e o número de cegonhas existentes nas correspondentes cidades. Encontrou uma correlação altíssima, abrindo caminhos para incautos estabelecerem associações abstrusas, derivadas de narrativas fabulosas sobre o transporte de bebês por cegonhas. No caso, a amostra de Fisher incluía apenas grandes cidades, onde ocorrem muitos nascimentos, e que ostentavam, na época, muitas construções com grandes chaminés, recantos apreciados pelas cegonhas. Havia, portanto, uma causa comum para cada um dos efeitos apontados, mas certamente não havia qualquer relação entre eles. Modernamente, uma vacina contra causalidades indevidas tem sido o estudo das covariações entre as grandezas a serem correlacionadas. Simples assim: projetam-se experimentos para responder a pergunta “se uma das grandezas variar, o que ocorre com a outra?” Existe uma variação conjunta, uma interdependência, uma covariação? Se a resposta for sim, então estamos autorizados a escavar o terreno mais profundamente; se não, é preciso apreciar a ficção pelo prazer que ela nos traz, deixando a Estatística descansar em paz.

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62.  Teorema da Chuva, Indução, Dedução, Abdução

“Ontem não choveu, hoje não choveu, portanto amanhã não vai chover”; eis o que se poderia chamar de Teorema da Chuva. Uma evidente bobagem do ponto de vista da Lógica. Um desvario similar seria, após dois lançamentos de um dado em que foram obtidos sucessivamente os números 1 e 3 na face superior, concluir que no próximo lançamento obteremos o número 5. Uma inferência sobre o resultado de um evento pode decorrer de um de dois caminhos fundamentais: a dedução e a indução. A dedução sempre se realiza no âmbito de um sistema formal, a partir de algumas proposições aceitas incondicionalmente (os postulados do sistema), recorrendo-se a instrumentos lógicos que garantem padrões inexoráveis de interconexões. Já a indução trata do estabelecimento de condições para a generalização de um resultado, constatado em ocorrências específicas. Ainda que numerosas, tais ocorrências não garantem uma generalização afoita, como no Teorema da Chuva supra referido. Filósofos empiristas, como Bacon, buscaram estabelecer critérios aceitáveis de generalização; outros, racionalistas, na linha de Popper, negaram veementemente a possibilidade de existência de tais critérios, no âmbito do conhecimento científico. Uma terceira corrente, em que se pode situar Peirce, propõe a existência de um terceiro movimento, entre a indução e a dedução, que seria a abdução. Se, para Popper, a indução não existe como problema científico, e o escopo da ciência é o de formular teorias e colocá-las à prova, não fazendo sentido, digamos, uma “psicologia da invenção de teorias”, para Peirce, a formulação de hipóteses a serem testadas decorre de um movimento criativo do pensamento que ele batizou de abdução. Sem tal movimento, a ciência não progrediria. O termo criado por Peirce, no entanto, não alçou voo e a ciência permaneceu, até hoje, na busca do encontro entre a indução e a dedução. Alegoricamente, a ciência se dedica a contar as sementes que existem no interior de um fruto – eis o escopo da dedução. Fundamental, no entanto, é contar os frutos que dormem no interior de uma semente: eis aí o terreno da indução. A ciência tem pouco, quase nada a nos dizer a esse respeito. Mas insiste, popperianamente, em afirmar que o problema da indução não faz sentido.

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63.   COMPUTADORES E SERES HUMANOS: QUEM ACREDITA NA LEI DE MOORE? 

 Na década de 1970, Gordon Moore, um dos fundadores da Intel, profetizava que o que viria a ser chamado de Lei de Moore: o aumento na capacidade de processamento de informações dobraria a cada dois anos. Tal previsão cumpriu-se aproximadamente ao longo de algumas décadas. O processador 4004, o primeiro produzido pela Intel, era um chip com apenas 12 milímetros quadrados e continha 2300 transistores, que são como pequenos interruptores para representar as sequências de zeros e uns no registro e armazenamento de informações. A distância entre dois de tais transistores era de 10 000 nanômetros (cada nanômetro corresponde a 1 bilionésimo de metro). Em 2014, a Intel lançou o chip Xeon Haswell E-5, que continha mais de 5 bilhões de transístores, posicionados em intervalos de apenas 22 nanômetros. Segundo matéria publicada na revista The Economist (republicada no jornal OESP em 13 de março de 2016), atualmente, o número de pessoas que não acreditam mais na Lei de Moore parece dobrar a cada dois anos. Efetivamente, como as pavorosas previsões de Malthus no século XVIII sobre o crescimento da população mundial e o que seria a inevitável falta de alimentos, a profecia de Moore foi atropelada pelos fatos. Problemas associados a aquecimentos relacionados com a crescente miniaturização, às limitações decorrentes da constância da velocidade da luz e do tamanho das partículas atômicas, entre outros, levaram os engenheiros a relaxar um pouco a miniaturização . O chip Skylake, bem anterior ao E-5, tinha distância entre os transístores da ordem de 14 nanômetros, menor, portanto, que o E-5. Hoje, o projeto em curso é outro: em vez de uma miniaturização crescente, três são as novas estratégias na busca do aperfeiçoamento na produção de microprocessadores: – explorar expectativas ainda nebulosas, decorrentes da mecânica quântica; – simular o funcionamento do cérebro humano, que é um processador com estratégias de processamento paralelo, com distribuição de tarefas entre diversos núcleos (cores); – aposentar a busca de um equipamento cada vez mais poderoso e distribuir efetivamente o processamento entre vários equipamentos distintos, dando lugar à chamada “internet das coisas”. Quanto mais se aperfeiçoa, quanto mais se sofistica, como se vê, mais o computador parece mimetizar o funcionamento geral de um ser humano.                                                                          ******

64.  A ambígua confiança na Biometria

Já houve tempo em que cabeça grande era sinal de inteligência, tanto na ciência de pesquisadores como Brocas, com sua craniometria, quanto na canção popular. Tal ideia, hoje sabidamente absurda, não impede que o diagnóstico da microcefalia tenha por base a medida da circunferência craniana. O estudo das linhas das mãos já constituiu uma temática de uma quase ciência, a quiromancia; hoje, não tem guarida no rol de conhecimentos cientificamente aceitáveis, mas  as impressões digitais, absolutamente pessoais, há muito são utilizadas como meios objetivos para a identificação das pessoas, e, com idênticas funções, recorre-se também às impressões das palmas das mãos, com suas mal traçadas linhas.  O estudo de tais modalidades de caracterização/identificação de uma pessoa por meio de medidas associadas a partes específicas do corpo humano está se constituindo como uma ciência, a Biometria. Além das impressões digitais ou palmares, outra vertente biométrica é o reconhecimento ocular, com o mapa das veias no fundo brancos dos olhos. Em entrevista recente (FSP, 9/10/2016), o vice-presidente da USAA, empresa que cuida da segurança em transações bancárias, afirmou que “a senha está morrendo”, e concluiu reiterando que não podemos confiar nas informações de identificação fornecidas pelas pessoas, é preciso recorrer à e confiar na Biometria”. Esta é precisamente a questão: não confiamos nas pessoas, mas confiamos cegamente na suposta ciência biométrica, mesmo conscientes de suas ambiguidades. Parece um verdadeiro absurdo associar as peculiaridades da vida de uma pessoa a impressões digitais ou palmares, mas uma associação similar a pedaços específicos de uma espiral de DNA, parece natural. Em outras palavras: não cremos em bruxas, mas temos certeza de que elas existem,

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65. ANALÓGICOS OU DIGITAIS?

Em quase todos os contextos, a conotação é nítida: “analógico” quer dizer “velho”; “digital” quer dizer “novo”. A televisão propõe-se a substituir o velho “A”  de analógico pela nitidez digital. O editorial do jornal (FSP, 23/04/2016) sugere que devemos temer ou desconsiderar determinado político em razão de ele ser analógico em uma era digital. No texto, o máximo de explicitação das razões de tal temor é o fato de que tal político seria “dado a conversas para a formação de consensos”, mas o momento presente exigiria certa assertividade, similar, talvez, à nitidez das telas. Não está atento o jornalista ao fato de que as grandes empresas de informática estão investindo na produção de robôs que sejam capazes de conversar com seres humanos, os chatbots, uma mistura de chat com robots. O político em questão poderia até ser considerado moderninho. Mas a realidade é simples assim: velhos não são digitais. Repetida cotidianamente, a mentira passa a parecer verdade, e a vida continua. O fato, no entanto, é que a caracterização binária do mau/analógico e do bom/digital é uma grande bobagem. Como seres humanos, nosso modo de operar é essencialmente analógico. Se um espinho nos fere o dedo, não é um sinal que vai para o cérebro, um simples sinal do tipo vai ou racha, sinto ou não sinto. Milhares e milhares de sinais são enviados paralelamente. Uns chegam, outros não. Os que chegam atravessam os humores do corpo, aqui e ali. Chegam, digamos assim, matizados pelos bons ou maus humores. Não funcionamos na base do liga/desliga. Ligamos e desligamos aos poucos. A vida decorre durante tais processos. Amamos e nos relacionamos com os outros analogicamente. Nascemos e nos esvaímos analogicamente. A tecnologia esforça-se ao máximo para nos fazer admirar o digital e subestimar o analógico. Mas a imagem da TV é tão boa que parece uma pintura… Simbolicamente, o sucesso do digital sempre se dá por meio da imitação do analógico.

