Category Archives: Mil e uma
Mil e Uma X24 Descartes, Kafka e o bom senso na argumentação
Descartes já nos alertara: o bom senso é o atributo mais bem partilhado do mundo; ninguém acha que precisa de mais do que já tem. No terreno das ideias, no entanto, o bom senso pode conduzir a derrapagens conceituais.
É o que ocorre quando se transferem qualidades ou defeitos do orador para os argumentos em defesa das ideias que apresenta. O deslizamento é sutil: se a pessoa argumenta mal, então a causa que defende não presta. Em latim, isto era chamado de Argumento Ad Hominem, uma situação em que os argumentos são deixados de lado e o argumentador é fuzilado…
Naturalmente, tal procedimento é logicamente insustentável. Em um debate, as ideias é que estão em questão, e não a eventual simpatia ou os defeitos do orador. A esse respeito, Kafka foi cirúrgico ao afirmar, com fina ironia: A maneira mais pérfida de se combater uma causa é defendê-la com um péssimo argumento. Simetricamente, poder-se-ia dizer: A maneira mais cínica de defender uma causa é combatê-la com um péssimo argumento.
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Mil e Uma X23 Elogio da Prudência nas leituras
A prudência é uma das virtudes cardeais em Santo Tomás. Ela não diz respeito às precauções, mas a modos de ação prática, em sintonia com a ideia de justiça. O impetuoso jovem, com a mais justa das intenções, pode cometer imprudências. Avançar na idade pode nos tornar mais prudentes.
Dois exemplos ilustrativos. Em Razões Práticas, Bourdieu escreve que o ato desinteressado não existe. Nossas ações seriam sempre motivadas por interesses, velados ou não. Será? Vamos mais devagar. A dimensão mercantil não é sempre determinante de nossas ações, não dá conta do valor do conhecimento, da arte, dos sentimentos… Bourdieu também escreve que a motivação da dádiva é o interesse pela criação do laço com o outro. Aí a concordância é total; o interesse é o laço, concordamos.
Whitehead escreve, em Os fins da Educação, que tudo o que ensinamos na escola tem que ser útil. Mas também escreve que a maior utilidade do que aprendemos é a compreensão do significado dos temas estudados. OK, vamos nessa…
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Mil e Uma X22 A bicicleta e o conhecimento tácito
Quase todo mundo aprende a andar de bicicleta ainda jovem, e, mesmo passados muitos anos sem usar uma, montamos e saindo andando. Não sabemos explicar em palavras como o fazemos, mas sabemos fazê-lo. Trata-se de um modo de conhecer que não deriva diretamente das palavras.
Andar de bicicleta é um tipo de saber chamado de “conhecimento tácito”. Em muitas áreas, cada um de nós, professores ou alunos, sabe muito mais do que consegue pôr em palavras. Há coisas que aprendemos e incorporamos, mesmo sem conseguir explicar. Uma centopeia anda muito bem, sem tropeçar nas pernas, e pode mesmo se tornar uma bailarina, coordenando suas centenas de patas, tudo isso tacitamente, sem explicações, como se dá o andar de bicicleta.
Na escola, buscamos ampliar nosso conhecimento sobre a realidade das coisas, e gostamos de explicar o que aprendemos, de falar sobre o que fazemos. A ideia de que existem coisas que conhecemos, mas não sabemos explicar, pode chocar alguns, mas é fundamental. O inefável existe.
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Mil e Uma X21 Significado e relevância na pesquisa
A simbiose entre o significado e a relevância é o ideal de toda pesquisa, mas não são poucas as cascas de banana a serem evitadas. Uma pesquisa pode ter conteúdo cientificamente relevante, mas ser metodologicamente irrelevante; também pode ocorrer de a metodologia ser irrepreensível, mas os objetivos propostos traduzirem irrelevâncias.
A estatística pode ser boa ou má conselheira, na distinção entre significâncias irrelevantes e insignificâncias relevantes, mas é preciso cautela para não se deixar fascinar por números e transformá-los em fins, em vez de meios da pesquisa. Afinal, diz-se que os números não mentem, mas é fato que mentirosos usam números.
Na área da saúde, o reconhecimento de derrapadas como as referidas pode ser feito com mais nitidez. Aqui, é mais fácil identificar refinadas metodologias no enfrentamento de temas de pouca relevância clínica, assim como se pode reconhecer que o instrumental metodológico escolhido foi insuficiente para as análises científicas necessárias.
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Mil e Uma X20 Vacina gênica é fake…
Não se trata aqui do desprestígio de vacinas. Cuidaremos do fato, no mínimo curioso, de que duas das vacinas que mais rapidamente se apresentaram no combate ao coronavírus sejam baseadas em fakes.
As vacinas surgiram no século XVIII. A lógica é simples: para combater um vírus, por exemplo, injeta-se no paciente o vírus enfraquecido, ou parte dele, fazendo com que o corpo aprenda com tais inimigos atenuados a produzir anticorpos capazes de combater o verdadeiro inimigo.
As duas vacinas supra referidas baseiam-se em outra lógica. Chamadas de gênicas, elas recorrem ao RNA mensageiro, uma espécie de motoboy de materiais genéticos, que transporta um ínfimo pedaço do vírus, “encaixado” no RNA, até o paciente. Tal porção do vírus faz com que o paciente imagine um invasor onde existe apenas um simulacro, uma ingênua cereja, em vez do bolo, uma amostra fake do vírus.Como diria Cícero, orador romano, que proferiu célebres discursos contra a corrupção: O tempora, o mores! (Oh tempos, oh costumes!)
