Algumas décadas já se foram, mas me lembro bem da insistência do ginecologista que assistiu o nascimento de meu primeiro filho, diante do excesso de preocupações de um pai calouro, ao reiterar a mensagem:“Gravidez não é doença!” Ainda que em situações excepcionais possa sê-lo, normalmente, obviamente, não o é. Trata-se de um recado simples, muitas vezes solenemente olvidado, em cenário impregnado de inovações tecnológicas, em que um médico costuma solicitar a priori um grande número de exames, antes mesmo de olhar nos olhos ou conversar com o paciente, em que o parto natural  é tantas vezes desnecessariamente transformado em cirurgia. Talvez não seja excesso de otimismo acreditar que um reconhecimento progressivo de tais desvios esteja ocorrendo, e a consciência da sabedoria expressa na mensagem tranquilizadora “Gravidez não é doença” venha crescendo, em todo o mundo.  Tais fatos me vêm à mente em decorrência de outra comparação igualmente pertinente, que necessita da construção de uma consciência similar: “Salário não é renda”.  Tecnicamente até pode sê-lo, mas a sabedoria popular, expressa no uso corrente da linguagem, é absolutamente transparente: ninguém diz, de alguém que vive de seu próprio salário, que “vive de rendas”. Na teoria econômica, a renda é entendida como a remuneração dos fatores de produção. O salário seria a remuneração pelo trabalho; os juros e os lucros seriam a remuneração pelo capital; os aluguéis a remuneração pela propriedade… O Imposto de Rendaiguala todas essas formas de remuneração, incidindo de modo quase inescapável sobre os salários e sendo muito mais generoso com os ganhos associados ao capital. Entre as inúmeras reformas da legislação vigente que periodicamente vêm à tona  (Reforma da Previdência, Reforma Política, Reforma Tributária,…), talvez a mais simples delas fosse a que mais eficazmente produziria efeitos sociais: refiro-me a uma distinção mais nítida entre salário e renda, estimulando-se e valorizando-se decididamente a remuneração do trabalho, expressa pelo valor do salário, e tratando da renda, entendida em sintonia com o sentido popular do “viver de rendas”, ou seja, primordialmente, como a remuneração do capital e da propriedade, e estabelecendo alíquotas mais justas no sentido da distribuição da riqueza produzida. Em termos radicais, poder-se-ia simplesmente estabelecer que “salário não é renda”; em busca de alguma contemporização, poderia ser criada uma distinção nítida e crucial entre a renda que vem do trabalho e a que vem do capital ou da propriedade, criando-se uma alíquota menor (talvez única) para o salário e alíquotas progressivas para a tributação da renda. Não custa sonhar…

******SP 08-01-2018

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