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66. Máquinas moleculares: avanço ou retorno ao que importa?

A vida é movimento e a energia é a capacidade de produzir movimento. Há muitas formas de produzir movimento, ou muitos tipos de energia. Em sentido industrial, as máquinas são instrumentos para transformar energia de um tipo em outro. As turbinas de uma hidrelétrica transformam energia mecânica em energia elétrica; um liquidificador transforma energia elétrica em mecânica; uma bateria transforma energia química em elétrica, e assim por diante. No mundo contemporâneo, no entanto, os computadores são as máquinas por excelência; eles utilizam energia, elétrica ou química, mas sua função não é bem transformar energia, mas sim informações, ou mensagens. Recebem informações na entrada, são programados para tratá-las devidamente em seus processadores arenosos, e produzem uma mensagem na saída. Ainda que vivamos reclamando da duração das baterias, não é a energia que se situa no foco das atenções, mas sim as informações, inseridas, transformadas, e extraídas. Agora, uma nova concepção de máquina está a surgir: três cientistas europeus receberam o Prêmio Nobel de Química, por terem dados passos relevantes no sentido da construção de “máquinas moleculares”, ou nanomáquinas. São máquinas quase infinitamente pequenas, que tornam o silício de nossos chips atuais uns monstrengos gigantes. Cada ação realizada em um computador atual necessita de um bilhão de átomos de silício, segundo os cientistas; as máquinas moleculares precisariam de apenas umas poucas dezenas ou centenas de átomos. Tais máquinas seriam estruturas quase infinitamente pequenas, que podem realizar tarefas de transporte de elementos entre as nanopartículas, assim como realizar tarefas sobre elas, como conectar aminoácidos, funcionando como nanorobôs. Tais equipamentos realizam seus movimentos controláveis pelos cientistas à medida que recebem…energia. É simples assim: as nanomáquinas recebem voltam a ser concebidas como transformadores de energia. O tipo de energia capaz de ativar os nanorobôs ainda não está em discussão. No momento em que aos processos mentais forem associadas formas de energia, e elas passarem a ser utilizadas para movimentar as máquinas moleculares, estaremos, quem sabe, nos aproximando mais um pouco da compreensão do significado da espiritualidade, da força da mente, do poder da oração… enfim, dessas coisas que a ciência costuma, não poucas vezes, menosprezar.

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67.  O jejum e as Fadas do Mal

Em um inspirado quadrinho (Hagar), há algum tempo, um feiticeiro explica: “As doenças são provocadas por seres minúsculos que flutuam livremente no ar.” Diante do olhar desconfiado de seu atento ouvinte, o feiticeiro conclui categórico: “São as Fadas do Mal”. Lembrei-me de tal tirinha ao ter notícia do artigo publicado na prestigiosa Revista Nature (Volume 537, p.427) sobre o efeito positivo da restrição alimentar sobre a reparação do DNA presente em nossas células. A cada dia, dezenas de milhares entre os bilhões de subunidades das cadeias de DNA que nos caracterizam como seres humanos e nos identificam sofrem lesões, sendo parte delas reparadas. O acúmulo de reparos não realizados conduz de modo natural ao envelhecimento. A pesquisa publicada revela que uma restrição alimentar pode favorecer a reparação de partes do DNA defeituoso, diminuindo a velocidade do envelhecimento, ou seja, prolongando a vida. Concretamente falando, o que se provou é que, em ratinhos de controle, condenados a morrer em poucos meses em decorrência de determinada doença, com uma redução programada da alimentação, passaram a viver em média 3 anos. Se realmente tais resultados se consolidarem e alcançarem pesquisas com seres humanos, darão muito o que falar, passando a relacionar-se com a produção de remédios destinados a melhorar a reparação de nosso DNA. Para o senso comum, no entanto, a mensagem maior  que advém de tal notícia é o fato de que um jejum parcial e sistemático pode “dar um tempo” às células em sua contínua atividade de reparação provocada pelo desgaste natural. A Ciência está descobrindo agora o que as religiões há séculos já prescrevem: jejuar faz bem ao corpo… e à alma…

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68.   O lado “bom” do aedes aegypti    

O mundo vive um período de supervalorização do pensamento binário, das oposições inegociáveis que conduzem aos detestáveis extremismos. Mas a vida não é um Conto de Fadas, não se limita a uma disputa entre heróis e vilões, entre bruxas e fadas. O mundo não se divide em dois grupos excludentes: os que estão comigo e os que estão contra mim. A propósito de tal simplificação , deu no jornal: até aquilo que parece deixar o mundo inteiro do mesmo lado – todos abominam o mosquito aedes aegypti – pode ser visto sob diferentes perspectivas, que transcendem em muito a simples polarização do bem contra o mal. Há cerca de quatro anos, pesquisadores da área da saúde já desconfiavam da engenhosidade do mosquito, em sua tarefa de vencer a barreira da pele em busca do sangue, além de regular a fluidez do meio, para que seus ovos nele se possam reproduzir. Agora, com a fama do mosquito, veio à tona um fato, radical, uma espécie de vacina contra extremistas. Com todas as letras: o aedes aegypti  pode ter algo de bom para a ciência. Descobriu-se que a saliva do mosquito que transmite o vírus da dengue, da zika, da chicungunha tem propriedades anti-inflamatórias capazes de tratar doenças intestinais, como a colite ulcerativa. Os experimentos, por enquanto, incluem apenas roedores, mas as perspectivas de utilização em seres humanos são animadoras. Uma droga produzida a partir da saliva do mosquito também obteve resultados promissores no tratamento de doenças como a hepatite e a esclerose múltipla. Mas o principal efeito das pesquisas é um recado de natureza moral: em qualquer situação vital, em todos os campos da ciência e da filosofia, os proclamados extremismos são, na realidade, dilemas a serem ultrapassados por meio de superações do pensamento binário. Os extremismos de todas as estirpes não constituem remédios, apenas envenenam o mundo.

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69.  Milagre da graça ou brincadeira sem graça?

Deu no jornal: Cientistas criam leveduras que comem lixo e produzem perfume (FSP, 17/4/2017). Trata-se de uma manchete e tanto, digna das mais sonhadoras expectativas de reciclagem de materiais. Mas pode não passar de mera propaganda enganosa. De fato, o complexo mecanismo descrito revela apenas a possibilidade real de multiplicação do que resta do DNA de plantas como as orquídeas, extraído em laboratório. Como em praticamente todas as operações envolvendo o DNA, uma espécie de “tesoura molecular” corta a maior parte do genoma, que é descartada como se fosse junk, uma espécie de lixo genético. A ciência oficial acredita que tal material nada tem de essencial; toda a “receita” para a produção do perfume estaria associada apenas à pequena porção de DNA retido e valorizado. Trata-se de um ato de fé: o lixo genético, o junk não serve para coisa alguma. Pode ser que sim. Pode ser que não. No caso do genoma humano, por exemplo, já se percebeu que o lixo genético não é tão lixo assim. Ele é que pode nos diferenciar de outros seres vivos. Do ponto de vista apenas do material considerado valioso, nós não nos diferenciamos significativamente de um gorila, ou mesmo de uma lesma. Deixemos, no entanto, tais considerações de lado e continuemos a examinar o trabalho anunciado pelos cientistas. Em certo sentido, ele parece com uma brincadeira; em outros pontos de vista, pode assemelhar-se a um milagre. Uma brincadeira gratuita, movida pela vontade de conhecer, de decifrar os segredos da natureza; ou a revelação ao ser humano dos meandros de um milagre da criação? Seja como for, brincadeira ou milagre, a ação dos cientistas é tudo, menos de graça. Segundo um dos cientistas responsáveis pela pesquisa, o lucro que se pode extrair de tais procedimentos é o que realmente importa. Limitando sua visão apenas ao sentido econômico de seu trabalho, o referido cientista vangloria-se de que o lucro anual de um único medicamento, o Captopril, fruto de seu trabalho com genes, equivale a todo o lucro da pecuária amazônica no mesmo período, e que somente será atingido um desenvolvimento sustentável por meio de produtos de alto valor agregado, como o perfume sintético as orquídeas. Sei não. Dinheiro não tem cheiro, diz a máxima latina. Mas sobretudo no terreno da medicina e da produção de medicamentos, o elogio do lucro, em múltiplos sentidos, não tem graça alguma.  *******

 70.  Conhecimento: commodity ou commons?  

Até que ponto é aceitável tratar um artigo científico como uma mercadoria em sentido industrial? Uma pós-graduanda do Cazaquistão criou um site, denominado Sci-Hub e ofereceu acesso gratuito a praticamente qualquer estudo científico já publicado. Seu nome é Alexandra Elbakyan e sua ação é  um protesto contra os chamados “paywalls” das revistas acadêmicas, cujas assinaturas são vendidas a bibliotecas de universidades por preços que variam de 2 mil a 35 mil dólares anuais por título, com margens de lucro superiores a 30%. Editoras de tais revistas estão movendo ações judiciais  contra Alexandra, que se rebela contra o fato de que nem os cientistas que produzem os artigos, nem os pareceristas ou revisores recebem qualquer pagamento, sendo a intermediação das revistas apenas um obstáculo à livre circulação do conhecimento. Existem revistas, inclusive, que cobram dos autores dos artigos uma taxa para publicação que pode variar de 1500 a 3000 dólares por artigo, numa inversão absurda de perspectivas. Em trabalho notável, publicado com o título Understanding Knowledge as a commons, a ganhadora do Nobel de Economia de 2008, Elinor Ostrom , defende a ideia de que o conhecimento deve ser tratado como um commons, conceito criado por ela para representar aquilo que deve ser partilhado livremente por todos os seres humanos, sem as limitações impostas às mercadorias, como o ar, a água, a internet. Trata-se de uma ideia poderosa, da qual ainda ouviremos falar muito.

