O significado mais frequente da palavra “considerar” está associado a verbos como meditar, refletir, ponderar, estimar, ter em grande conta, examinar criticamente todas as circunstâncias de um ato, tendo em vista a tomada de uma decisão. Etimologicamente, no entanto, a raiz mais funda da palavra encontra-se na astrologiana observação dos astros (sidera), tendo em vista a orientação das ações em empreendimentos futuros, como se pode conferir no Grande Dicionário Etimológico-Prosódico da Língua Portuguesa, de Silveira Bueno.

Como se sabe, na Roma antiga, os métodos de antecipação do futuro cunhados pela astrologia eram muito populares. Atualmente, salvo no que tange à previsão do tempo, gozam de pouco prestígio, ou seja, caprichosamente, não são levados em consideração. O significado principal da palavra “consideração” teria sofrido uma radical transformação. Renegando explicitamente sua origem etimológica, ele não mais remeteria, nem mesmo tacitamente, aos astros. É o que parece, mas arrisco afirmar que o que parece não é.

De fato, duas das noções mais fecundas e atuais da epistemologia apontariam no sentido de uma reinterpretação e uma revitalização dos astros, não mais como logos, mas como alegoria, na busca de uma compreensão da condição humana. refiro-me às ideias de “fusão de horizontes”, apresentada por Gadamer em seu seminal livro Verdade e Método, e de “constelação”, da lavra de Adorno, no denso Dialética Negativa. Nos dois casos, a inspiração nos astros como alegoria é bastante evidente. Algumas poucas palavras a seguir têm apenas a intenção de introduzir a questão.

Conhecer é conhecer o significado, e o significado somente se constrói por meio do sentido, ou dos sentidos. O que não é sentido, não faz sentido. Mas os sentidos são pessoais, idiossincráticos; cada visão é um ponto de vista, referido a um cenário específico, a um horizonte pessoal. A educação consiste na construção dos significados, que representam a parte partilhável dos sentidos, o que somente pode ocorrer por meio de uma fusão dos horizontes pessoais. Nas palavras de Gadamer, “o intérprete e o texto possuem cada qual seu próprio horizonte e todo compreender representa uma fusão desses horizontes.” Como fica claro em seu trabalho, a referida fusão não significa uma unificação das visões, que eram distintas e permanecem distintas, mas sim a inserção das visões em uma linha do horizonte comum, o que viabilizaria o logos, o diálogo, a tolerância, a compreensão. Não me parece existir frase mais adequada como síntese das produções da Escola de Frankfurt do que a busca da construção de um horizonte comum para a interação entre as diferentes visões de mundo dos participantes do discurso, regulado pela razão comunicativa. Retornando ao início destas considerações, a busca de um lugar para viabilizar uma visão comum certamente deve nos deslocar de polarizações terrenas, como as perspectivas ocidental e oriental, ou outras, derivadas de grupos de países representativos de diferentes concepções político-econômicas, passando a situar nos astros o centro de nossos olhares. Assim,ter os astros para orientar as ações, ou seja, tecer considerações, transformar-se-ia não buscar as justamente desprestigiadas correlações astrais, mas sim um ponto de vista que possibilitasse uma visão comum para todos nós, habitantes deste pequeno planeta Terra.

Em outro sentido, complementar ao anterior,  o conceito adorniano de constelação pode estar contribuindo para uma revitalização de sua associação inicial de consideração com os astros. ideia de constelação oferece uma perspectiva extremamente interessante para os descrentes na razão iluminista, muitas vezes associada a uma razão formal, fundada em “conceitos”. Distinguindo o uso ordinário da palavra conceito, como sinônimo de ideia ou noção, de seu uso teoricamente denso, associado aos quatro pilares definição, classificação, ordenamento e causalidade, o que se percebe é que, na vida cotidiana, incluindo-se a vivência na escola básica, pouco utilizamos conceitos em sentido técnico, com suas hierarquias categóricas. Não conhecemos o conceito de verdade, o conceito de tempo, o conceito de consciência, ou de vida em sentido humano, e vivemos bem, apesar disso. Lidamos quase o tempo todo com noções preconceituais, esquemas de percepção ou de ação; vivemos na antessala dos conceitos. Temos um consenso quase absoluto em língua portuguesa na atribuição de um sentido negativo ao “preconceito”, que parece sempre detestável. E o é, efetivamente, na medida em que se trata de uma ideia preconceitual que se pretende um conceito. É aí que mora o perigo.

Com a ideia de constelação, Adorno nos lembra de como podemos viver bem sem se submeter a uma razão iluminista simplificada, sem pressupor que trabalhamos apenas com conceitos em sentido filosófico, distinguindo com nitidez a razão e a sombra, o bem e o mal. Ao apresentar sua “dialética negativa”, ele afirma que “não se progride a partir de conceitos e por etapas até o conceito superior mais universal, mas esses conceitos entram em constelação. Essa constelação ilumina o que há de específico no objeto e que é indiferente ou um peso para o procedimento classificatório.” A possibilidade de uma razão ampliada, que incorpore infra-lógicas em terrenos em que a formalização seja inviável ou demostradamente impossível é que conduziu à ideia de constelação. Afinal, em vez de um conceitual sistema solar, a nos indicar nitidamente o objeto iluminado, e até mesmo denegando a importância do que a sombra esconde, um conjunto de estrelas com múltiplos focos, iluminando de forma aparentemente desordenada as múltiplas perspectivas de observação – ou seja, uma constelação – pode constituir uma alegoria muito mais interessante, muito mais representativa da vida em sentido humano.

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