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Mil e Uma X19 O diâmetro da Imprensa e o da civilização
Atualmente, a lembrança da imprensa nos conduz à ideia de uma sociedade em rede, com seus recursos tecnológicos, seus sistemas de circulação de informações, que parecem desdenhar da ideia de valor. Já não escrevemos cartas, quase não lemos jornais impressos, as manchetes mais insólitas permanecem pouco tempo em destaque. Links são continuamente criados e destruídos, personalidades são idolatradas ou canceladas, a efemeridade e a fugacidade são extremas.
A nova imprensa, plena de blogs, chats, canais, podcasts, webinars e outras etiquetas tecnológicas, amplifica egos e alivia conteúdos quase na mesma proporção. A impressão é a de inconsciência das características da nova civilização que parece vicejar, o que nos faz lembrar a emblemática frase de Victor Hugo: A imprensa e a civilização têm o mesmo diâmetro.
A leveza que tangencia a leviandade, tão comum à cultura das redes, não pode mitigar o fato de que a imprensa é o sistema nervoso da cultura: a imprensa e a civilização se merecem…
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Mil e Uma X18 Aprender com a História: Hegel não tinha razão
“A História ensina que os povos e governos nunca aprenderam com a História”. A frase de Hegel é provocativa, mas é uma caricatura. Não é uma mentira, mas um recurso retórico. A História é a disciplina mais importante do currículo. Segue o argumento.
Na escola, buscamos a construção do conhecimento em sentido pleno. Conhecer é compreender o significado. Mas o significado não se constrói de uma vez para sempre: ele se articula em redes de relações em permanente estado de atualização. A primeira rede de relações significativas não construímos na escola: a oralidade nos provê. A partir daí, aprendemos a vida inteira, tanto pela incorporação quanto pelo descarte de relações.
É justamente do fato de que estamos em permanente estado de atualização que deriva a importância decisiva da História. Em vez de acessos socráticos do tipo “Só sei que nada sei”, recorremos à História. É nela que buscamos compreender o significado das mudanças, mas sobretudo o significado das mudanças… de significado!
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Mil e Uma X17 OS MEIOS E OS FINS: LA FONTAINE E ADESTRADORES DE ANIMAIS
La Fontaine consagrou fábulas de conteúdos prenhes de valores. Explora a natureza humana por meio de prosopopeias, ou seja, da atribuição de uma face humana a animais. Leões, lobos, coelhos, raposas, entre outros, envolvem-se em situações humanas, como se fossem gente. Assim, mestre La Fontaine recorre a características dos animais para construir situações de natureza ética, por meio das quais busca instruir os seres humanos.
Os adestradores também lidam com animais em situações de aprendizagem, mas há aqui uma diferença decisiva. Um adestrador instrui animais, para que mimetizem aspectos tópicos dos seres humanos, sem, no entanto, uma compreensão efetiva do que e do porquê o fazem: uma guloseima é a instância última do processo.
Em situações de ensino, o professor é um agente que fabula, que confabula. Os animais são meios; o fim é a formação em valores do ser humano. No caso dos adestradores, a assimilação de esquemas de resposta é o fim último. A ideia de Educação exige muito mais.
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Mil e Uma X16 O FUNDEB E A CORRUPÇÃO DO ÓTIMO
O FUNDEB é um Fundo para promover maior equidade nos recursos para a Educação Básica. Além de uma parcela de impostos municipais e estaduais, inclui parcela de impostos federais (10% do Fundo). Em 2020, uma renovação da lei ampliou a parcela federal, que deverá atingir 26% do Fundo até 2026.
A realidade do FUNDEB esbarra, no entanto, numa dificuldade radical: a estruturação do país em municípios. Alguns não têm condições mínimas para sobreviver sem o FUNDEB. Não são raras manchetes que revelam ampliações fictícias no número de alunos, ou no uso dos recursos para asfaltar ruas, ou compra de veículos de luxo…
Quando se observa que, de um total de 5570 municípios,
1350 deles, (24%) correspondem a 3% da população e a 1% do PIB, e 71 municípios (1,3%) correspondem a 33% da população e a 50% do PIB, então se pode concluir que a ideia inicial de equidade foi corrompida.
Sem uma reforma política que redefina o mapa de municípios, continuaremos a dar mais a quem mais tem, tudo dentro da lei.
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Mil e Uma X14 A REDE E A TOPOLOGIA: A GENERALIZAÇÃO DA IDEIA DE DISTÂNCIA
A rede www, de 1990 para cá, tem-se revelado fundamental para criar sistemas de proximidades entre pessoas ou objetos fisicamente distantes. Uma pesquisa simples sobre a palavra corpus, põe em cena alguns links insólitos, como habeas corpus, corpus Christi, academias de ginástica, marcas de yogurt light...A ideia de proximidade é confusa.
Por outra via, desde o século XIX a Matemática já nos chamava a atenção para o potencial da ampliação da ideia de distância. A distância física entre duas pessoas pode ser menos relevante do que a distância entre seus pensamentos sobre determinado tema. A Topologia é um ramo da Matemática que generaliza a ideia de distância e se aproxima da ideia de rede. Nela, uma câmera de um pneu e uma xícara com asa são formas muito mais próximas do que a mesma xícara e um copo comum.
Um fato fecundo e determinante para aproximar as ideias de Topologia e de redes é a inclusão da ideia de tempo nos dois temas: ambos convergem para as ideias de mapa e de narrativas.
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