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71.   Inovação é commodity?  

Deu no jornal (OESP 30-03-2016): A inovação também vai virar uma commodity. Uma manchete como essa somente pode derivar de mal entendidos. Registremos dois deles. Em primeiro lugar, há a pressuposição tácita de que o novo é um valor porque é novo, É simples assim: existem coisas novas que não são valiosas. Uma coisa nova pode ser valiosa, mas seu valor nunca deriva apenas de sua novidade. É preciso escarafunchar para descobrir a razão de uma novidade ser valiosa. Em segundo lugar, o processo criativo, que dá origem ao novo, passa bem longe do terreno das formalizações, das padronizações formais, do raciocínio lógico em sentido estrito. Há um espaço muito amplo em que somos guiados, nos processos criativos, por intuições, por indícios, por associações infralógicas, que não podem ser transformados em algoritmos, a ser reproduzidos disciplinadamente por quem quer que deles se utilize. Na produção de uma mercadoria pode-se desfrutar da criatividade nos processos, pode-se recorrer a técnicas sofisticadas de design thinking, mas não se pode reduzir o processo criativo a tais técnicas sem desvios descaracterizadores. O que não significa, no entanto, que não se possa ensinar de modo criativo, mas isto já é outra conversa.

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72.  A MEDICINA PODE FAZER MAL À SAÚDE

Em matéria publicada em jornal de grande circulação (FSP 12/4/2017), o alerta foi dado: no ano em curso já foram registrados ao menos seis casos de tentativas de suicídio entre alunos do quarto ano de um dos mais prestigiosos cursos de Medicina do país. Profissionais de Psiquiatria diagnosticam que “esgotamentos, ansiedade, depressão, internações… parecem crescentes em frequência e intensidade, e soam como um pedido de ajuda.” Como entender tal fato? Eis o desafio que se põe para educadores de todas as áreas do conhecimento. Numa reação imediata, o excesso de exigências e rigores de algumas das disciplinas são situados no foco dos problemas, mas isso não parece fazer o menor sentido. Afinal, os alunos da Medicina parecem sobreviventes vacinados dos terríveis exames vestibulares, com alto nível de exigências, e o que é pior, com desafios desprovidos de significado no que se refere à profissão que, supostamente, escolheram. Tal escolha, no entanto, parece situar-se no olho do furacão das frustrações e dos suicídios. A sociedade do espetáculo torna a profissão do médico especialmente sedutora, cheia de glamour, atraindo uma multidão de vocações duvidosas. Quando se vislumbra, quase ao final do curso, a proletarização do médico como profissional, somente comparável com a dos profissionais da Educação, somente as vocações verdadeiras parecem efetivamente sobreviver. Grande parte dos seduzidos pela imagem espetacular do médico fraqueja, e a consciência do alto custo que já foi pago em termos de dedicação e de sacrifícios pessoais pode levar alguns ao desespero. Para enfrentar tal fato, o apoio psicológico aos quase-médicos certamente não fará mal, mas a medida realmente fundamental é melhorar a formação pessoal dos alunos, no ensino médio, para que encontrem sua real vocação. Enquanto isso não vem, a sociedade do espetáculo tira proveito das tendências suicidas  de maneira aética e oportunista, criando uma série para a TV sobre tal temática: “13 Reasons Why”. Não deixem de perder.

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73.  PESQUISA: PRODUTIVISMO, IRRELEVÂNCIA, PLÁGIO

Três tristes tópicos têm acompanhado a ideia de pesquisa científica nas últimas décadas: o produtivismo, a irrelevância e o plágio. Arriscaremos três palavrinhas sobre cada uma delas. A premissa de que as universidades fundamentam seu prestígio nas pesquisas que desenvolvem parece pertinente, mas tem sido seguidamente mal interpretada. Em primeiro lugar, por óbvio que pareça, as pesquisas precisam ser relevantes. O mero aumento em seu número pode não significar muito. A ansiedade produtivista tem conduzido à interpretação de que todos os docentes em todos os anos de seu trabalho acadêmico devem estar desenvolvendo projetos de pesquisa, e quanto mais, melhor. Em consequência, embora nem tudo o que se faz na universidade seja pesquisa, em nome de um produtivismo acrítico, recebem o rótulo de pesquisa atividades de relevância duvidosa. Um espectro de irrelevâncias pode ser apresentado tendo em um dos extremos a mera retórica estatística, que emula e simula as pesquisas eleitorais ou de mercado, e que conduzem a conclusões do tipo “Sete em cada dez brasileiros são 70%”. Em outro extremo, um uso pertinente e adequado da matemática pode conduzir a resultados estatisticamente significativos, mas cientificamente irrelevantes, como os que indicam a correlação quase perfeita entre o número de crianças que nascem com dois ouvidos e o de crianças que nascem com uma boca, levando à conclusão sensata de que se deve ouvir duas vezes mais do que sair por aí falando… O encadeamento perverso resulta engendrado: o produtivismo acrítico conduz à banalização da ideia de pesquisa, que favorece à irrelevância de parte expressiva dos resultados divulgados. Um tempero complementar em tal imbróglio é a crescentemente anunciada ocorrência de plágio em trabalhos científicos. Não se pode aqui contemporizar com práticas criminosas, mas é fundamental entender o contexto que as engendra. Quando as exigências parecem descabidas, os atalhos se tornam atraentes os que são eticamente vulneráveis: no âmbito da sedução do campeão, o plágio campeia. Pressionada por agências de fomento como a FAPESP, que há anos destina 10% de seus recursos de cada projeto financiado para a criação de instâncias de policiamento da integridade acadêmica, a USP tem colocado à disposição de seus docentes um programa de verificação de similaridade de textos, para a detecção de cópias ou de abusos na ideia de autoria. Quando se constata que, apenas no ano de 2016, a FAPESP transferiu R$ 56 milhões a 14 instituições com a finalidade exclusiva de exercerem tal função fiscalizadora, pode-se vislumbrar o tamanho da encrenca.

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74.   As Abelhas e a Epistemologia

Na produção do conhecimento, temos muito mais a aprender alegoricamente com as abelhas do que com as formigas ou as aranhas. A razão é simples de explicar. As formigas operam como operários lavoisierianos, que nada criam, tudo transformam, combinando o já existente fora de si, deslocando-se e transportando coisas continuamente de um lado para outro. As aranhas, por sua vez, operam como se fossem deuses, construindo suas teias a partir de elementos materiais que produzem a partir do  interior de si mesmas. O modo empirista de produzir das formigas opõe-se diretamente ao idealismo dos aracnídeos, que tiram o mundo de dentro de si. As abelhas representam uma síntese notável entre as duas perspectivas anteriormente representadas. Por um lado, deslocam o tempo todo elementos de um lado para outro, transportando pólen entre as plantas. Por outro lado, utilizam parte do que transportam, produzindo o saboroso mel. Do ponto de vista do modo como concebemos o conhecimento, ou seja, de nossa epistemologia, situamo-nos entre as operárias formigas, trabalhando/lecionando sem parar, e a ambição dos pesquisadores científicos, sempre buscando a produção do mel/ciência. Equilibrar-se entre tais extremos é o caminho que se nos oferece: sejamos, pois, abelhudos. É muito importante destacar na alegoria referida a enorme importância do trabalho de formigas realizado pelas abelhas, que é a polinização. Como se sabe, os grãos de pólen precisam ser deslocados dos elementos masculinos das plantas para os correspondentes elementos femininos, para possibilitar o ciclo da reprodução. Exceção feita a alguns alimentos como o trigo, o arroz ou o milho, que são polinizados pelo vento, quase todos os outros dependem das abelhas para a polinização. As abelhas não são os únicos polinizadores que existem, mas respondem por aproximadamente 90% da polinização animal. Que responsabilidade! Algo similar se dá na produção do conhecimento. Não é somente a produção do mel/ciência que importa: mesmo sem o charme e o glamour das criações/inovações, a atividade científica dos docentes é polinizadora por excelência…

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75.     A importância da História nos currículos

Quando se pretende uma simplificação nos currículos da Escola Básica, a redução do elenco de disciplinas a apenas duas – a Língua Materna e a Matemática – é muito frequente, e, a meu ver, equivocada. Como professor de Matemática, registro com toda a ênfase: a História é uma disciplina absolutamente imprescindível; nenhuma outra é mais importante do que ela. Para justificar tal afirmação, partimos de três fatos fundamentais:

– o que buscamos na escola é o conhecimento, e conhecer é conhecer o significado do que estudamos;

– os significados não são dados a priori, são sempre construídos, são como seres vivos, transformam-se continuamente, encontram-se em permanente estado de atualização;

– as mudanças nos significados não ocorrem ao acaso, as circunstâncias para as transformações são igualmente construídas, e não há dois caminhos para apreendê-las, apenas um: o recurso à História.

