Nos últimos anos tem sido comum a questão apresentada no título, como se vigorasse uma triangulação simples, em que “mito” fosse sinônimo de “mentira”, que, por sua vez, seria o oposto de “verdade”. Em tempos de pós modernidade, em que nossas certezas foram reduzidas a pó, em que convivemos com ideias lânguidas como as de Fake News e de “pós verdade”, a escolha que a pergunta sugere somente pode ser classificada como ingênua ou mal informada.

De fato, a ideia de verdade há muito se afastou do caráter binário, do Verdadeiro ou Falso excludente e totalizante, em que se supunha a inexistência de uma terceira alternativa, nem o “acúmulo” de funções entre o V e o F. Salvo casos especialmente simples, a correspondência direta entre um enunciado e um fato é uma quimera, e a Lógica tornou-se um pouco mais humilde, aceitando um terceiro estado em que não afirmamos nem negamos a verdade. Em outras formulações, a Lógica também assumiu a realidade do embaçamento, incorporando as probabilidades de modo consistente, em sua versão “Fuzzy”. E nas entranhas de sua vertente mais dura, a Lógica Matemática, a transformação mais séria se deu por meio da remissão da ideia de verdade à meta linguagem, a uma espécie de transcendência. Hoje, aceitamos que somente se pode falar de modo consistente da verdade de uma proposição P de uma linguagem L, que fala de objetos, se recorremos a uma linguagem L’ de ordem superior, que tem como objetos as proposições da linguagem L. As sentenças de L’, por sua vez, somente poderão ser classificadas em V ou F em uma linguagem L’’, de ordem superior a L’, e assim por diante. Mesmo perdendo a chancela da nitidez iluminista, na relação com o mito vê-se que a ideia de verdade não perdeu a pose.

Quanto ao mito, uma análise do verbete correspondente no Dicionário de Filosofia de Abbagnano revela que três são as acepções em que a palavra é utilizada em sentido filosoficamente adequado, e nenhuma delas pode ser associada à ideia de uma simples mentira, como se verá.

A primeira acepção é a de uma forma aproximada, imperfeita, da ideia de verdade, como era a visão de Platão ou de Aristóteles. A expressão mítica seria, em certos campos, a forma possível de se aproximar do verdadeiro. Aceita-se que o que o mito afirma não seria perfeitamente explicável, nem demonstrável como um resultado científico, mas traduziria bem mensagens de natureza moral ou religiosa. A limitação da verdade do mito seria inerente a sua natureza, convivendo com a expectativa de rigor interpretativo do conhecimento em outras áreas.

A segunda acepção do mito é oposta à primeira, no sentido de que a ideia de mito é uma forma fecunda e autônoma de pensamento, que não deveria ser considerada como uma verdade empobrecida. Autores como Cassirer, Vico ou Schelling exploram a riqueza da linguagem mítica, da mesma maneira que um poema não é um cálculo empobrecido, ou uma obra de arte não é um produto industrial rudimentar. Em sua inspiradora obra (Filosofia das Formas Simbólicas), Cassirer apresenta múltiplas formas de acesso à realidade, cada uma com seus recursos e suas limitações: a ciência, o mito, a arte são algumas de tais formas, que deveriam interpenetrar-se continuamente.

A terceira acepção de mito decorre de teorias sociológicas ou psicológicas, que não separam o universo mítico da realidade imediata, recorrendo a ele para exercer certo tipo de controle sobre tal realidade. É o caso, por exemplo, dos trabalhos de Malinowski, no terreno intermediário entre a sociologia e a antropologia, bem como de reflexões como as de Jung no terreno da psicologia. A busca do equilíbrio entre a desvalorização platônica e a supervalorização da lavra de Cassirer é o nó górdio da questão. Tudo isso, no entanto, situa-se em um plano muito superior ao da mera distinção entre verdadeiro ou falso, como sugeririam, ingenuamente, tantas enquetes realizadas pelas redes sociais, ou pelos meios de comunicação.

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