O senso comum mais aligeirado associará duas a duas as quatro palavras referidas no título numa ordem que parece natural: acostumamo-nos a pensar na Ciência como o lugar dos conceitos, e são comuns as associações entre o terreno das Religiões e o dos preconceitos. Parece-me, no entanto, que tais associações traduzem uma visão simplificada – e preconceituosa – em relação a ambos os temas. A associação que considero absolutamente natural é a que se dá entre a Ciência e os preconceitos, o que buscaremos justificar a seguir. Vivemos continuamente em busca de um significado para nossas ações mais ordinárias: conhecer é conhecer o significado. Tal significado é continuamente construído por meio de um feixe de relações estabelecidas entre as ideias já conhecidas e as noções emergentes. As ideias, as noções, as opiniões que construímos aspiram ao estatuto dos conceitos, que são significados consolidados em teorias, expressos em definições precisas, em classificações, em organizações hierárquicas que inspiram relações causais. Na grande maioria dos casos, no entanto, não logramos atingir tal nível dos conceitos. Como bem nos lembrou Santo Agostinho, vivemos a noção de tempo, partilhamos com os outros nossas cronologias e nossas narrativas, mas poucos de nós podem afirmar que têm um conceito de tempo bem definido. Não se trata de uma exceção fortuita: também não temos um conceito nítido de ser humano, de humanidade, de pessoa, de vida em sentido humano, por mais educados que sejamos. Vivemos a maior parte de nossas vidas, mesmo quando tratamos de ideias científicas,  na antessala dos conceitos, em terreno reconhecidamente preconceitual. Somos movidos por esquemas sensório-motores, por metáforas inspiradoras, por associações simbólicas aparentemente arbitrárias. Não se trata de um defeito de fabricação, mas sim de nossa condição humana. Nossas realizações estritamente conceituais são puntiformes, são circunstanciais: o preconceitual é nossa praia. Não compreender tal fato é sintoma da persistente hybris que busca nos elevar até o nível dos deuses que não somos. A tragédia humana não resulta dessa nossa natural limitação, mas sim da ilusão do tratamento das ideias preconceituais, dos esquemas sensoriais ou verbais como se fossem conceitos. O mal não está na aceitação do preconceitual como conhecimento legítimo, mas sim no tratamento do preconceitual como conceito, o que caracteriza um preconceito. Espasmos de arrogância conduzem a Ciência a tratar ideias simples e inspiradoras, mas frágeis como um ser humano, como conceitos bem estabelecidos, como se emanassem de deuses poderosos. Pecados desse tipo são muito comuns na Ciência, em todas as suas vertentes. As Religiões também revelam um pecado similar: o tratamento de metáforas inspiradoras, de alegorias poderosas como se pudessem ser traduzidas em sentido literal. O paralelismo me parece perfeito: tratar o preconceitual como conceito é descabido, é a doença da Ciência; traduzir o metafórico, o alegórico das narrativas religiosas em sentido literal também é sintoma da mais pura insanidade.

*******SP  15-10-2017

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