Neste sentido, todas as disciplinas escolares – a Língua, a Matemática, as Ciências em geral – todas elas, insistimos – são tributárias da História. É virtualmente impossível ensinar qualquer disciplina sem uma compreensão mínima das circunstâncias históricas que prefiguram a construção e as transformações nos significados do que se estuda.  Eis aí, numa frase, a síntese da importância da História nos currículos: é na História que buscamos compreender tanto o significado quanto o significado das mudanças – de significado.

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76.    O vestibular, as cotas, a geladeira e o aquecedor

Diversas pesquisas apontam que a vigência de programas de cotas ou de bônus, em processos seletivos para ingresso no ensino superior, não altera significativamente a qualidade dos formandos. Tal fato tem servido de argumento para os que defendem tais programas; eles também podem servir de base, no entanto, para uma crítica oportuna aos exames vestibulares existentes entre nós. O grau de especificidade, o nível de pormenor, a perda de foco nas ideias fundamentais de cada um dos conteúdos disciplinares estão a exigir que sejam repensados drasticamente tais exames. Na forma atual, eles constituem obstáculos a serem ultrapassados…  e esquecidos. A vida acadêmica e o exercício profissional passam longe do bom desempenho em tais maratonas, que servem quase exclusivamente aos interesses mercantis dos cursinhos e das fundações universitárias que as exploram. No caso de São Paulo, chega-se ao absurdo de exigir dos vestibulandos que se submetam a três exames distintos, se desejarem ingressar em uma das três grandes universidades públicas, como se fosse impossível a convergência para um processo seletivo apenas. O curioso é que, após ingressar em uma delas, os alunos têm exigências mínimas, racionalmente fixadas, para o aproveitamento de créditos obtidos em suas coirmãs, sobretudo nos cursos de pós-graduação… Voltando aos exames vestibulares, inúmeras pesquisas, como as inicialmente citadas, também registram a ineficácia de seu poder preditivo do desempenho dos alunos, ao longo dos cursos universitários. Os registros de abandono de curso ou de infelicidade nas opções precocemente realizadas, mesmo em cursos  tradicionais como engenharia ou medicina, são abundantes. Já houve um momento, ao longo da década de 1970, que um professor do Instituto de Física da USP sugeriu a simples eliminação dos exames vestibulares, que seriam substituídos pelo mero sorteio entre os candidatos inscritos. Apesar de não ter sido levado a sério, arrisco a previsão de que as pesquisas realizadas a posteriori também indicariam que as diferenças de desempenho dos formandos não seriam significativas. Não se trata aqui, obviamente, de desprezar o mérito e delegar a seleção ao acaso: trata-se, isto sim, de apontar para o verdadeiro foco da ineficácia: o vestibular. Trata-se de compreender que as pesquisas citadas no início apenas registram que a geladeira-vestibular não está funcionando bem, que os alimentos estão em vias de se estragar, ainda que ela possa estar servindo para aquecer um par de tênis-cota umedecido, acolhido circunstancialmente em sua parte traseira.

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77.   Orientação ou tutoria na Escola Básica

Não é permitida a alunos de cursos de pós-graduação a realização de um doutorado sem um orientador. Mesmo sabendo o que querem, tendo um projeto bem delineado, com objetivos bem definidos, referencial teórico condizente e metodologia consistente, ainda assim é preciso ter um orientador. Alunos dos cursos de graduação também precisariam de orientação, mais até do que os de nível de pós-graduação, e não a têm regularmente; se a tivessem, os atuais níveis de desistência nos diversos cursos certamente seriam menores. E um aluno que ainda não entrou na Universidade carece mais ainda de orientação do que quem nela já ingressou, apesar de somente contarem com tal recurso de modo circunstancial, em decorrência da atenção voluntária e solidária de alguns de seus sobrecarregados professores.

A atividade de orientação ou de tutoria, com este ou com outro rótulo, é absolutamente fundamental na Escola Básica. A formação pessoal dos alunos não pode se completar apenas nos limites do espaço-aula. As aulas são um espaço nobre, imprescindível  para o professor realizar seu trabalho de cartografia de relevâncias, nos diversos territórios disciplinares. Mas a aula é um espaço mais adequado para a exploração de centros de interesses previamente existentes ou programados do que para a criação de novos centros de interesse. Espaços maiores do que o da aula, como o de uma conferência, uma palestra, um filme, uma peça teatral, um estudo do meio, a realização de um pequeno projeto, podem ser muito mais eficazes nesse sentido. Uma palestra sobre a situação da água própria para o consumo humano no mundo pode funcionar como um importante catalisador para o interesse nas aulas de biologia, física, química, geografia etc. Um filme ou uma peça de teatro podem servir de pretexto para a discussão de temas transversais importantes, de natureza ética ou política, por exemplo. Quando se oferecem aos alunos da Escola Básica espaços mais amplos do que o de uma aula, abrindo-se o leque de temas importantes para a vida e a formação pessoal dos alunos, corre-se o risco de ver os alunos se interessarem por temáticas excessivamente complexas do ponto de vista ético, ou mesmo incompatíveis com a maturidade dos mesmos. Não cabe, no entanto, qualquer tipo de censura, ou a abertura para temáticas transdisciplinares resultaria comprometida. O antídoto para os desvios indesejáveis é justamente a interação pessoal, a conversa amiga, a atividade de orientação, de tutoria, de aconselhamento.

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78.  Formação do Professor: Conteúdo e Forma

 Em recente Fórum de Inovação Educacional promovido por jornal de grande circulação (Folha de São Paulo, 24-25 de maio de 2017), especialistas debateram sobre a formação do professor. O interessante material produzido representa uma contribuição importante para o tema. Não obstante tal fato, uma leitura apressada de tal material pode conduzir a derrapadas em algumas clássicas cascas de banana. Uma delas é a resposta à questão “O que define um bom professor?”, formulada pelos organizadores. Para a Diretora do Programa de Educação de Professores da Universidade de Harvard (EUA), Katherine Merseth, “o segredo é conhecer bem os alunos a ponto de estabelecer uma boa relação com eles e, ao mesmo tempo, agir com rigor em sala de aula.” Naturalmente, a referida professora está dando como garantida a competência dos professores no que se refere ao conhecimento dos conteúdos disciplinares que devem ser ensinados, o que, nem de longe, pode ser considerado certo entre nós. Especialmente no que tange aos cursos de Pedagogia, o conhecimento de matemática, por exemplo, situa-se muito abaixo do mínimo que se poderia esperar na quase totalidade dos casos. As exceções que podem ser nomeadas apenas confirmam a regra. A aprendizagem de metodologias predomina amplamente, numa inversão de perspectivas que torna os meios mais importantes que os fins. De modo geral, a falta de valorização dos conteúdos é muito frequente em quase todas as disciplinas, e isto ocorre há várias décadas. Em texto seminal, publicado na década de 1950, Hannah Arendt já caracterizara a crise na Educação americana como resultante de três grandes desgraças: a crise na ideia de autoridade, resultante do abandono acrítico da tradição; o desprestígio dos conteúdos, em nome de uma superestimação de metodologias fascinantes, mas perfunctórias; e, mesmo quando o conteúdo é abordado, a ocorrência frequente de uma subestimação da importância da teoria, com a correspondente supervalorização da prática. Naturalmente, nunca será demais reiterar a importância da mensagem da educadora de Harvard, no que diz respeito à importância das relações de amizade, de tutoria ou de orientação, a serem estabelecidas entre professores e alunos. É imprescindível, no entanto, registrar explicitamente que tais relações não podem suprir a eventual falta de competência técnica dos docentes. Na formação profissional, em todas as áreas, o logos  e o pathos, a razão e o sentimento, o conteúdo e a forma devem estar em permanente sintonia. Em última instância, amar as crianças é lindo e é necessário, mas, decididamente, não basta.

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79.  Saúde mental dos Professores  

Em média, 372 professores da escola básica são licenciados diariamente no Estado de São Paulo; 27% de tais licenças decorrem de transtornos mentais. O dado é revelador da desesperança do professor, da parca perspectiva de engajamento em projetos de efetiva melhoria da educação básica. É indício de uma sincera vontade de participação que não encontra canais de atualização e conduz, paulatinamente, ao desalento. Iniciativas da Secretaria que articulem e potencializem tais energias latentes podem ser a saída. Os professores precisam ser chamados profissionalmente a participar. Os Conselhos de Educação, em seus diversos níveis, poderiam catalisar tal mobilização, que precisaria passar bem longe das especificidades e das comuns distorções do sindicalismo. Não carecemos de profissionais competentes, dispostos a se articular em defesa de uma boa causa: carecemos da explicitação de causas efetivamente mobilizadoras.

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80.   Educação Integral: senso ou contrassenso?  

1. No nível do senso comum, há dois sentidos para a expressão “Educação Integral”: a formação integral da pessoa, em todas as suas dimensões, e a Educação em Tempo Integral. No primeiro caso, há um consenso aparente sobre o fato de que uma tal formação não pressuporia um alongamento da permanência diária na Escola; no segundo, alguma dúvida pode surgir, quanto à conveniência da delegação à Escola do que poderia ser considerada uma tarefa da família. Apenas para alimentar a discussão, registremos que, em seu Artigo 2º, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) afirma que a Educação é um “dever da família e do Estado”, tendo por finalidade “o pleno desenvolvimento do educando”, ou seja, o desenvolvimento integral do educando.

2. No espaço-tempo da Educação no século XXI, dois registros fundamentais podem ser associados à questão de fundo: do ponto de vista temporal, a perspectiva dominante é a de uma formação continuada, estamos docemente condenados a estudar permanentemente; do ponto de vista espacial, de modo análogo, a perspectiva é a de uma aprendizagem, na feliz expressão de Lúcia Santaella. Aprendemos continuamente, onde quer que estejamos. Em outras palavras, não podemos pretender que apenas no espaço-tempo escolar se dá formação dos jovens estudantes.

3. Outro ponto crucial para um posicionamento diante da ideia de Educação Integral é a forma de organização da Escola. As aulas constituem o espaço-tempo nobre da Escola, é impossível imaginar uma Escola sem aulas. Mas triste da Escola que se limita exclusivamente a aulas. Espaços e tempos maiores e menores do que o das aulas precisam conviver com elas. Espaços maiores, como filmes, conferências, viagens, projetos, estudos do meio etc. são fundamentais para a criação e a alimentação de centros de interesse, a serem explorados disciplinarmente, disciplinadamente, nas aulas. Espaços menores, como os de tutoria, de orientação, de convivência, de conversas pessoais são imprescindíveis para a depuração de interesses espúrios. Escola Integral somente com aulas? Estou fora…

4. A ideia de uma Escola Integral também pressupõe uma convivência entre diversos tipos de Escola, não somente no que se refere à diversidade de níveis de ensino, mas também no que tange à permanência integral ou parcial dos alunos. Naturalmente, não é possível vislumbrar a transformação de todas as Escolas ao formato Integral, nem a médio e, talvez, nem a longo prazo. No Estado de São Paulo, no universo de mais de 5 mil Escolas, menos de duas centenas são Integrais, atualmente, o que significa cerca de 8 ou 9h de atividades por dia; no Brasil, mais de 80% das Escolas funcionam em regimes de não mais que 3h por dia.

5. Um ponto especialmente importante é o desequilíbrio na partilha de funções educacionais entre a família e o Estado, associado às Escolas em tempo integral. Não existe consenso a respeito de tal tema, no espectro político. Em um dos extremos de tal espectro, encontra-se a China, com a responsabilidade pela Educação sendo quase inteiramente do Estado, enquanto no Chile, situado praticamente no outro extremo de tal espectro, cerca de 85% das escolas ocupam os alunos em tempo integral. Há ainda o fato de que outros países, como a França, que relativizaram a presença integral dos alunos na Escola, reservando alguns períodos semanais para a convivência das crianças com a família. E nós, como ficamos?

6. No que se refere à organização dos trabalhos na Escola, a articulação entre as diversas atividades certamente pressupõe uma Base Nacional Curricular, mas precisa abrir espaços para formações peculiares, em que prevalecem interesses pessoais dos alunos, e depende muito mais do envolvimento e da disponibilidade dos professores, na alimentação dos múltiplos interesses dos alunos. O nomadismo dos alunos é natural, e exige muito dos professores a disposição para não combater os interesses erráticos dos alunos, em busca da paixão maior, norteadora de seus projetos. Não se pode pretender que basta dar aos alunos a possibilidade de escolhas de disciplinas optativas. Na verdade, os alunos tendem a ter trajetórias idiossincráticas, bem distintas das que derivam de um projeto bem delimitado a priori. A condição de trabalho dos professores deve permitir que se consolidem espaços de convivência, de orientação pessoal. Uma gratificação meramente simbólica pode não ser suficiente para garantir o desempenho das funções docentes ampliadas na Escola Integral.

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Texto para ORELHAS  (DUAS)  

NÍLSON JOSÉ MACHADO é Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP). Leciona na USP desde 1972, inicialmente no Instituto de Matemática e Estatística, e, a partir de 1984, na Faculdade de Educação. Sua atuação é voltada para a formação de professores. Já orientou mais de cinco dezenas de mestres ou doutores no Programa de Pós-Graduação da FEUSP, onde é responsável por duas disciplinas: EPISTEMOLOGIA E DIDÁTICA e ÉTICA E EDUCAÇÃO. Durante quatro mandatos, foi Chefe do Departamento de Metodologia do Ensino e Educação Comparada da FEUSP. No biênio 1993/94, foi Professor Visitante no Instituto de Estudos Avançados da USP, no Programa Educação para a Cidadania. Participou, em 1985, da equipe que elaborou a Proposta Curricular de Matemática do Estado de São Paulo; foi membro do grupo de trabalho que formulou o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), entre 1998 e 2002; e coordenou a equipe que elaborou o atual Currículo de Matemática do Estado de São Paulo, entre 2008 e 2010.

É autor de diversos livros, entre os quais:

EDUCAÇÃO- AUTORIDADE, COMPETÊNCIA E QUALIDADE (Escrituras Editora, edição ampliada/2016)

EDUCAÇÃO – CIDADANIA, PROJETOS E VALORES (Escrituras Editora, edição ampliada/2016)

LIVRO DE BOLSO DA FORMAÇÃO DO PROFESSOR (Editora Livraria da Física, 2016)

O CONHECIMENTO COMO UM VALOR (Editora Livraria da Física, 2015)

ENSINO DE MATEMÁTICA: PONTOS E CONTRAPONTOS (Summus, em co-autoria com Ubiratan D’Ambrósio, 2014)

ÉTICA E EDUCAÇÃO (Ateliê Editorial, 2012)

EDUCAÇÃO – MICROENSAIOS (Escrituras Editora, volumes I, II e III, 2010-2011)

JOGO E PROJETO (Summus, em co-autoria com Lino de Macedo, 2006)

LÓGICA E LINGUAGEM COTIDIANA (Autêntica Editora, em co-autoria com Marisa Cunha, 2005)

EPISTEMOLOGIA E DIDÁTICA (Cortez Editora, 1995)

MATEMÁTICA E EDUCAÇÃO (Cortez Editora, 1992)

MATEMÁTICA E LÍNGUA MATERNA (Cortez Editora, 1990)

MATEMÁTICA E REALIDADE (Cortez Editora, 1987)

Publicou dois livros de poemas:

PLANTARES (Escrituras Editora, 1997)

MATTEMAS (Scortecci, 2015)

Traduziu e adaptou os livros:

ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS (Lewis Carroll, p/crianças a partir de 7 anos, Scipione Editora, 2002)

UTOPIA (Thomas More, p/crianças (10 anos), Escrituras Editora, 2003)

O MELHOR DE LA FONTAINE – FÁBULAS (em linguagem poética, Escrituras Editora, 2012

É autor ainda de cerca de mais de uma dezena de livros para crianças a partir de 5 anos, todos escritos em linguagem poética.

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Texto para a 4ª capa

O JORNAL E A EDUCAÇÃO

Os meios eletrônicos ocupam cada vez mais espaços na comunicação entre as pessoas. Dos e-mails aos e-books, tudo parece conspirar contra o papel. Muitas revistas científicas abdicaram da versão impressa. A julgar pelas tiragens, o jornal impresso teria importância declinante no mundo. Mas há controvérsias a respeito. Dados recentes indicam um crescimento muito aquém do esperado no número de e-books publicados, em comparação com o livro impresso. Além disso, a efemeridade das publicações eletrônicas é desconcertante: 70% do que é publicado na rede www desaparece quase completamente em até 4 meses.

O caso específico dos jornais é especialmente interessante. Sua função tem se transformado de modo consistente: não mais recorremos a eles para colher dados ou informações, imediatamente obtidos nas redes, mas buscamos em suas páginas reflexões sobre os acontecimentos. Os veículos sérios da imprensa escrita podem desempenhar um papel analítico. Democraticamente conduzido, os jornais passam a constituir instrumentos de formação de opiniões, no caminho para a construção de uma consciência crítica que é essencial para o exercício da cidadania.

Uma consequência natural é uma aproximação entre as funções do jornalismo democraticamente concebido, que não se limita a ecoar a voz de setores limitados da sociedade, e da Educação básica, que tem como meta fundamental a construção da consciência pessoal, condição de possibilidade de uma convivência democrática.

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TEXTO PARA O CATÁLOGO

Os textos reunidos foram inspirados em matérias jornalísticas. Buscam uma aproximação entre temas cotidianos nas áreas de Política, Ética, Linguagem e Ciência, e os conteúdos educacionais das diferentes disciplinas. A meta principal é a construção de uma consciência crítica, essencial para o exercício da cidadania.

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Estatística em quatro atos

Nilson José Machado

njmachad@usp.br

I           Não existem dramas

            Nem tragédias

            Se nos escondemos

            Nas Médias.

II                   Algo impossível de se provar

                     Pode ser muito provável.

                     O destino das palavras é imprevisível…

III                                 Intolerância sutil:

                                    Apenas dois ou três desvios

                                    E a Curva Normal me excluiu…

IV                                           Sucessivas ocorrências de um evento

                                               Tornam seu acontecimento mais provável?

                                                Ou isso é sinal

                                                De que seu estoque está no final?

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Notas sobre a Epistemologia de Nicolau de Cusa

  Nílson José Machado

 njmachad@usp.br  

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Sumário

– Culta ignorância

– Douta ignorância

– Quanto mais aprendo, mais ignoro

– Significado: do binário ao multifário

– Epistemologia chinesa

– Conhecimento geométrico

– Geometria: Tetraedro epistemológico

– Significado: feixes binários

– Normas: duas fontes e um desvio

– Tetraedro: qualidades

– Oposições planas

– Oposições espaciais

  • Culta ignorância

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Scientia quer dizer conhecimento, mas a redução do conhecimento à vertente científica é fenômeno recente, em termos de séculos. Certamente trata-se de um desvio; a leitura do capítulo A arte é conhecimento, no seminal Reflexões sobre a arte, deAlfredo Bosi, bastaria para ilustrar tal fato. A superestimação do conhecimento científico tem alimentado certas reações acríticas, que atingem o paroxismo da negação do valor da ciência. Um voluntarismo ingênuo subestima a importância da dedicação aos estudos e transmuta em sábios sabidinhos que se orgulham de seu parco conhecimento. Abre-se aí fresta perigosa para uma inversão de valores: o louvor à esperteza e o cultivo da ignorância.

O conhecimento escolar, do básico ao acadêmico, os diplomas e as certificações não constituem a única via para a sabedoria. Em nenhuma via, no entanto, há lugar para os que desprezam os esforços para o estudo e o contínuo aperfeiçoamento pessoal. A ignorância culta – ou cultivada – deveria ser um crime hediondo.

Douta ignorância

Ainda que o saber seja sempre melhor que o não saber, existe um não saber valioso naquele que sabe que não sabe. Não saber e não saber que não se sabe é ignorância mesmo, pura e simples. Somente a consciência da ignorância pode torná-la valiosa: eis o recado fundamental de Nicolau de Cusa, em sua obra clássica “A Douta Ignorância” (1440).

Uma fronteira sutil separa o que sabemos daquilo que não sabemos: sua extensão cresce simultaneamente com o “volume” daquilo que se conhece. Uma pergunta fecunda adequadamente respondida remete-nos a muitas outras.

Quando jovens, enfrentamos de peito aberto certas situações delicadas, ignorando os perigos inerentes; na maturidade, ocorrências análogas passam a nos encher de medo. A inocência e a ignorância são como irmãs siamesas.

Quem quase nada sabe, quase nada ignora, pelo menos conscientemente; por outro lado, quanto mais conhecemos, mais aumenta a extensão da fronteira com o desconhecido, aumentando com ela a consciência de nossa douta ignorância.

Quanto mais aprendo, mais ignoro

Vamos imaginar que tudo o que conhecemos esteja situado entre as palmas de nossas mãos em concha: a superfície externa das mãos representaria a fronteira com o que não sabemos. Quanto menos sabemos, menor seria a fronteira com o que não sabemos, menor seria a consciência do que não se sabe. Complementarmente, quanto mais conhecemos, mais inflada ficaria a concha de nossas mãos, maior seria a fronteira com o que não se sabe: quanto mais sabemos, mais sabemos quão pouco sabemos…

A imagem é de Nicolau de Cusa, no início do século XV. A mensagem é simples: quanto mais aprendemos, mais ignoramos. O aparente paradoxo é rotulado por Cusa como uma Douta Ignorância”. Longe do acesso socrático sugerido pelo “Só sei que nada sei”, a consciência cusana das limitações de nosso conhecimento do mundo é positiva. Ela associa o crescimento em termos cognitivos, condição básica da construção da consciência, com a humildade necessária a todos os que, sinceramente, buscam por um aperfeiçoamento pessoal.

         Significado: do binário ao multifário

Em situações binárias, uma ação justa decorre do posicionamento adequado no eixo bem/mal: os heróis nos ajudam a combater os vilões; as fadas vencem as bruxas.

Mas a vida não é um Conto de Fadas, e, rapidamente nos faz enfrentar questões em que o bem e o mal passeiam de mãos dadas. Os dilemas morais são exemplos de situações em que uma ação justa situa-se muito além de uma simples opção entre pares antagônicos.

A construção de significados mais complexos envolve situações multifárias: diversos pares de polarizações exigem de nós uma escolha ou um posicionamento crítico. Conceitos nascem da confluência e da composição entre diversos eixos, como arte/ciência, política/tecnologia, ética/espiritualidade; valores consolidam-se no cruzamento de polarizações como bom/mau, belo/feio, verdadeiro/falso.

Em geral, as ações práticas são multifacetadas e pressupõem um mapeamento de variáveis, um feixe de polarizações, um cruzamento de perspectivas. O multifário não nega o binário: apenas o amplifica.

Epistemologia chinesa

Para o filósofo chinês Chang Tung-Sun (1886-1973), o conhecimento humano deve ser examinado como se fosse constituído por quatro dimensões que se interpenetram e se complementam: as sensações imediatas, associadas a uma percepção bruta da estrutura externa do mundo; o conhecimento sensorial, que já consiste em pré-representações, derivadas das categorias linguísticas; as construções de objetos e conceitos, a partir das percepções do observador; e as interpretações, ou construções teóricas da realidade do mundo.

Os processos cognitivos não seriam, pois, vetores com origem nas sensações imediatas e extremidade em elaborações teóricas, mas constituiriam um infindável movimento de circulação entre as quatro faces de um tetraedro: as faces objetivas, da percepção bruta e do conhecimento sensorial, e as faces subjetivas, dos constructos e das teorias.

Tal permanente movimento parece zombar de categorizações absolutas, incorporando a ideia de uma realidade em permanente estado de atualização.

Conhecimento geométrico

A etimologia é expressiva, no caso da Geometria: ela se desenvolveu, inicialmente, a partir de medidas da Terra, que deviam ser refeitas periodicamente, em razão das cheias do Nilo. Com Euclides, por volta de 300 aC, uma sistematização formal do conhecimento empírico acumulado se deu, e a Geometria passou a organizar-se em termos de conceitos primitivos, definições, postulados, teoremas. Tão bem sucedida foi a empreitada euclidiana que o conhecimento geométrico tornou-se um modelo de organização para outras áreas, inspirando Newton, com as leis da Mecânica e até Spinoza, em sua Ética.

No ensino da Geometria, são comuns estratégias que partem da percepção sensorial de formas, de classificações e denominações, seguidas da busca de sistematização teórica, impregnada, quase sempre, de um formalismo informal.

Por mais natural que pareça, essa passagem do conhecimento empírico à sistematização formal não é suficiente para uma compreensão adequada de como se constrói o conhecimento geométrico.

Geometria: Tetraedro epistemológico

Na construção do conhecimento geométrico, em vez da polarização empírico/formal, é fundamental a compreensão de suas quatro faces constitutivas: a percepção, a construção, a representação e a conceituação.

 Toda a fecundidade da geometria nasce da articulação entre as quatro faces mencionadas: percebemos para construir, construímos para perceber, representamos para conceituar, conceituamos para representar, representamos para construir, construímos para representar…

Tais ações não constituem fases, como as da Lua, que se sucedem linear e periodicamente, mas sim faces, com as de um tetraedro, cada uma em contato com todas as outras, configurando uma estrutura a partir da qual, de modo alegórico, podem-se apreender não apenas o significado e as funções do ensino de geometria, mas também a dinâmica dos processos cognitivos em geral.

Um desvio mortal é o isolamento ou a dominância de qualquer uma das faces do tetraedro: a geometria vive e se alimenta da contínua interação entre todas elas.

Significado: feixes binários

Em Tomás de Aquino, as virtudes compõem dois eixos cardeais: coragem/temperança, justiça/prudência. A natureza humana é lapidada no cruzamento de tais eixos, equilibrando-se a força para agir e a disposição para se conter, a crença na ordem maior do mundo e o discernimento pessoal nas ações práticas.

As competências pessoais são construídas a partir de três eixos fundamentais de polarizações: eu/outro, análise/síntese, concreto/abstrato. A pessoa competente expressa-se bem mas é capaz de ouvir; analisa mas toma decisões; contextua mas é capaz de abstrair os contextos.

As ideias do Cálculo constituem-se a partir do feixe de contraposições local/global, constante/variável, finito/infinito, discreto/contínuo: estudar Cálculo é buscar um diálogo entre os elementos de tais pares.

Os temas mais complexos podem ser abordados de modo similar. Não se trata de reduzir os significados a escolhas entre pares 0/1, mas de caracterizar cada um deles pelo feixe de polarizações relevantes que representa.

Normas: duas fontes e um desvio

A vida em sociedade pressupõe uma regulação por normas, diante das quais somos todos iguais. Duas são as fontes básicas de normas. Na primeira, o ponto de partida é um fato, que traduz um valor socialmente acordado e inspira uma norma para seu cultivo. Na segunda, o ponto de partida é um valor, que inspira uma norma, em busca da instauração de um fato. A tradição inspira normas do primeiro tipo; já o preceito “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” constitui uma norma do segundo tipo.

Ao refletir sobre o direito numa perspectiva semiótica, Greimas sintetizou o nascimento de normas em termos do par prescrição/proscrição. Uma norma surge para promover ou para proibir uma ação; para consolidar um costume ou para instaurar uma prática. Os eixos prescrever/não prescrever e proscrever/não proscrever, no entanto, precisam ser independentes. A corrupção do sistema ocorre quando as circunstâncias são tais que uma prescrição disfarça uma proscrição, ou vice versa.

Tetraedro: Qualidades

  Volume (m3) Área (m2) Área (m2) Volume (m3)
Tetraedro 1 7,21 1 0.052
Hexaedro 1 6,00 1 0.068
Octaedro 1 5,72 1 0,073
Dodecaedro 1 5,31 1 0,082
Icosaedro 1 5,15 1 0.086
Esfera 1 4,83 1 0,094  

Para um volume fixado, é o poliedro regular de maior área total

Para uma área fixada, é o poliedro regular de menor volume

Oposições planas

     A                                    B

   ~B                                   ~A

Oposições espaciais

     A                                    B

 

   ~B                                   ~A

 

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Currículos e Competências

Nílson José Machado

njmachad@usp.br

Introdução: Currículos, disciplinas, competências

O fenômeno pode ser notado em quase todos os países, de modo mais ou menos acentuado: os currículos da escola básica apresentam-se de modo excessivamente fragmentado. As relações entre as disciplinas constituintes costumam ser fracas e o suposto aprofundamento com que certos temas são tratados não é equilibrado por uma visão transdisciplinar que favoreça a construção dos significados e situe o ser humano em primeiro plano. Afinal, na escola básica, os conteúdos disciplinares são meios para uma formação pessoal densa, não deveriam ser estudados como se se destinassem a especialistas, ou fossem fins em si mesmos.

Vivemos em um ambiente impregnado de tecnologias, as informações estão disponíveis em toda parte. A função da escola não é – e nunca foi – a de fornecer acriticamente dados para informar os alunos, mas sim um espaço para o desenvolvimento de competências pessoais, que combine tanto elementos técnicos quanto uma formação em valores. Os currículos, como mapas de relevância, não deveriam delimitar rigidamente territórios disciplinares: ao organizar os conteúdos, devem ser capazes de despertar interesse, convidando a viagens através de múltiplos espaços do conhecimento.

Visando ao restabelecimento do papel das disciplinas como meio para a formação pessoal, no início da década de 1990 iniciou-se em diversos países um debate sobre a ideia de competência. No Brasil, com o Exame Nacional do Ensino Médio (1998), tal debate entrou em cena, encontrando alguma resistência de parte dos educadores, que associavam a emergência da ideia de competência com a perda de importância dos conteúdos disciplinares.

Apesar do fato primário de que disciplinas e competências não disputam os mesmos espaços na organização da escola, tal como os meios de uma ação não conflitam com os fins da mesma, de alguma forma, tal mal entendido tem sido renitente. Aqui, nosso objetivo principal é reunir elementos conceituais para explicitar a ideia de competência, preparando o terreno para uma explicitação da natureza simbiótica da relação entre disciplinas e competências na organização da escola.

Competência: elementos fundamentais

Com ironia lapidar, Descartes inicia seu Discurso do Método caracterizando a idéia de bom senso: é aquilo de que todos se consideram suficientemente providos a ponto de ninguém admitir que precisa de mais do que tem. Algo similar parece ocorrer com a idéia de competência: em um cenário em que o conhecimento ocupa um lugar central, constituindo o principal fator de produção, em que as permanentes transformações são a regra, precisamos continuamente desenvolver e atualizar nossas competências; poucos assumem de bom grado, no entanto a condição de carência de competência, e menos ainda a de incompetente.

Embora difusa, a etimologia é fecunda: deriva de com + petere, que em latim significa pedir junto com os outros, buscar junto com os outros.  Aquele a quem nada apetece é um inapetente; aquele que nada quer, que não sabe buscar junto com os outros é um incompetente. Derivações próximas são competitio, que significa tanto acordo quanto rivalidade, e que conduziu apenas no latim tardio, à idéia de competição; competentia, que remete a proporção, a justa relação, ou à capacidade de responder adequadamente, em dada situação. A associação de competência com capacidade conduz a atenção a capacitas, que significa a possibilidade de conter alguma coisa, de apreender, de compreender algo. As principais características da idéia de competência parecem encontrar raízes em tal feixe de relações etimológicas.

Seis são os elementos fundamentais para constituir tal noção: pessoalidade, âmbito, mobilização, conteúdo, abstração e integridade. Em uma frase: a competência é um atributo das pessoas, exerce-se em um âmbito bem delimitado, está associada a uma capacidade de mobilização de recursos, realiza-se necessariamente junto com os outros, exige capacidade de abstração e pressupõe conhecimento de conteúdos. Complementarmente: animais ou objetos não são competentes, não existe uma competência para todos os âmbitos possíveis, é impossível a competência sem uma ação efetiva, a falta de conhecimento é o primeiro sintoma de incompetência, a incapacidade de abstrair o contexto é uma forma de incompetência, e não se pode ser competente sem integrar-se com os outros, sem levar em consideração os outros.

Em primeiro lugar, naturalmente, vem a pessoalidade da competência. Somente as pessoas são competentes ou incompetentes; quase automaticamente, o substantivo competência é orlado pelo adjetivo pessoal. Atribuir-se competência a objetos, artefatos ou mesmo animais pode ocorrer em metáforas circunstanciais, mas não pode passar disso. As pessoas é que pedem, buscam junto com os outros, têm vontades ou são inapetentes, o que abre as portas para a incompetência. As pessoas se constituem representando papéis, caracterizam-se como um feixe de papéis, em alguns dos quais é protagonista, em outros, coadjuvante. As pessoas são personagens de peças variadas, em que ora submetem-se a diretores exigentes, ora são autores da própria peça que representam. A sociedade consiste em um vasto sistema de distribuição de papéis: na família, na escola, no trabalho, no lazer, na cultura, na política etc. A pessoa competente seleciona adequadamente seus papéis, responde a um chamamento interior, a uma vocação que a distingue de todas as outras. Não se pode ser competente exercendo atividades que não correspondem a esse chamamento pessoal, tanto quanto não se pode viver a vida de outra pessoa. Na Grécia antiga, os atores que simplesmente fingiam representar, muitas vezes roubando os papéis dos outros, eram chamados de hipócritas. Toda competência que não é pessoal em sentido estrito não passa de simulação, de hipocrisia.

A idéia de competência também está inextricavelmente associada a um âmbito em que ela se exerce. Afirmações do tipo “Fulano é competente” carecem de sentido ou soam demasiadamente vagas se não se qualifica o contexto em que tal competência se realiza; não se sustenta facilmente uma pretensão de competência “para o que der e vier”. Naturalmente, quanto mais restrito é o âmbito em que uma competência se exerce, mais facilmente ela pode ser caracterizada em seus pormenores, estruturada em habilidades capilares que lhe dão forma e consistência; quanto mais amplo é tal âmbito, mais difícil é tal estruturação, sempre necessária. É mais fácil, por exemplo, dizer-se o que constitui um motorista competente do que o que caracteriza um cidadão competente. Essa vinculação entre as idéias de competência e de âmbito é similar à existente entre as noções de autoridade e âmbito. De fato, não existe uma autoridade para todos os âmbitos possíveis, toda autoridade tem um âmbito em que é exercida; extrapolá-lo significa uma sempre indesejável derrapagem para o terreno do autoritarismo. Aliás, é justamente o âmbito em que uma autoridade é legítima que determina os limites de sua competência. Uma pretensa competência sem limites seria mais propriamente denominada de arrogância.

De alguém que leu e compreendeu todos os conteúdos atinentes e dispõe de todos os instrumentos necessários para a realização de determinada tarefa mas que não consegue realizá-la, pode-se afirmar com segurança: é incompetente. A competência está sempre associada à capacidade de mobilização dos recursos de que se dispõe para realizar aquilo que se deseja. A fonte de legitimação de todo o conhecimento do mundo é justamente essa possibilidade de mobilização para a realização dos projetos das pessoas; sem ela, o conhecimento é inerte, é como um banco de dados carente de usuários. Não se trata aqui de uma defesa ardorosa das aplicações práticas, nem sempre boas conselheiras na configuração das competências, mas sim do reconhecimento enfático de que qualquer ação a ser realizada pressupõe algum nível de conhecimento teórico (theoria, em grego, quer dizer visão), sem o que não se pode lograr um fazer propriamente humano, manifestação de uma vontade livre e consciente. A idéia de mobilização também se relaciona com o fato de que sempre conhecemos muito mais do que conseguimos explicitar em palavras. Muitos de nossos saberes permanecem tácitos, não encontramos palavras para expressá-los, mas eles subjazem a aquilo que somos capazes de explicitar e sustentam aquilo que conseguimos realizar. A competência também se expressa nessa capacidade de mobilizar esse conhecimento tácito de que dispomos, para realizar aquilo que explicitamente desejamos.

Quando nos referimos à capacidade de mobilização do que se sabe para realizar o que se deseja, claramente se desenham diante de nós situações em que alguém que sabe muito consegue mobilizar pouco, enquanto, por outro lado, alguém que sabe menos consegue mobilizar mais, sendo, em conseqüência, mais bem sucedido, do ponto de vista das realizações efetivas. Nada disso, no entanto, pode servir de base para uma mínima desvalorização daquilo que se sabe, do conteúdo, ou do conhecimento de que necessitamos para a realização de qualquer ação. Sem dúvida, a falta de conhecimento é o primeiro sintoma, e o mais efetivo, da caracterização da incompetência, e a competência consiste em combinar de modo eficaz a busca pelo conhecimento de que se necessita com as formas adequadas de mobilização do mesmo. O desvio que consiste na caracterização da competência unicamente pelo conhecimento de que se dispõe, ainda que inerte, não pode ser substituído pelo elogio de uma competência “esperta”, que se limita a explorar os parcos recursos que já temos à mão, desdenhando da necessidade, sempre crescente, de novos conhecimentos. Se a competência não pode se limitar a sua dimensão técnica, ao conhecimento efetivo, sempre carente de incremento, dos múltiplos temas associados a qualquer ação consciente que se pretenda realizar, também é verdade que sem tal dimensão técnica, sem tais conteúdos cognitivos, ela não passa de um balão retórico, prestes a explodir diante do mais inocente espinho.

É importante também mencionar que a necessidade do âmbito, inerente à idéia de competência, não significa uma subestimação da necessidade de abstração também inerente a tal idéia. Porque, sem dúvida, àquele que é capaz de realizar tarefas apenas quando estritamente vinculadas a determinado contexto, permanecendo imobilizado por uma alteração mínima no mesmo, falta, sem dúvida, competência. Quem sabe que 3 abacaxis + 4 abacaxis = 7 abacaxis, mas tem dúvidas sobre o resultado da adição de 3 bananas com 4 bananas, não aprendeu a somar 3 com 4, e é certamente incompetente. Se é o âmbito/contexto que dá vida à idéia de competência, também o é a capacidade de abstrair o contexto, de transportar-se o que se sabe para outros âmbitos, conservando-se a visão, ou a compreensão que possibilita um fazer consciente. É incompetente tanto quem não é capaz de contextuar o que conhece, viabilizando uma ação plena de significações, quanto quem não consegue alçar-se por sobre as peculiaridades do contexto, abstraindo os elementos irrelevantes para o fim almejado e atendo-se ao que realmente se considera fundamental. Abstrair, portanto, não é o oposto de contextuar, mas um elemento complementar do contínuo movimento contextuação/abstração; a falta de um dos elementos do par somente pode possibilitar um andar capenga, que limita a atuação de um ser humano competente.

Competência e pessoalidade

Ao situar a pessoalidade como um elemento fundamental da idéia de competência, convém mencionar um ponto crítico sem cuja consideração pode-se entrar em um desvio isolacionista, que contamina tal idéia. Trata-se do fato de que ninguém se constitui como pessoa sem os outros: permanentemente, agimos e representamos papéis socialmente prefigurados, para os outros e com os outros. Como sujeitos de uma ação consciente, atuamos segundo perspectivas pessoais, absolutamente idiossincráticas, perseguimos projetos, pessoais e coletivos, orientados por um cenário de valores socialmente partilhados, e necessariamente sujeitamo-nos (ou submetemo-nos) aos outros, no sentido de levar em consideração seus pontos de vista, seus argumentos, seus valores. Assim, um elemento complementar em relação à pessoalidade na constituição da idéia de competência é a integridade pessoal, tanto no sentido da pressuposição de um quadro de valores que se professa e que são efetivamente vivenciados, quanto no que se refere a uma integração com os outros, associada essencialmente a uma permanente abertura em tal quadro de valores para o diálogo, para a argumentação racional em busca de consensos. A idéia de integridade – a de manter-se inteiro como pessoa e, ao mesmo tempo, integrado ao corpo social em que se partilham valores e crenças – é um elemento fundamental para caracterizar a competência. Sem ela, a competência pode ser associada apenas a sua dimensão técnica, sendo confundida com o mero desempenho especializado, sem a referência a um quadro de valores socialmente acordados, sem compromisso com a articulação entre o interesse público e o privado, tão necessário para a vivência da plena cidadania. Parece-nos um completo contra-senso a pertinência da utilização da palavra competência para caracterizar as ações de um terrorista, de um torturador, ou do autor de um crime hediondo qualquer, realizado de maneira tecnicamente perfeita.

Vamos resumir o que se alinhavou até aqui. Em seu uso corrente, à palavra competência associa-se quase automaticamente o qualificativo pessoal, o que constitui um indício lingüístico forte da pessoalidade como elemento fundador da idéia de competência. Competentes ou incompetentes são os agentes, são as pessoas. O mercado não age, os computadores não agem, os animais não agem, os livros não agem, apenas as pessoas agem livremente, conscientemente, na busca da realização de seus projetos, caracterizando-se como competentes ou incompetentes. Como a noção de autoridade, a de competência traz consigo sempre a idéia de âmbito, de contexto: exerce-se uma autoridade ou uma competência sempre em determinado âmbito, não resistindo a uma análise mais densa uma suposta competência para o que der e vier. Toda competência pressupõe uma capacidade de mobilização de recursos, em busca da realização de seus desejos, de seus projetos. Quem nada deseja, nada projeta, quem vive a inapetência abre as portas para a vivência da incompetência. A competência pressupõe sempre a aderência a um contexto e, simultaneamente, a possibilidade de liberar-se dele, abstraindo suas peculiaridades não para distanciar-se de qualquer contexto, mas sim para abrir as portas para novas contextuações. Quanto maior a competência, maior a capacidade de se pôr em movimento o círculo abstração/contextuação. Embora constitua um desvio semântico grave a identificação da competência com o mero domínio de conteúdos técnicos em determinada área do conhecimento, o primeiro indício da falta de competência ocorre exatamente nesse terreno, dos conteúdos. É impossível conceber-se qualquer forma de competência que possa prescindir de conhecimentos específicos, de complexidade crescente, a cada dia. Não se trata necessariamente de conhecimento escolar, ou científico, ou formal em algum sistema de ensino: trata-se do conhecimento em sentido pleno, que pode incluir as disciplinas escolares, mas que certamente vai muito além delas, envolvendo as noções de conhecimento e de valor, e desembocando na idéia de sabedoria, ou do conhecimento relevante, do saber que tem valor. A noção de competência, finalmente, fiel a sua raiz etimológica, caracteriza-se plenamente como capacidade de pedir junto com os outros, de buscar-se coletivamente fins prefigurados, mantendo-se a integridade pessoal e a integração social.

Competência, autoridade, competição

Para concluir, uma proporção analógica: assim como existe certa contaminação semântica da idéia de autoridade pelo caráter indesejável do termo autoritarismo, sói ocorrer contaminação análoga da idéia de competência pela associação direta com a noção de competição: uma palavra final pode contribuir para uma descontaminação em ambos os casos. O exercício da autoridade é fundamental para a criação e/ou a manutenção da ordem legítima, construído sobre um arcabouço de normas socialmente acordadas. Toda autoridade, no entanto, tem um âmbito que lhe compete; extrapolá-lo é o passo em falso, às vezes sutil, para o ingresso no terreno minado do autoritarismo. Convém lembrar que cada pessoa constrói sua consciência na medida em que assume a responsabilidade pelos seus atos, e exerce uma autoridade sobre si mesmo, controlando suas volições de primeiro nível, meras vontades ou desejos nos limites de sua condição de animal, e elaborando as bases para as volições de segundo nível, os desejos de certos desejos e não de outros. Há em cada pessoa um âmbito em que ela é a maior autoridade sobre si mesma: ninguém pode invadir tal âmbito sem que se constitua uma arbitrariedade intolerável. O exercício pleno de tal autoridade nesse âmbito íntimo pressupõe, portanto, a vivência plena de uma responsabilidade radical. A assunção das responsabilidades inerentes ao papel que se desempenha nos limites da competência correspondente é o antídoto para a descontaminação do exercício da autoridade, sem medo de parecer-se autoritário.

No caso da idéia de competência, a associação direta com a noção de competição não pode ser temida por duas razões principais. Em primeiro lugar, há, na própria idéia de competição, uma ambivalência atenuante, uma vez que ela tanto significa rivalidade como acordo: naturalmente, tal acordo refere-se à plena aceitação das regras que regulam os processos competitivos, da justeza e do equilíbrio das mesmas. Mencione-se aqui, ainda que de passagem, que tal ambivalência semântica encontra-se presente em inúmeros termos latinos, como altus, por exemplo, que tanto significa alto como também profundo. Nos esportes, nas olimpíadas, por exemplo, as competições apresentam o sentido positivo resultante de tal aceitação: busca-se algo junto com os outros, a existência dos outros faz com que cada um cresça, supere seus próprios limites. A razão mais importante, no entanto, para a contigüidade semântica com a competição não contaminar a idéia de competência é a seguinte: buscar junto com os outros não significa necessariamente que se alguém fica com, os demais ficarão sem o objetivo pretendido; tudo depende do que se busca, do que se pretende. Se o objetivo colimado é um bem material, é um pote de ouro – ou uma medalha de ouro -, então é verdade que se alguém ganha, os outros têm que perder; se o que se busca, no entanto, é um bem comum, é o conhecimento, por exemplo, como ocorre na escola, então não mais ocorre tal situação. Quando se busca o conhecimento junto com os outros, todos podem ser – e em geral o são – legítimos vencedores, e a competência, ou a competição mostra sua face construtiva, sem restrições.

Bibliografia

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 no século XXI. Porto Alegre: Artmed, 2002.

MACHADO, N. J. – Conhecimento e valor. São Paulo: Moderna, 2004

MACHADO, N. J. – Educação: competencia e qualidade. São Paulo: Escrituras, 2009.

MACHADO, N. J. – Educação – microensaios em mil toques (vol I, II, III). São Paulo: Escrituras, 2010

ORTEGA y GASSET, J. –  Obras Completas Vols 1 e 2. Madrid: Alianza, 1987.

RAMOS, S. – Hacia un nuevo humanismo. México: Fondo de Cultura Económica, 1997.

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